O MONGE DOS ÉTANGS-BRISSES - Conto Clássico de Terror - George Sand



O MONGE DOS ÉTANGS-BRISSES

George Sand

(1804 – 1876)

Tradução de Paulo Soriano

 

Acautelem-se os transeuntes que, aos últimos raios do Sol, caminham pelos pântanos, pois o monge gigantesco se ergue repentinamente do meio dos juncos. Fujam e não deem ouvidos aos seus malditos discursos!

Maurice Sand.

 

Jeanne e Pierre se demoraram um domingo ao longo dos Étangs-Brisses. Não é um lugar alegre, sobretudo à noite. Depois de passar pelo bosque, chega-se a um grande planalto descampado, onde só existem juncos e areia. Há grandes poças d’água que se encontram na estação das chuvas e formam um lago cujo fundo parece totalmente negro.

Outrora, por enveredar por uma estradinha muito estreita e coberta d’água, um monge perverso, tomado pelo vinho, ali se afogou com seu burro. Não o tinha derrubado o burro, que ninguém jamais ouvira sequer zurrar. Mas o monge libertino estava condenado a sentir as dores da morte e a angústia de sua última hora enquanto houvesse uma gota d'água nos Étangs-Brisses. No entanto, embora as plantações invadam-lhe, todos os anos, as margens, esses pequenos lagos nunca parecem secar. Portanto, a tortura do monge ainda perdura e vai perdurar sabe Deus até quando!

Jeanne estava bem ciente da má reputação daqueles lagos; mas Pierre não acreditava em maldições e não se importava com elas. Então, evitou que a jovem pensasse naquelas coisas, falando-lhe todo tipo de coisas belas e que soavam agradáveis aos seus ouvidos. Estavam noivos e tinham acabado de voltar da cidade, onde escolheram os trajes de casamento:  roupas novas, fitas e rendas para o grande dia. Caminhavam juntos, segurando-se pelo dedo mínimo, como era o costume dos namorados quando ficavam na estrada com os pés enfiados na lama. No dia anterior, uma grande tempestade havia enchido o lago, que transbordava um pouco.

— Você está me levando por um péssimo caminho — disse Jeanne ao amado. — Creio que esta não é a passagem certa.

— Espere até que eu me situe — respondeu Pierre.  — Na verdade, o Sol está se pondo, e os juncos são todos escuros, iguais. Fique aí um minutinho; vou ver se conseguimos sair daqui.

Jeanne estava cansada. Sentou-se entre os juncos e olhou para o céu vermelho, pigmentado, todo marmoreado de amarelo e ocre, e sua mente voltou-se para a tristeza, sem que ela pudesse dizer por quê.

“Se fosse noite alta”, pensou ela, “eu não gostaria de ficar sozinha neste lugar maligno, onde, no passado, o monge morreu. Oxalá que que Pierre não se perca em meio às ervas daninhas!”

Jeanne o seguiu com o olhar enquanto pôde. Depois, perdendo-o de vista, sentiu que o seu pobre corpo tremia.

De repente, viu um grande bando de patos selvagens voando ruidosamente ao seu lado. E, levantando-se na ponta dos pés, viu Pierre voltando, divertindo-se em jogar pedrinhas na água para atrair outros bandos de pássaros, que enchiam o lago enquanto a noite descia no firmamento.

Quando Pierre juntou-se a dela, disse-lhe:

— Estamos no caminho certo e, salvo por alguma lama, caminharemos bem. Deixe-me respirar um pouco, porque andei rapidamente e, além disso, este lugar não é nada mau para descansar.

— Para você, esta é uma ideia engraçada, meu Pierre. Mas não vejo graça nela e já demoramos muito. Descanse rapidamente, porque quero partir antes de escurecer.

Quando Pierre se sentou entre os juncos, ao lado de Jeanne, disse-lhe:

— Meu Deus! Jeanne, realmente andei por muito tempo, porque acho que eu não a beijo há dois anos.

— Que nada! — ela continuou. — Você me beijou há menos de meia de hora.

— Ora, querida, que mal há nisso?

— Não digo que haja, já que vamos nos casar!

— Agora, deixe-me beijar você mais uma... ou sete vezes.

Jeanne deixou-se beijar uma vez, dizendo-lhe que bastava. Ela não via nenhuma malícia naquilo. Mas sabia que, se é permitido aos namorados campesinos, na presença dos transeuntes, trocar um abraço enquanto caminham, não são apropriados nem honestos os conúbios secretos, ou a permanência do casal em lugares por onde não passa ninguém.

Pierre, que era um bom rapaz, porque sabia se comportar em qualquer circunstância, ficava feliz em ver que Jeanne o mantinha à distância, e ele só ultrapassava algum limite para ter o prazer de receber um tapinha de vez em quando, o que é, como todos sabem, uma grande marca de confiança e amizade.

E tendo eles assim discutido honestamente por algum tempo, passaram a falar sobre o futuro, o que ainda é um grande prazer entres as pessoas que devem passar a vida juntas. E aqui estão eles, discorrendo sobre suas pequenas futuras contribuições, construindo uma nova casa só para eles e plantando um pequeno e agradável jardim, mas tudo aquilo puramente na imaginação, pois os pobres jovens não tinham muito e teriam que trabalhar apenas para manter o pouco que possuíam.

Mas, agora, uma voz, que Pierre não ouvia, começou a falar a Jeanne, como se fosse a dele, enquanto outra voz falava a Pierre como se fosse a de Jeanne, mas que ela igualmente não ouvia. Pensavam que diziam, um ao outro, coisas que realmente não pronunciavam, de molde que não se entendiam e não chegavam a lugar algum.  Jeanne censurou Pierre por ser um preguiçoso que amava os lupanares. Pierre repreendeu Jeanne por ser coquete e adorar uma fanfarrice. Então, os dois, mal-humorados, puseram-se a gritar. Depois, se calaram, evitando dizer palavra.

Mas o surpreendente é que nada mais falando, e não vendo seus lábios se mexerem, os dois ouviram uma voz muito surda que soava como uma rã ou um caniço silvestre, e que dizia as palavras mais maliciosas do mundo.

— O que vocês estão fazendo aí, crianças, mal-humoradas, em vez de aproveitar a noite e a solidão? Estão tolamente esperando o fim de semana para se amarem livremente? Que bela idiotice é esse casamento! Vocês não sabem que o casamento é dor, miséria, brigas, preocupação com os filhos e dias sem pão? Vamos, vamos, o quão inocentes são vocês! Caso não se esforcem, no dia seguinte ao casamento já estarão a se lamentar! Vocês já percebem que, falando sobre o futuro e economia, não conseguiram chegar a um entendimento!

“A vida é tola e miserável, não se enganem quanto a isto. Nela, não há nada de bom, exceto o esquecimento do dever e o prazer irrestrito. Amem-se agora, porque, se não aproveitarem o momento presente, outra oportunidade não terão, e, de sua união, experimentarão apenas pancadas e insultos, e, das flores da juventude, apenas os espinhos e os tolos rebentos.”

Jeanne e Pierre ficaram com muito medo. Deram-se as mãos e se abraçaram, sem ousarem respirar. Jeanne não ouviu nada do que a perversa voz lhe dizia. As palavras passaram em seu ouvido como uma missa, dita pelo diabo, contra o bom senso. Mas Pierre, que era mais esperto, tudo ouvia, apesar do medo, e entendia quase que completamente o que a voz dizia.

—  Concordo que a voz é horrível — disse ele. — Mas as palavras não são estúpidas e, se você acreditasse em mim, Jeanne, também a ouviria.

— Se as palavras são tolas ou belas, eu não me importo — respondeu ela. — Elas me assustam, embora eu não as compreenda de forma alguma. É alguém que zomba de nós porque estamos sozinhos, presos em num lugar impróprio. Vamos rápido, meu Pierre. A pessoa que nos fala, viva ou morta, não quer nada além de nos machucar.

— Não, Jeanne, ela nos quer bem, porque tem pena do destino que nos espera, e se você entender o que ela está dizendo ...

Em seguida, Pierre, sentindo-se compelido pelo demônio, intentou agarrar Jeanne, que queria fugir. E o espírito maligno, por um momento, acreditou que prevaleceria em sua força.

Mas não é dado a essas entes malignos fazerem aos bons cristãos todo o mal que desejarem. O monge libertino, vendo a consciência de Jean claudicava, estava muito ansioso por tomar sua alma.  E se pôs a cantar com a sua voz pantanosa:

— Venham, venham, meus lindos filhos, aqui, velas ou testemunhas não são necessárias. Se precisam de alguém para uni-los em casamento, eu posso dizer as palavras cerimoniais. Ajoelhem-se diante de mim e terão a bênção de Belzebu!

Dito isto, aflorou à superfície do lago a grande cabeça do monge, coberta por um capuz enlameado.

— Salvemo-nos! — disse Jeanne. — Vejo uma lontra que quer pular atrás de nós.

— Não — disse Pierre. — Vou atingi-la com meu cajado

Mas quando ele se inclinou sobre a água para deferir o golpe, vislumbrou os olhos ígneos do monge, em cuja barba entremeavam-se sapos e sanguessugas. Viu erguer-se aquele corpo putrefato sobre pernas afiladas. E, também, uns longos braços, gotejantes de lama e musgo, que se abriam em asas sobre a cabeça dos noivos, para consagrá-los a Satanás.

Mas Pierre, embora não fosse covarde, ficou tão aterrorizado de ver o monge crescer e crescer — como se quisesse tocar as nuvens —, que fugiu, gritando de pavor, correndo como uma lebre e puxando atrás dele a pobre Jeanne, mais morta que viva, mas que, mesmo assim, não precisou ser chamada duas vezes para cruzar o caminho, com os pés molhados e os cabelos ao vento.

E correram tanto que chegaram à casa dos pais sem terem olhado para trás uma vez sequer, e sem se darem ao trabalho de se falarem.  Casaram-se devotamente oito dias depois, sem terem dado ouvido ao conselho do perverso monge. Este — dizem — ficou tão envergonhado por ter perdido aquela presa, que permaneceu um longo tempo sem ousar reaparecer para corromper a alma doutros cristãos.  

 

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