A MARCA DA BESTIALIDADE - Conto Clássico de Terror - Rudyard Kipling
A MARCA DA
BESTIALIDADE
Rudyard Kipling
(1865 – 1936)
Ao
Leste de Suez, em certo ponto, o controle direto da Providência cessa; os
homens passam ao domínio dos deuses e demônios da Ásia, e a Providência da
Igreja de Inglaterra exerce, apenas, uma ocasional e modificada supervisão
sobre os ingleses. É isso que explica os horrores da vida na Índia. Mas
passemos à minha história. Meu amigo Strickland, da polícia, que conhece tão
bem os nativos da Índia, tão bem quanto um homem branco, que viveu muitos anos
na sua intimidade, pode conhecer, foi testemunha do caso
que vou narrar. Dumoise, nosso médico, também viu o que Strickland e eu tivemos
ocasião de ver. Este, agora, é morto; morreu de uma maneira estranha, conforme
já descrevi em outra oportunidade.
Quando
Fleete chegou à Índia, possuía algum dinheiro e terras no Himalaia, próximas de
um lugar chamado Dharmsala. Todos seus bens ele os havia recebido em herança de
um tio e seguiu pessoalmente para a Índia afim de dirigi-los. Era um homem
corpulento, pesado, mas inofensivo. O que ele sabia a respeito dos nativos era
muito pouco e queixava-se constantemente das dificuldades daquele idioma
diabólico. Na véspera de Ano Bom, ele desceu de suas propriedades, nas
montanhas, para entrar o novo ano na sede do povoado, em companhia de
Strickland. Era velha praxe do clube local festejar sempre a véspera de Ano Bom
com um grande jantar, no qual se permitiam, naturalmente, libações mais
copiosas do que as habituais. Os homens que faziam o sacrifício de viver
naquelas regiões ao serviço do país reservavam-se o direito de se conduzirem
com alguma liberdade maior.
Para
lá corriam todos os brancos que moravam pelas regiões próximas, alguns deles,
mesmo, vivendo a maior distância, chegando a viajar quinze milhas para tomar
parte daquele almoço do forte, apesar do perigo de levarem alguma bala dos
Kliyberee, quando estivessem embriagados.
Meia
dúzia de lavradores estava reunida em torno do homem a que eles chamavam “Cavalo”,
e que consideravam o maior mentiroso da Ásia. O homenzinho estava procurando
impingir todas as suas mentiras ao mesmo tempo. Foi uma noite de bebedeira
geral. Lembro-me de que todos nós cantamos, em coro, Auld Lang Syne, com
os pés nos copos de bebidas e a cabeça nas estrelas, jurando que éramos todos
amigos uns dos outros. As loucuras, os projetos disparatados, as confidencias,
as indiscrições, felizmente tão depressa esquecidas como surgiam, encheram
aquela noite de libações.
*
Fleete
começou com cereja e bitter; depois, bebeu champagne, juntando capri
com whisky e beneditino; tomou mais quatro ou cinco whiskies com
soda, terminando, às duas e meia da madrugada, com velha aguardente. Como consequência
de tudo isso, às três e meia da madrugada, a trabalheira para subir à sela do
seu cavalo foi simplesmente infernal. Acabou por fugir o cavalo para seus
estábulos. Strickland e eu acabamos por compreender que não havia outro remédio
senão fazer-lhe guarda, de volta para casa. Nossa estrada passava ao lado do
pequeno templo de Hanuman, o deus-macaco, que é uma divindade respeitadíssima
no lugar. Todos os deuses têm qualquer coisa de bom, como todos os sacerdotes.
Pessoalmente, eu respeitava aquele fanatismo dos nativos por Hanuman, tratando
a gente das colinas com afabilidade, pois nunca se pode saber até onde se irá
precisar de amigos.
Havia
luz no templo e, quando passamos, ouvimos vozes cantando hinos. Nos templos dos
nativos, os sacerdotes se levantam a qualquer hora da noite para honrar seus
deuses. Antes que pudéssemos evitá-lo, Fleete subiu correndo a escada, empurrou
para o lado dois sacerdotes e, aproximando-se da estátua vermelha de Hanuman,
encostou-lhe a brasa do cigarro. Strickland tentou arrastá-lo para fora dali,
mas ele sentou-se e declarou solenemente:
—
É a... marca... da bestialidade... que eu lhe fiz. Não fiz bem?
Dentro de meio minuto,
o templo se encheu de vida e de ruído. Strickland sabia muito bem o que
acontecia quando alguém profanava os deuses e disse, logo, que estávamos
metidos em péssimos lençóis. Pela sua posição oficial, pela sua longa permanência
no lugar e, portanto, por já ter magníficas relações com os nativos, ele era
muito conhecido pelos sacerdotes.
Fleete
sentou-se no chão e recusava-se a sair do templo. Tinha recostado a cabeça no
pedestal da estátua e disse que o bom velho Hanuman era uma almofada macia.
E,
de repente, sem aviso algum, um “Homem de Prata” saiu de um recesso da imagem.
Estava inteiramente nu, apesar do frio, e seu corpo era lustroso como bronze.
Era o que a Bíblia denomina “um leproso branco como a neve”. Seu rosto tinha
desaparecido numa chaga imensa, pois havia muitos anos que a doença lhe minava
o corpo. Corremos todos para arrancar Fleete, e o templo se enchia cada vez
mais. Os homens pareciam surgir do seio da terra, quando o Homem de Prata
correu por entre as nossas mãos, fazendo um ruído estranho, como um uivo
prolongado. Em seguida, o leproso segurou Fleete pela cintura e encostou-lhe a
cabeça ao peito. Ficou alguns momentos naquela posição e, depois, retirou-se
para um canto e sentou-se, uivando, enquanto a multidão se acumulava às portas.
Os
sacerdotes se mostraram muito agitados até o momento em que o Homem de Prata
segurou Fleete e lhe encostou o rosto ao peito. Aquela cena, porém, pareceu
serená-los imediatamente. Ao cabo de alguns, minutos de silêncio, um dos sacerdotes
se aproximou de Strickland e disse, em correto inglês:
—
Leve seu amigo para fora daqui. Ele se enganou com Hanuman, mas Hanuman não se
enganou com ele.
*
Strickland
estava seriamente aborrecido. Ele disse que nós três escapamos, por verdadeiro
milagre, de ser apunhalados e que Fleete devia agradecer à boa estrela por sair
incólume daquela aventura. Fleete se limitou a declarar que estava doido para
meter-se na cama. Achava-se completamente embriagado.
Saímos.
Strickland ia silencioso e pensativo. Fleete foi tomado de violentos tremores e
suava abundantemente. Disse que estava sentindo um cheiro horrível, asfixiante,
e que não compreendia como era que consentiam que houvesse estábulos tão perto
de residências inglesas.
—Vocês
estão sentindo um cheiro de sangue? — perguntou ele, em dado momento.
Deixamo-lo
na cama, finalmente, ao romper da alvorada, e Strickland me convidou a tomar
mais um copo de whisky com soda. Enquanto bebíamos, ele me falou a
respeito do incidente no templo e disse-me que estava preocupadíssimo com o
caso.
—
Eles bem podiam ter-nos atacado, em lugar de ficar uivando como ficaram. Não
compreendo a sua atitude, mas, francamente, não gosto nem um pouquinho disso.
Eu
respondi que estava certo de que a Comissão do Templo nos havia de mover algum
processo por afronta à sua religião. Havia uma parte do Código Penal Indiano
referente aos casos como o da ofensa de Fleete. Strickland disse que seria a
nossa salvação se eles levassem o caso para o lado da legalidade. Antes de
sair, olhei um momento no quarto de Fleete e o vi deitado sobre o lado direito,
roçando furiosamente o peito, do lado esquerdo.
Deitei-me
às sete horas da manhã, sob uma impressão de desânimo.
A
uma hora da tarde levantei-me e corri à casa de Strickland, para ver como ia
passando Fleete. Imaginava encontrá-lo num estado de ânimo deplorável, mas,
como grande surpresa, vi-o fazendo o desjejum com grande apetite. Logo que
cheguei, começou a queixar-se do cozinheiro, que não lhe havia dado um bife
malpassado, como ele desejava. Observei-lhe que era um verdadeiro fenômeno
sentir vontade de comer carne crua, depois de uma noite de bebedeira como
aquela. Fleete soltou uma gargalhada.
—
Vocês têm uns mosquitos infernais — disse. — Fui mordido terrivelmente. Mas o
interessante é que foi sempre no mesmo lugar.
Depois
de um momento de silêncio, Fleete continuou:
—
Hoje de manhã, quando acordei, fiquei muito tempo sentado na cama, a ver se me lembrava
do que aconteceu ontem. Não me recordo de coisa alguma...
Strickland
não respondeu diretamente.
—
Deixe-me olhar um momento o lugar em que os mosquitos morderam — disse ele.
Enquanto
esperava pelos bifes malpassados que havia mandado fazer, Fleete abriu a camisa
no peito e mostrou-nos o lugar em que os mosquitos haviam mordido. As marcas
tinham grande semelhança com as manchas irregulares, em círculo, de leopardo.
Estavam todas localizadas no lado esquerdo do peito.
Strickland
disse, depois de examinar bem o local:
—
Hoje de manhã eram rosadas. Agora, estão ficando escuras, quase negras.
Fleete
levantou o copo.
—
Santo Deus! — exclamou. — Que coisa imunda, não acham?
Não
respondemos.
Os
bifes chegavam, vermelhos e sangrentos, e Fleete apanhou três de uma só vez,
enchendo a boca grosseiramente. Comia avidamente, como um irracional, inclinando
a cabeça a um lado, para poder mastigar com maior voracidade. Quando acabou de
comer, parece que reconheceu, caindo em si, a grosseria de seu procedimento,
pois disse, como que a pedir desculpas:
—
Creio que nunca tive tanta fome na vinha vida. Comi como um avestruz.
*
Depois
do desjejum, Strickland me pediu:
—
Não se vá embora. Fique comigo, a fazer-me companhia durante a noite.
Distando
minha casa apenas três milhas da de Strickland, aquele pedido me pareceu
absurdo. Mas Strickland insistiu e ia dizer-me qualquer coisa, quando Fleete o
interrompeu, dizendo, com uma expressão de constrangimento, que estava sentindo
fome novamente. Strickland mandou um homem à minha casa buscar minhas cobertas
de cama e um cavalo.
Para
passar as horas, nós três seguimos para os estábulos, a dar uma vista de olhos
pelos cavalos. O homem que tem certo fraco por cavalos jamais renuncia a uma visita
aos estábulos.
Naqueles
estábulos havia cinco cavalos.
A
cena a que assisti naquele momento jamais me será possível esquecer. Parecia
que os animais tinham enlouquecido. Eles bufavam, recuavam, agitavam-se. Os
pobres cavalos suavam copiosamente, dando coices e atirando-se contra as
paredes, como se quisessem despedaçar os tabiques em que estavam metidos.
Os
cavalos de Strickland o conheciam tão bem como seus cães; por isso, ele não
compreendia o que se estava passando. Afastamo-nos do estábulo, com medo que os
pobres animais, em pânico, acabassem por machucar-se. Logo depois, porém,
Strickland voltou às baias e chamou-me. Embora estivessem um pouco assustados,
os animais nos deixaram, entretanto, aproximar-nos e chegaram a encostar as
cabeças no nosso peito.
—
Não é de nós que eles estão com medo — disse Strickland. — Eu pagaria três
meses de meu ordenado para que “Ultrage” pudesse falar.
Mas
"Ultrage" não podia falar, naturalmente. A única coisa que ele podia
fazer era esfregar o focinho, carinhosamente, no ombro do seu dono, como fazem
os cavalos quando parece que querem explicar coisas e não o podem fazer.
Ainda
estávamos junto às baias, quando Fleete chegou. E assim que os cavalos o viram,
a sua agitação estranha recomeçou. O mais que pudemos fazer foi afastar-nos
dali, dando graças a Deus por não termos levado algum coice.
—
Parece que eles não gostam muito de você, Fleete — disse Strickland.
—
Tolices! Vocês querem ver como minha égua me segue, como se fosse um cãozinho?
A
égua de Fleete se achava numa baia separada, a pequena distância dali. Para
provar-nos o que havia dito, ele se aproximou. Mas apenas se havia encostado à
grade, ela lhe atirou um coice violento e disparou pelo jardim afora.
Eu
soltei uma gargalhada. Strickland, porém, não parecia achar graça nenhuma no
caso. Fleete, em lugar de sair em perseguição da sua montaria, começou a
bocejar, dizendo que estava louco de sono. Dali foi para casa deitar-se —
péssima maneira de passar o dia de Ano Bom.
Strickland
sentou-se, em minha companhia, nos estábulos e perguntou-me se eu não havia
notado nada de estranho nos modos de Fleete. Respondi que havia notado que ele
comia como um irracional, mas que, provavelmente, isso seria o resultado de ter
vivido tanto tempo sozinho nas montanhas, longe da sociedade mais refinada e
elevada como a nossa, por exemplo. Strickland me pareceu bastante preocupado.
Depois,
quando ele me fez outra pergunta, referindo-se às manchas que Fleete tinha no
peito, notei que ele não me prestava atenção alguma, quando eu lhe disse que
aquilo devia ser picada de mosquitos ou, então, algum pequeno sinal de
nascimento que somente agora se tornasse visível. Concordamos ambos em que eram
desagradáveis à vista e Strickland me disse que eu era um maluco, em certo
momento.
*
—
Nesse momento não lhe posso dizer o que penso exatamente — declarou ele —,
porque pareceria que estou louco; entretanto, se você concordar, quero que
fique comigo nos próximos dias. Quero que me ajude a vigiar Fleete. Não me diga
o que pensa a respeito, por agora.
—
Mas hoje tenho que jantar fora — respondi.
—
Também eu — disse Strickland. — Fleete também irá. Pelo menos, se não mudar de
parecer.
Seguimos
para o jardim, fumando, mas calados. Depois de algum tempo, resolvemos voltar
para casa, a fim de despertar Fleete. Ele estava acordado e caminhava
agitadamente em torno do quarto.
—
Escutem, — disse ele, assim que nos viu —, eu queria mais alguns bifes. Podem
arranjar-me alguns?
Soltamos
uma gargalhada.
—Vá
mudar de roupa, — disse eu. — Os cavalos não demoram aí.
—
Está bem, — disse Fleete. — Mas vou comer mais alguns bifes. Quero-os
malpassados, escorrendo sangue...
Aquilo
era estranho. Estávamos às quatro horas da tarde e à uma tínhamos feito um
grande lanche. Durante algum tempo, porém, Fleete continuou a pedir os seus
bifes malpassados. Mas, ao cabo de algum tempo, resolveu-se a ir vestir roupa
de andar a cavalo e apareceu à varanda. Seu pônei — a égua não pôde ser
apanhada — não o queria deixar chegar perto. Os três cavalos estavam impossíveis.
Tremiam de medo. Estavam ariscos, não deixavam ninguém montar. Afinal, depois
de algumas tentativas infrutíferas para subir à sela do seu pônei, Fleete nos
disse que ia renunciar ao passeio. Preferia ir comer alguma coisa.
Strickland
e eu seguimos nosso passeio sozinhos. Quando passávamos em frente ao templo de
Hanuman, o Homem de Prata saiu para fora e uivou, olhando para nós.
—
Ele não é sacerdote regular do templo — disse Strickland. — Dá-me vontade de
deitar-lhe a mão.
Os
cavalos não mostravam a fogosidade de sempre. Pareciam cansados, preguiçosos,
aquela tarde.
—Aquele
pânico da hora do desjejum foi demasiado para ele — disse Strickland.
Mas
aquela foi a única observação que ele fez em todo o nosso passeio. Uma ou duas
vezes, pareceu-me ouvi-lo resmungar qualquer coisa. Voltamos para casa ao
escurecer, às sete horas, e notamos que não havia luz alguma no bangalô.
—
Que descuidados são meus criados! — disse Strickland.
De
repente, meu cavalo deu um salto para trás. Fleete surgiu à nossa frente.
—
Que é que você andava fazendo no jardim, a arrastar-se dessa maneira? —
perguntou Strickland.
Nossos
cavalos se encabritavam de tal maneira que quase nos atiraram ao chão. Apeamos
e nos aproximamos de Fleete, que continuava de gatinhas, sobre os joelhos e as
mãos, arrastando-se por debaixo das laranjeiras
—
Que diabo há com você? — perguntou Strickland.
—
Nada, nada — respondeu Fleete, falando muito depressa. — Eu estava trabalhando
de jardineiro, de botânico. Gosto do cheiro da terra. É um perfume delicioso.
Acho que vou passar toda a noite caminhando, num passeio, num interminável
passeio.
Compreendi,
naquele momento, que havia alguma coisa muito séria em tudo aquilo, que tudo
estava fora dos eixos, e declarei imediatamente a Strickland:
—
Sabe de uma coisa? Não vou jantar fora hoje.
—É
isso mesmo — disse Strickland. — Fleete, vamos para dentro de casa, do contrário
você pode apanhar uma pneumonia. Vamos jantar e conservar as luzes acesas.
Todos nós ficaremos em casa.
Fleete
pediu com insistência:
—
Nada de luzes... Nada de luzes... Aqui está muito melhor. Deixem-me jantar aqui
fora e comer alguns bifes, bastantes bifes malpassados... escorrendo sangue...
As
tardes de dezembro do Norte da Índia são terrivelmente frias e o pedido de
Fleete só podia ser feito por um louco.
—
Vamos para dentro! — ordenou Strickland. — Vamos para dentro imediatamente!
Fleete
entrou conosco. Quando as luzes foram acesas, verificamos que ele estava
coberto de imundícies, da cabeça aos pés. Naturalmente tinha-se rolado pelo
jardim. De repente, ele saiu da sala iluminada, dirigindo-se para o seu quarto.
Seus olhos tinham uma expressão que causava horror. Havia uma luz esverdeada
por dentro deles — não sei se me compreendem —; não neles, mas por detrás
deles. Tinha o lábio inferior caído.
—
Vamos ter complicações, sérias complicações, esta noite — disse Strickland.
Esperamos
muito tempo pela volta de Fleete. Enquanto o esperávamos, mandamos servir o
jantar. Da sala, ouvíamos os seus passos, no quarto dele. Não havia luz, porém.
De repente ouvimos, partindo do seu quarto, um prolongado uivo de lobo.
Os
escritores costumam dizer, nessas situações, que o sangue gela nas veias e que
o cabelo fica de pé, ou coisa semelhante. O que eu senti foi diferente. Parecia
que um punhal havia atravessado meu coração e que este se imobilizava
imediatamente. Strickland, por seu lado, ficou branco como a toalha da mesa.
O
uivo se ouviu novamente. E outro uivo lhe respondeu, partindo do campo. Aquilo
nos levou ao auge do terror. Strickland atirou-se para dentro do quarto de
Fleete. Eu o segui. Chegamos no momento em que Fleete estava saltando para
fora, pela janela. Aquele ruído estranho, idêntico a um uivo de lobo, ele o
fazia na garganta. Quando gritamos por ele, não nos pôde responder.
Para
falar a verdade, o que se seguiu foi tão horrível que eu nem sequer me apercebi
bem da cena. Creio que Strickland lhe bateu com a bengala ou outra arma
contundente qualquer. Fleete não podia falar. Os sons que saiam da sua boca
eram, apenas, uns roncos, mais parecidos com os de um lobo do que com voz
humana. O espírito parecia que se havia separado dali e que nós estávamos
lidando, agora, com um irracional que tinha sido, um dia, Fleete. Não era
possível admitir que era um ser humano que tínhamos diante de nós.
Eu
murmurei um “hidrofobia”, embora com a convicção de que não estava dizendo a
verdade. Amarramos aquele pobre animal que tínhamos diante de nós com algumas
tiras de couro que encontramos, amordaçamo-lo com uma calçadeira, que serviu admiravelmente
para esse fim. Em seguida o carregamos para a sala de jantar e mandamos um homem
chamar Dumoise, o médico, pedindo-lhe para chegar até ali imediatamente.
Depois
que despachamos o mensageiro, Strickland me disse, sacudindo a cabeça:
—
Isso é tolice! O caso, aqui, não é para médico.
E
eu compreendi que ele tinha razão.
*
A
cabeça de Fleete estava livre e ele a agitava para um lado e para o outro.
Qualquer pessoa que entrasse na sala, naquele momento, julgaria que estávamos
tratando de um animal. Strickland sentou-se a pequena distancia, repousando o
queixo sobre a mão aberta e contemplando nosso pobre amigo, sem dizer uma só
palavra. A camisa de Fleete se havia rasgado no peito, mostrando, do lado
esquerdo, aquelas horríveis manchas negras.
Enquanto
esperávamos, ouvíamos, no silencio da sala, os uivos de lobo, que se repetiam
lá fora.
Levantamo-nos
ambos, olhando um para o outro, apavorados. Procurando enganar-me a mim mesmo,
eu disse a Strickland que devia ser algum lobo.
Dumoise
chegou e nunca vi ninguém tão admirado com o que viu. Declarou logo que se
tratava de um caso estranho de hidrofobia e que ele nada mais podia fazer.
Qualquer paliativo apenas conseguiria prolongar os seus sofrimentos. Na boca do
pobre diabo surgia, agora, uma espuma espessa.
Fleete,
na verdade, tinha sido mordido uma ou duas vezes por cachorros, como, aliás,
fatalmente acontece a quem sempre tem consigo meia dúzia de cães.
Dumoise
declarou logo que não podia ser útil em coisa alguma. A única coisa que podia
fazer, segundo disse, era passar uma certidão de que Fleete estava morrendo de
hidrofobia. Fleete, agora, continuava a uivar, pois havia conseguido, afinal,
libertar-se da mordaça. Dumoise disse, mais uma vez, que estava pronto a
fornecer o atestado de morte por hidrofobia, quando chegasse o momento e que a
morte, naturalmente, era certíssimama. Era um bom homenzinho e ofereceu-se logo
para ficar em nossa companhia; Strickland, porém, não aceitou o seu sacrifício.
Disse que não queria envenenar o Ano Bom do médico. Apenas pediu que não
divulgasse a verdadeira causa da morte de Fleete.
Dumoise,
diante disso, foi-se embora, profundamente emocionado; assim que se perdeu, ao
longe, o ruido do carro que levava o médico, Strickland me contou as suas suspeitas,
em voz muito baixa. Eram tão absurdas, aparentemente, pelo menos, que ele nem
se animava a enunciá-las em voz alta; mostrei certa resistência em concordar
com ele, não porque não estive certo de que ele tinha razão, mas porque sentia
vergonha de acreditar naquilo.
—
Qual! — disse eu. — Mesmo se o Homem de Prata tivesse enfeitiçado Fleete por
ter ofendido seu deus Hanuman, a punição não teria chegado tão depressa.
Mal
acabei de dizer essas palavras, ouviu-se, novamente, do lado de fora da casa,
aquele grito horrível.
—
Escute! — disse Strickland. — Se esse grito se ouvir seis vezes seguidas, eu
farei justiça pelas minhas próprias mãos. Exijo que você me ajude.
Assim
que disse essas palavras, ele entrou no quarto e saiu logo com o cano de uma
velha arma na mão, uma fortíssima linha de pescar e uma pesada armação de cama
de madeira. Eu lhe disse que Fleete tinha tido convulsões por duas vezes,
depois daqueles gritos, durante dois segundos, e que parecia muito enfraquecido.
—
Oh, ele não pode continuar a viver assim! Ele não pode continuar a viver dessa
maneira! — murmurou Strickland.
Eu
compreendia bem que a situação era muito grave. Entretanto, procurava iludir a
mim memo, repetindo que os uivos, lá fora, deviam ser de algum lobo.
—Se
o Homem de Prata é culpado — disse eu —, como iria atrever-se a aparecer aqui?
Strickland
colocou o encosto da cama diante do fogão e apoiou sobre ele o cano da
espingarda, cuja ponta assentava sobre o fogo, dentro do fogão.
— Como poderemos
apanhá-lo.? — perguntou ele. — É indispensável que o apanhemos vivo e sem o
machucarmos.
Aconselhei
que saíssemos com o maior cuidado, levando conosco alguns bastões de polo,
escondendo-nos entre as árvores. O homem ou animal que dava aqueles gritos
devia andar em torno da casa e nós o poderíamos ver, de dentro do bosque, sem
que ele se apercebesse da nossa presença. Assim que o apanhássemos a jeito,
saltaríamos sobre ele.
Strickland
aceitou a sugestão. Saltamos pela janela do banheiro e tomamos pela estrada que
ia dar no bosque próximo.
Pouco
depois vimos, ao luar, o leproso, que se aproximava e rondava a casa,
contornando-a sem parar. Estava completamente nu e de quando em quando soltava
um uivo, parando para dançar. O quadro não era nada agradável e, pensando no
pobre Fleete, que havia sido arrastado à última degradação por aquele
miserável, decidi-me imediatamente a prestar a Strickland todo o auxílio, mesmo
que ele fosse empregar aquele cano de arma aquecido ao fogo ou qualquer outra
tortura que inventasse.
O
leproso parou, repentinamente, em frente à porta e nós saltamos junto dele,
munidos de nossos bastões de polo. Era extraordinariamente forte e tivemos medo
de que nos escapasse ou de que o viéssemos a ferir, involuntariamente. Sempre
havíamos imaginado que os leprosos fossem homens muito fracos, mas naquele momento
tivemos a prova do contrário. Strickland lhe deu um pontapé e segurou-o,
derrubando-o e pondo sobre ele um joelho, enquanto eu procurava as cordas para que
ele fosse o amarrado. O leproso uivou sinistramente.
Quando
voltei com as cordas, amarrei-o pela cintura e pelos braços e o arrastamos,
pela parte traseira da casa, até o hall e, finalmente, até a sala de
jantar, onde se encontrava Fleete.
O
homem não tentava fugir. Limitava-se a uivar, de quando em quando. No momento
em que o colocamos diante de Fleete, a cena foi impressionante. Este se
encolheu todo, torceu-se para trás, em convulsões horríveis, como se estivesse
envenenado com estricnina, e gemia terrivelmente.
— Agora é que vamos saber se eu tinha razão ou
não. Vamos obrigá-lo a curar Fleete — disse Strickland.
O
leproso se limitava a uivar. Strickland enrolou uma toalha molhada na mão e
segurou com ela o cano da arma que tinha estado ao togo todo aquele tempo.
Enfiando
os pedaços de bengala na armadilha da corda que prendia o leproso, eu o
levantei com muito cuidado e o coloquei sobre a guarda da cama que Strickland
havia colocado sobre o fogão.
Francamente,
ainda hoje não compreendo como tive coragem para assistir àquela cena, e — mais
do que isso — ajudar a martirizar um homem daquela maneira. Enfim, é melhor silenciar
sobre esta parte da história.
*
Começava
a romper a aurora, quando o leproso se decidiu a falar. Agora, reinava silencio
em toda a casa, pois, ao que parecia, o próprio Fleete se havia cansado de
uivar e gemer.
Quando
achamos que havia chegado o momento oportuno, exigimos do leproso que fizesse
seu trabalho no sentido de afastar o mau espírito que se havia apoderado de
Fleete. Ele se arrastou até onde estava Fleete e estendeu uma mão, colocando-a
sobre o lado esquerdo do peito deste. Em seguida, encostou a cabeça àquele
ponto onde haviam aparecido as manchas escuras, como o tinha feito da outra
vez. Enquanto ele assim procedia, nós observávamos atentamente o rosto de
Fleete. E vimos que, pouco a pouco, a alma do nosso amigo regressava aos seus
olhos. De repente, o suor começou a escorrer da sua fronte e seus olhos se
cerraram. Durante uma hora ficamos ali, atentos, esperando. Fleete continuava a
dormir. Carregamo-lo para o seu quarto e demos ordem ao leproso para que se
fosse embora, dando-lhe um lençol para que ele cobrisse o seu corpo nu, assim
como as toalhas, as cordas e tudo quanto havia estado em contacto com seu corpo
em decomposição. Ele se enrolou no lençol e saiu para a rua, sem dizer uma só palavra
e sem uivar mais. Strickland enxugou o rosto e sentou-se. Um gongo qualquer bateu,
na cidade, sete horas.
—
Exatamente vinte e quatro horas! — disse Strickland. — Será, mesmo, verdade que
aconteceu tudo isso a que acabamos de assistir? Não terá sido um pesadelo?
Naquele
momento, como que para responder-lhe, o cano da espingarda aquecido ao rubro
caiu ao chão e começou a queimar o soalho. O cheiro da madeira queimada era
perfeitamente real.
Às
onze horas fomos acordar Fleete. Examinamos o seu peito e vimos que as manchas
escuras tinham desaparecido. Ele estava cansadíssimo, mas, assim que nos viu,
disse:
—
Oh, desculpem-me, camaradas! Feliz Ano Novo! Nunca misturem licores, eis o
conselho que lhes dou. Quase morri por ter feito essa loucura.
—
Obrigado pela sua gentileza, mas você está fora de tempo, meu caro. Hoje é o
segundo dia do ano.
Naquele
momento, a porta se abriu e Dumoise meteu a cabeça por ela. Tinha vindo a pé e
entrou no quarto, ao saber que estávamos junto de Fleete.
—
Eu trouxe uma enfermeira — disse Dumoise. — Creio que ela poderá ser
necessária...
—
Mas sem dúvida — disse Fleete, sentando-se na cama. — Mande entrar sua
enfermeira.
Dumoise
estava atônito. Strickland o chamou de parte e explicou-lhe que ele se havia
enganado no diagnóstico. Dumoise ficou como tonto, ao saber do que se passava,
e deixou a casa imediatamente. Strickland saiu pouco depois. Quando voltou,
disse que havia estado no templo oferecendo-se para reparar a ofensa feita ao
deus e tinha assegurado que nunca mais branco nenhum se atreveria a tocar na
imagem. Depois de um breve silencio, Strickland se voltou para mim e
perguntou-me:
—
Afinal... que é que você acha de tudo isso?
—
Eu acho que... há muita coisa inexplicável...
Mas
aconteceu outra coisa estranha, que me assustou mais do que tudo quanto havia
acontecido na noite tumultuosa da véspera. Quando Fleete se vestiu, apareceu na
sala de jantar e respirou profundamente. Ele tinha uma maneira especial de
torcer o nariz, quando fazia aquilo.
—
Que horrível cheiro de cachorro há aqui! — disse ele. — Você não cuida direito
de seus cães, Strick?
Mas
Strickland não respondeu. Foi tomado, naquele momento, de um verdadeiro ataque
histérico. Posso garantir-lhe que não há nada mais impressionante do que ver um
homem forte assaltado por um ataque histérico.
E,
de repente, eu tive umas ideias trágicas. Ocorreu-me ao pensa- mento que nós
tínhamos lutado com o Homem de Prata pela salvação da alma de Fleete naquela
sala e que havíamos perdido as nossas, tendo estragado para sempre as nossas
vidas. E, então, sem me poder dominar, comecei, também, a dar gritos, a soltar
gargalhadas, a espernear e debater-me, como estava fazendo Strickland.
Fleete
nos olhava a ambos com os olhos arregalados, como se nos visse enlouquecer repentinamente.
Alguns
anos mais tarde, quando Strickland se casou, eu tive ocasião de recordar-lhe o
episódio e ele me sugeriu a ideia de escrevê-lo para o público.
Não
sei se esta história concorrerá para que alguém procure a explicação do
mistério. Não creio que concorra, primeiro porque numa história estranha como
esta muito pouca gente acreditará; depois, porque todos sabem que os deuses
pagãos são de pedra ou bronze e que procurar compreendê-los é pecado.
Tradução de autor
desconhecido.
Fonte: “A Cigarra”,
fevereiro de 1943.
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