O LOBISOMEM - Conto Clássico de Terror - Eugene Field
O LOBISOMEM
Eugene Field
(1850 – 1895)
Tradução de Paulo Soriano
No reinado de Egberto, o
saxão, vivia na Bretanha uma donzela chamada Yseult, que era amada por todos,
tanto por sua bondade quanto por sua beleza. Mas, embora muitos jovens
viessem cortejá-la, ela amava somente Harold, e a ele lançou o seu troféu.
Entre os outros jovens que a
amavam estava Alfred. Estava furioso porque Yseult preferira Harold, de modo
que, um dia, Alfred disse a Harold:
— Seria justo que o velho
Siegfried saísse de seu túmulo e tomasse Yseult por esposa?
Em seguida,
acrescentou:
— Por favor, bom cavalheiro,
por que fica tão pálido quando eu toco no nome do seu avô?
Então Harold perguntou:
— O que você sabe de
Siegfried, para me insultar? O que, em sua memória, deveria afetar-me agora?
— Ora, nós bem o sabemos —
retrucou Alfred. — Há algumas histórias contadas por nossas avós das
quais não nos esquecemos.
Então, desde então, as
palavras e o sorriso amargo de Alfred perseguiram Harold dia e noite.
O avô de Harold, Siegfried,
o teutão, fora um homem violento e cruel. Reza a lenda que uma maldição
caiu sobre ele, e que em certas circunstâncias ele era possuído por um espírito
maligno, que despejava a sua fúria sobre a humanidade. Mas Siegfried já
estava morto há muitos anos e nada havia que o trouxesse à memória dos homens,
salvo uma lenda sobre uma lança habilmente forjada, que ele obtivera de
Brunehilde, a bruxa. Essa lança era uma arma que nunca perdia seu brilho,
e a sua ponta conservava sempre o fio. Estava pendurada na câmara de
Harold e era a maravilha entre as armas da época.
Yseult sabia que Alfred a
amava, mas desconhecia as palavras amargas que Alfred dissera a
Harold. Seu amor por Harold era irretocável em sua confiança e
gentileza. Mas Alfred ferira a verdade: a maldição do velho Siegfried recaíra
sobre Harold; adormecida por um século, despertara no sangue do neto. Harold tinha
consciência da maldição o oprimia, e era isso que parecia interpor-se entre ele
e Yseult. Mas o amor é mais forte do que tudo, e Harold amava.
Harold não contou a Yseult
sobre a maldição que recaíra sobre ele, pois temia que, se soubesse, ela não
mais o amaria. Sempre que sentia o fogo da maldição queimando em suas
veias, dizia a ela:
—Amanhã vou caçar o javali
na floresta mais remota.
Ou:
— Na próxima semana, irei
perseguir os cervos entre as longínquas colinas do norte.
Mesmo assim, ele sempre arranjava
uma boa desculpa para sua ausência, e Yseult não sucumbia aos maus pensamentos,
pois confiava em seu amado. Malgrado, já há algum tempo, ele tenha desparecido diversas
vezes, Yseult não suspeitava de que houvesse algo de errado. Portanto, ninguém
via Harold quando a maldição, violentamente, manifestava-se nele.
Alfred, sozinho, tinha maus
pensamentos.
— É bem estranho — dizia — que
de vez em quando esse amante galante fuja de nossa companhia e se refugie sabe
Deus onde. Na verdade, será bom ficar de olho no neto do velho Siegfried.
Harold sabia que Alfred o
observava zelosamente e era atormentado por um medo constante de que o rival
descobrisse a maldição que estava sobre ele. Mas o que lhe causava maior aflição
era o receio de que, em algum momento, quando ele estivesse na presença de
Yseult, a maldição se apoderasse de seu espírito e o levasse a fazer um grande
mal à amada, pelo qual ela seria aniquilada, ou seu amor por ele estaria para
sempre dissolvido. Portanto, Harold vivia aterrorizado, sentindo que seu
amor não tinha esperança, embora não soubesse como combatê-lo.
Acontece que, naqueles
tempos, um lobisomem devastava o país. Era
uma criatura temida por todos os homens, por mais corajosos que fossem. Homem
durante o dia e, à noite, um lobo dado à devastação e ao abate, este lobisomem
tinha uma existência encantada, contra a qual nenhum expediente humano
revelava-se eficaz. Aonde quer que fosse, a fera atacava e devorava a
humanidade, espalhando terror e desolação por todos os lados, e os intérpretes dos
sonhos diziam que a terra não seria libertada do lobisomem até que algum homem,
voluntariamente, oferecesse a si mesmo em sacrifício à fúria do monstro.
Ora, conquanto Harold fosse
conhecido em toda parte como um hábil caçador, ele nunca se propusera caçar o
lobisomem e, por estranho que pareça, o lobisomem jamais assolava aqueles
domínios enquanto Harold estava presente.
Aquilo muito maravilhava
Alfred, que, muitas vezes dizia:
— O nosso Haroldo é um
caçador maravilhoso. Quem se iguala a ele ao perseguir a corça tímida e mutilar
o javali em fuga? Mas o quão ele se dá bem, durante a sua ausência, por ocasião
das assombrações do lobisomem. O quão corajoso se nos apresenta o nosso jovem
Siegfried!
Aqueles comentários chegaram
a Harold. Embora o seu coração ardesse de raiva, ele nada respondeu, para não
trair a verdade que temia.
Aconteceu que, por aquela
época, Yseult disse a Harold:
— Gostaria de ir comigo, amanhã mesmo, à festa
no bosque sagrado?
— Não posso ir ao bosque com
você — respondeu Harold. — Fui secretamente convocado para Normandia, numa
missão sobre a qual algum dia lhe contarei. E rogo-lhe, pelo amor que me devota,
não vá à festa no bosque sagrado sem mim.
— O que está me dizendo? — exclamou
Yseult. — Não devo ir à festa de Santa Aelfreda? Meu pai ficaria
extremamente desgostoso se eu não estivesse lá com as outras donzelas. Lamento,
Harold. Apesar do amor que lhe devoto, eu irei.
— Não vá! Eu lhe suplico! — implorou
Harold. — Não vá à festa de Santa Aelfreda no bosque sagrado! Assim,
cumpriria o amor que tem por mim. Não vá! Veja, você é minha vida! De joelhos, eu
lhe imploro!
— Como você está pálido —
disse Yseult — e trêmulo!
— Não vá para o bosque
sagrado amanhã à noite! — implorou.
Yseult ficou maravilhada com
aqueles gestos e palavras. Então, pela primeira vez, ela pensou que ele
tinha ciúmes — algo de que, secretamente, se alegrou (por ser mulher).
— Ah — disse ela —, você
duvida do meu amor!
Mas quando viu uma expressão de dor surgir no
rosto do amado, ela acrescentou, como se se arrependesse das palavras que havia
falado:
— Ou você teme o lobisomem?
Então Harold respondeu,
fixando os olhos nos dela:
— Você o disse. É o
lobisomem que temo.
— Por que me olha tão
estranhamente, Harold? — exclamou Yseult. — Pelo brilho cruel em
seus olhos, quase que se pode tomá-lo por lobisomem!
— Venha cá, sente-se ao meu
lado — disse Harold, trêmulo. — Eu vou lhe dizer por que temo a sua presença na
festa de Santa Aelfreda, amanhã à noite. Ouça o que eu sonhei noite passada. Eu
sonhei que era o lobisomem — não estremeça, querido amor, pois foi apenas um
sonho.
“Um velhote grisalho estava
ao lado da minha cama e se esforçava por arrancar a minha alma de meu peito.
“— O que você quer? —
gritei.
“— A sua alma é minha —
disse ele. — Você viverá a minha maldição. Dê-me sua alma — devolva-me as suas
mãos —, dê-me sua alma, eu lhe digo!
“— Sua maldição não cairá
sobre mim — gritei. — O que eu fiz para
que a sua maldição recaísse sobre mim? Não terá minha alma!
“—Pela minha ofensa você sofrerá,
e na minha maldição suportará o inferno. Assim foi decretado.
“Assim falou o velhote. E ele
lutou comigo, e prevaleceu sobre mim. Arrancou minha alma do meu peito e disse:
“—Vá, procure e mate!
“E eis, eu era um lobo sobre
a charneca.
“A relva seca estalava sob
meus passos. A escuridão da noite era pesada e me oprimia. Estranhos horrores
torturavam minha alma, e ela gemia e gemia, presa naquele corpo de lobo. O
vento sussurrava em meus ouvidos. Com suas miríades de vozes, ele falou comigo,
dizendo-me:
“— Vá, procure e mate!
“E, acima dessas vozes,
soava o riso hediondo de um homem velho. Eu fugi da charneca — para onde, eu
não sabia; nem sabia por que motivo me oprimia.
“Cheguei a um rio e nele mergulhei.
Uma sede ardente me consumia e lambi as águas do rio — eram ondas de chamas e
elas cintilavam e sibilavam ao meu redor, e o que elas diziam era isto:
“—Vá, procure e mate!
“E ouvi a risada do velhote
novamente.
“Uma floresta surgiu à minha
frente, com seus arbustos sombrios e suas sombras profundas — com seus corvos,
seus vampiros, suas serpentes, seus répteis e toda a sua hedionda ninhada da
noite. Eu disparei entre seus espinhos e me agachei entre as folhas, as urtigas
e as silvas.
“As corujas atiraram-se sobre
mim e os espinhos transpassaram a minha carne.
“—Vá, procure e mate! — tudo
me dizia.
“As lebres brotaram no meu
caminho; os outros animais correram a berrar. Todas as formas de vida gritavam
nos meus ouvidos — a maldição estava sobre mim: eu era o lobisomem.
“Segui em frente com a
rapidez do vento, e minha alma gemia em sua prisão de lobo, e os ventos e as
águas e as árvores me ordenavam:
“—Vá, procure e mate, seu
maldito bruto! Vá, procure e mate!
“Em nenhum lugar havia piedade
para o lobo. Que misericórdia, portanto, eu, o lobisomem, deveria mostrar? A
maldição estava sobre mim e me enchia de fome e de sede de sangue. Deixe-me ter
sangue, oh, deixe-me ter sangue humano, para que essa cólera seja aplacada,
para que essa maldição seja removida!
“Por fim, cheguei ao bosque
sagrado. Os choupos assomavam taciturnos, os carvalhos lançavam-me olhares de
desaprovação. Diante de mim estava um homem velho — era ele, grisalho e
zombeteiro, cuja maldição eu carregava. Ele não me temia. Todas as outras
coisas vivas fugiam à minha presença, mas o velhote não me temia. Uma donzela
postou-se ao lado dele. Ela não me viu, porque era cega.
“—Mate, mate! — gritou o
velho, e apontou para a garota ao seu lado.
"O inferno enfureceu-se
dentro de mim — a maldição me impeliu —, e eu saltei em sua garganta. Ouvi a
risada do velho mais uma vez, e então — então eu acordei, tremendo, com frio,
horrorizado”.
Mal Harold havia terminado
de contar o sonho, Alfred apareceu.
— Por Nossa Senhora — disse
ele —, eu acho que nunca vi um casal mais tristonho.
Então Yseult contou-lhe sobre
a partida de Harold e como este lhe implorara a não se aventurar na festa de
Santa Aelfreda, no bosque sagrado.
— Esses receios são pueris —
gritou, orgulhosamente, Alfred. —E se me permite, doce senhora, eu a
acompanharei no banquete, e uma vintena de meus vigorosos alabardeiros, com
seus bons arcos de teixos e lanças certeiras, estarão comigo. Nenhum lobisomem,
eu creio, terá chance conosco.
Então Yseult riu
alegremente, e Harold disse:
— Está bem. Vá ao bosque
sagrado e que meu amor e a graça do Céu a proteja de todo o mal.
Então Harold foi à sua
morada e trouxe consigo a lança do velho Siegfried.
Depositou a lança nas mãos
de Yseult, dizendo:
— Leve consigo esta lança à
festa de amanhã, à noite. É a lança do velho Siegfried, que possui uma poderosa
e maravilhosa virtude.
E Harold levou Yseult ao seu
coração e a abençoou. Beijou-a na fronte e nos lábios, dizendo:
—Adeus, oh, minha amada!
Como você me amará quando souber do meu sacrifício! Adeus, adeus para sempre,
oh, minha adorada!
Então Harold seguiu seu
caminho e Yseult ficou maravilhada.
Na noite seguinte, Yseult
foi ao bosque sagrado, onde o banquete era servido, levando consigo, no cinto, a
lança do velho Siegfried. Alfred fazia-lhe companhia, e uma vintena de vigorosos
alabardeiros estava com ele. No bosque havia grande alegria, e com cantos,
danças e jogos, o povo honesto celebrava a festa da bela Santa Aelfreda.
Mas, de súbito, um grande
tumulto eclodiu e houve gritos de "o lobisomem!", "o
lobisomem!". O terror se apoderou de todos — corações fortes
congelaram de pavor. Do outro lado da floresta, saiu o lobisomem, furioso,
berrando com voz rouca, rangendo as presas e atirando para lá e para cá a
espuma amarela de suas mandíbulas estaladiças. Ele procurou diretamente
Yseult, como se um poder maligno o atraísse para o local onde ela
estava. Mas Yseult não estava com medo. Como uma estátua de mármore, ela
se levantou e viu o lobisomem chegando. Os alabardeiros, deixando cair as suas
tochas e abandonando os seus arcos, haviam fugido. Alfred ficou sozinho para
combater o monstro.
Ele arremessou sua lança
pesada conta o lobo, que se aproximava, mas quando chegou às costas eriçadas do
lobisomem, a arma adernou.
Então o lobisomem, fixando
os olhos em Yseult, escondeu-se por um momento na sombra dos teixos. E, pensando
nas palavras de Harold, Yseult arrancou a lança do velho Siegfried de seu
cinto, ergueu-a bem alto e, com a força do desespero, projetou-a rapidamente no
ar.
O lobisomem viu a arma
brilhante, e um grito rebentou de sua garganta aberta — um grito de agonia
humana. E Yseult viu no lobisomem os olhos de alguém que ela tinha visto e
conhecido, mas foi apenas por um instante, pois, depois, aqueles olhos não eram
mais humanos, senão lupinos em sua ferocidade.
Uma força sobrenatural
parecia acelerar a lança em seu voo. Com terrível precisão, a arma atingiu
o alvo e enterrou-se pela metade de seu comprimento no peito desgrenhado do
lobisomem, logo acima do coração. Então, com um suspiro monstruoso — como se
ele tivesse entregado a sua vida sem arrependimento — o lobisomem caiu, morto, à
sombra de os teixos.
Então — ah! —, então, na
verdade, houve grande alegria, e em voz alta eram proferidas as aclamações,
enquanto, bela em sua trêmula palidez, Yseult era conduzida até a sua casa,
onde o povo pôs-se a dar um grande banquete em sua homenagem, pois o lobisomem
estava morto, e fora ela quem o matou.
Mas Yseult gritou:
—Vá, procure Harold! Vá,
traga-o para mim. Não coma nem durma até que ele seja encontrado.
— Minha senhora — disse
Alfred —, como posso fazê-lo, já que ele se dirigiu à Normandia?
— Não me importa onde ele
esteja! — ela gritou. — Meu coração congelar-se-á em meu peito, até que
eu o olhe novamente nos olhos.
— Certamente, ele não foi
para a Normandia — disse Hubert. —À tardinha, eu o vi entrar em sua
residência.
Eles se apressaram para lá —
uma vasta companhia. A porta de seu quarto estava trancada.
— Harold, Harold, venha! — gritaram,
enquanto batiam na porta, mas nenhuma resposta seguiu-se aos chamados e batidas. Temerosos,
derrubaram a porta e, quando ela caiu, viram que Harold estava deitado em sua
cama.
— Ele dorme — disse alguém.
— Vejam, ele segura um retrato na sua mão. E é o retrato dela. Como ele é leal
e como dorme tranquilo!
Mas não, Harold não estava
dormindo. Seu rosto estava calmo e belo, como se ele sonhasse com sua
amada. Mas o seu traje estava vermelho com o sangue que escorria de uma ferida
em seu peito — uma horrível ferida aberta logo acima de seu coração.
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