A DAMA DA MORTALHA - Conto de Terror - Paulo Soriano



A DAMA DA MORTALHA

Paulo Soriano

 

 

O bebê de tarlatana rosa emborcara no chão

 com a caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço,

 mostrando singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos.

João do Rio

 

— Ah, meu jovem Saul! Você é advogado e sabe muito dessa coisa injusta à qual chamamos Direito — disse-me o velho Roberval, numa Terça-Feira de Carnaval. — Deve ter estudado História do Direito, não é mesmo?

— Somente um pouco de Direito Romano, confesso.

— Sim, sim! — prosseguiu Roberval. — Os jovens não estudam mais essas coisas enfadonhas e antiquadas. Mas estou certo de que você pouco sabe da real “prática jurídica” de outrora.

— Isso é verdade. Mas o que tem isto a ver com o Carnaval? — indaguei.

— Bem — prosseguiu o ancião, bebericando a cervejinha —, tudo aconteceu, justamente, numa Terça-Feira Gorda. O bloco descera a Federação e passava, agora, à frente do  Campo Santo, o cemitério mais circunspecto de Salvador. Nessa época, tocavam-se samba e frevo. Nada desse axé petulante. Firmino adorava frevo. Sabia dar autênticos passos frenéticos, qual um recifense habilidoso. Uma maravilha! Mas era um vilão, o Firmino...

— Por quê?

— É aqui que entra a tal da “prática jurídica” de outrora. Firmino matara a mulher — a linda Alfreda, uma mulher maravilhosa... dócil e loura como um anjo renascentista — com um tiro na boca. E se safara, alegando “legítima defesa da honra”, e mais outras coisas absurdas de estilo... coisas monstruosas, que nos envergonham até hoje. Arranjou testemunhas de araque, que corroboraram as suas mentiras, e tudo mais. E era tudo balela! Alfreda, filha do Comendador Tertuliano, era uma santa! Eu garanto! Conhecia-a muito bem, desde a infância...

— Não acredito! Foi mesmo absolvido?

— Pois é claro, Saul! — gritou o ancião, com uma irritação frustrada. — “Legítima defesa da honra” era o passaporte à impunidade e à condenação post mortem de mulheres honestas. Mulheres puras, mas cruelmente assassinadas por seus maridos escroques, ambiciosos...

— Mas o que aconteceu à frente do Campo Santo?

— Algo macabro, meu jovem!  Macabro ao extremo! Naquele tempo — prosseguiu meu idoso companheiro de bar —, quase todo mundo se fantasiava com uma mortalha. Com capuz e luvas. Lembra-se? Ah, não, meu caro doutor... Você é muito jovem! Parecia-se com a indumentária de verdugo, a mortalha. Ou de “ceifador”, aquela coisa terrível com gadanha em punho. Ou daquelas figuras sinistras da Inquisição. Pois bem... Por um momento, na fanfarra, eu perdi Firmino de vista. Sabia que ele arranjara uma paquera e agora estava a namorar, encostado ao muro, junto ao portão principal, como sempre. Disso, eu não tinha dúvida. Era o jovem viúvo mais volúvel do mundo. Fui encontrá-lo adiante. Era quase noite e ele estava abraçado a uma mortalha feminina, quase à entrada do Campo Santo.  De repente, vi que Firmino caía. Ia ao chão com os olhos esbugalhados, cheios de sangue e terror. Olhei para a mulher-mortalha. Ela havia acabado de tirar o capuz e mirava Firmino com seus olhos baços e putrefeitos. Saídos de uma fenda circular e escura, os vermes contorciam-se... bailavam, trêmulos, naqueles lábios frios de mulher morta. Um cheiro pútrido chegou-me ao nariz quando ela disse, baixinho, olhando para o homem que acabara de morrer — sim, de susto! — aos seus pés, com seu sorriso nauseabundo e disforme: “— Revertere ad vermes!”. Depois, aquela tétrica figura loura — aquela garça úmida e sombria — esvoaçou agilmente e penetrou no cemitério, sibilante como uma réstia sinistra. Seus cabelos adejavam e se contorciam avidamente, tão terríveis quanto as serpentes ondulantes de Medusa...

— Mas...

— Quanto a mim?  — disse-me Roberval, com um surpreendente sorriso. — Com certeza, desmaiei. Acharam que eu bebera demais. Mas a verdade é que, desde então, jamais voltei a me fantasiar com mortalhas e a transpor os portais de um cemitério... 


Narrativa orginariamente publicada em 17/02/2023

Ouça este conto na maravilhosa locução e interpretação de Marcelo Fávaro:



Comentários

  1. Muy bueno Paulo... ánimo.

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  2. Mas que conto magnífico, caro Barão! Todo em forma de diálogos. E através das personagens, numa tensão aziaga, podemos entender a sombria natureza humana e os seres sombrios do mundo sobrenatural. Uma obra prima, esse conto!

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  3. Muito bom o conto 👍

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