O DRAGÃO DE RODES - Conto Clásico Fantástico - Padre Manuel Bernardes
O DRAGÃO DE RODES
Padre Manuel Bernardes
(1644 – 1710)
Na
ilha de Rodes, não longe da igreja de Santo Estêvão, há uma eminente e soberba
rocha, solapada nas raízes com uma cova profundíssima, donde, como de funeral
garganta, mana um regato de moderada corrente. Nesta cova tinha sua morada
subterrânea um dragão tão horrendo, disforme e formidável, que não somente
infestava toda a parte oriental da ilha, com ruína e mortandade dos homens e os
gados, mas ainda, só com o hálito venenoso, corrompia os ares; de modo que sem
manifesto risco da vida ninguém podia chegar-se àquele sítio. Causa por que o
Grão-Mestre da Religião Jerosolimitana, por público édito seu, fizera defeso
aquele passo a qualquer condição de pessoas, cominando aos mesmos cavaleiros da
Ordem pena de privação do hábito, e de morte, por onde foi chamado comumente
aquele lugar Mal Passo.
Havia
naquele tempo um cavaleiro, mancebo nobilíssimo, natural de Gasconha, dotado de
forças, assim do coração como do corpo, por nome frei Adeodato de Gozon.
Reputou este por coisa indigna e de não leve opróbrio para os cavaleiros da
Ordem que, entre tantos e tão esforçados, não houvesse algum que ousasse
opor-se a esta comum calamidade, para reparar os danos públicos. E, inflamado
do desejo de honra e fama imortal, e também do amor da república, entendeu que
não podia oferecer-se melhor ocasião de livrar a ilha de opressão tão grave e
adquirir nome esclarecido, que saindo com um novo e estupendo desafio a pelejar
com este monstro; confiando do favor do Céu e justiça da causa, que sua
fortaleza e indústria teriam feliz êxito nesta nunca ouvida empresa. Porém,
porque o édito do Grão-Mestre obstava a seus intentos, se os comunicasse,
começou a maquinar como poderia, só e sem dar parte a alguém, conseguir o fim
deles.
Primeiramente,
chegando ao lugar da rocha com cautela e segredo, observou, como desde uma
atalaia, a grandeza e forma do dragão, a qual era esta, como se viu depois mais
perto. O corpo tinha a grossura de um grande boi; o colo, comprido e áspero,
acabava em cabeça de serpente; e nela tinha orelhas compridas, à semelhança de
mu; a boca, mui rasgada e armada de agudíssimas presas; os olhos, grandes e
atrozes, fuzilando lume. Tinha quatro pés, à maneira dos de urso, com unhas
como fouces afiadas; o mais corpo e cauda, totalmente como de crocodilo; porém
todo ele coberto (ou digamos catafracto), de uma continuada malha de conchas
impenetráveis, sobrepostas umas a outras com travação fortíssima. Das ilhargas
se estendiam duas asas de grossa cartilagem, com barbatanas como as dos
golfinhos, pela parte de cima azul, pela debaixo de sangue misturado de pálido;
e desta cor era o mais corpo, com suas malhas. Corria tão velozmente (porque
juntamente se aproveitava dos pés e das asas) que um cavalo, fugindo com o mais
desapoderado ímpeto, lhe não escapava. Quando este irracional Caco saía da sua
caverna a buscar presa, com o ruído das duras escamas e com o silvo poderoso,
quase matava de medo os animais que, ainda de longe, o ouviam. Temos proposto a
forma do monstro: vejamos o desafio. O valoroso Adeodato, havendo já observado
quanto me era necessário, alcançou licença do Grão-Mestre para deter-se algum
tempo na pátria, sob pretexto de negócios domésticos; e, partindo logo sem
demora, começou a prevenção da destinada obra. Mandou figurar de estopa e pasta
o feitio próprio da fera, remedando quanto foi possível à semelhança natural,
que trazia impressa em sua fantasia. Logo comprou o mais fogoso e forte cavalo
que pôde achar, e dois mastins de Inglaterra, corpulentos e ferozes (dizem que,
para saírem de melhor raça, atam ali às árvores as cadelas, onde as possam
achar os tigres).
Isto
assim aparelhado, fazia, por indústria de alguns criados fiéis, entrar e sair
de uma cova o dragão fingido; e, por meio de cordas e vários engenhos, abrir a
boca, bater as asas, torcer a cauda, etc. Logo, instigava os cães, e picava o
cavalo, e brandia a lança, e se exercitava em fingido conflito com aquele
mentiroso monstro. Neste ensaio continuou dois meses, até que, estando bem
adestrado, voltou para Rodes, onde, sem interpor demora, se armou de armas
defensivas e ofensivas, e na dita igreja de S. Estêvão com larga oração se
encomendou a Deus, por intercessão do mesmo glorioso protomártir e do patrono
da Ordem, S. João Baptista. E logo, montando naquele mesmo cavalo, foi a
demandar, animoso, a cova do dragão, dando primeiro ordem aos criados que,
subindo-se à rocha, vissem o sucesso do desafio. No qual, se ele morresse,
ficando a fera viva, tratassem de salvar-se, fugindo; mas, se vissem que ele
ficava desacordado, por causa do pestífero alento do dragão, acudissem
prontamente com poderosos contravenenos, de que iam apercebidos, para
confortá-lo.
Entra,
pois, o esforçado cavaleiro pelo boqueirão da bruta caverna; e, não sentindo
cousa alguma, fez ruído e deu vozes para provocar a fera. E logo, pelo arrojar
do escamoso corpo e pelo silvo horrível, sentiu que vinha subindo pela garganta
da tenebrosa gruta. Então se saiu com presteza e esperou fora, em uma planície,
ao seu competidor. O qual, dando a presa já por pasto de suas vorazes
entranhas, correndo e voando juntamente, investiu a ele com furibunda sanha.
Porém o intrépido antagonista, metendo pernas ao ginete e instigando aos
coléricos mastins, que, de tão largo tempo adestrados, não estranharam o
horrível e disforme do monstro, abalou contra ele e lhe descarregou sobre as
conchas uma tão poderosa e valente lançada, que a lança, bem que firme, estalou
em pedaços, deixando aquele robusto braço destituído da principal peça de suas
armas. Mas, porque os salões tinham ferrado fortemente dos genitais da fera, e
a atormentavam duramente, enquanto se defendia deles teve Adeodato lugar de
apear-se; e, metendo mão a uma espada larga, começar novo e mais empenhado
combate. Então a fera, chamejando-lhe os olhos áscuas vivas de ira, ergueu-se
sobre os pés e, desembainhando as garras das mãos, pretendeu com uma pegar-lhe
do broquel e com a outra derribar em terra ao seu competidor. Mas ele, tomando
coragem do seu mesmo perigo, e vendo descoberta a parte anterior do colo, que
era mais mole, lhe ensopou nele a espada tão felizmente, que logo começou a
vazar-se em espadanas de sangueira. E, todavia, estimulado o dragão com nova
ira causada da dor, ergue o colo, forcejando por chegar a seu contrário: mas
isso mesmo lhe fez a ferida mais vasta e rasgada. Porque, sustentando Adeodato
a espada firme, mais lhe servia já de serra do que de espada, com que lhe veio
a escalar toda a garganta, por onde, exausta já de sangue, caiu, enfim, morta,
levando de baixo a Adeodato, que, cansado do conflito, e atenuadas as forças com
o muito dispêndio de espírito que o ardor da luta derramara, não pôde sustentar
o grave peso da disforme besta, e ficou desmaiado, pela atividade do pestífero
fartum que exalava.
Era
este o precioso ponto em que necessitava da fidelidade e diligência dos seus
criados (que, se fossem igualmente animosos como seu amo, por ventura lhe não
guardariam tão pontualmente a palavra de não acudir antes). Descem prontos,
apartam com trabalhos aquele cadaveroso volume que tantas vidas sepultara e,
ainda jazendo imóvel, afugentava os olhos e mãos dos que o arrojavam[1].
Tiram debaixo a Adeodato, quase sem sinais de vivo, porém já com glórias de
vencedor. Trazem nos chapéus água fria da vizinha fonte, que, lançada sobre o
rosto, e aplicados os antídotos, o fez tornar em si. Passado o tempo que foi
necessário para os mais fomentos convenientes, voltaram, enfim, para a cidade,
onde o Grão-Mestre soube logo do que havia passado. E, podendo Adeodato daqui
esperar honra e favor, sucedeu pelo contrário; porque ele, convocando os do seu
conselho, em presença de todos o repreendeu asperamente, assim pela ousadia
presuntuosa como pela violação do edital, em cujo cumprimento foi privado do
hábito, e preso em um duro cárcere.
Entretanto,
divulgada a façanha por toda a ilha, e alvoroçados os corações com alegria,
aclamavam e aplaudiam a seu libertador. Com que o Grão-Mestre, havendo dado já
lugar bastante aos rigores da justiça, tornou sobre si, considerando não tanto
os meios arriscados, quanto o próspero fim daquela proeza, e o grande trabalho
e merecimento do cavaleiro, de que redundava a toda Ordem grande crédito, e não
somente o soltou e restituiu ao hábito, mas o honrou com novas dignidades.
Nelas se portou com tanta prudência e esforços nas ocasiões se que ofereceram
que passados quatro anos, no ano de 1394, por morte do Grão-Mestre, foi eleito
em seu lugar com votos a frouxo[2].
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