O FANTASMA DA NEVE - Conto Clássico de Terror - Richard Gordon Smith
O FANTASMA DA
NEVE
Richard Gordon Smith
(1858 – 1918)
Tradução de Paulo Soriano
Na
província de Echigo, em frente à Ilha de Sado, no Mar do Japão, a neve cai
pesadamente. Às vezes, acumulam-se sete metros acima do chão. Muitas foram as
pessoas que sepultadas pela neve, cujos corpos não foram encontrados até a
primavera. Há muitos anos, três companhias de soldados, com exceção de três ou
quatro homens, foram dizimadas em Aowomori.
E passaram-se muitas semanas até que fossem desenterrados.
Evidentemente, estavam todos mortos.
Naturalmente,
os desaparecimentos misteriosos dão origem a fantasias em um povo imaginoso, e
desde os tempos imemoriais os Fantasmas da Neve animam a imaginação dos povos
do Norte, enquanto os do Sul dizem que os nortistas tomam tanto saquê que tomam
por mulheres as árvores cobertas de neve.
Seja
como for, devo narrar o que viu um agricultor chamado Kyuzaemon.
Na
aldeia Hoi, que consistia em apenas onze casebres muito pobres, vivia
Kyuzaemon. Ele era paupérrimo e duplamente infeliz por ter perdido tanto o seu
filho quanto a sua mulher. Levava uma vida solitária.
Na
tarde de 19 de janeiro do terceiro ano da era Tem-po — ou seja, em 1833 —,
desabou uma tremenda tempestade de neve. Kyuzaemon fechou as venezianas e se
acomodou o melhor que pôde. Por volta das onze horas da noite, despertou com
uma batida na porta. Era uma batida singular e se repetia intervalos regulares.
Kyuzaemon sentou-se na cama e olhou para a porta, intrigado. A batida
repetiu-se e, com ela, a voz suave de uma moça. Pensando que poderia ser uma
das filhas de seu vizinho querendo ajuda, Kyuzaemon pulou da cama. Mas, quando
chegou à porta, teve medo de abri-la: a voz e a batida elevaram-se em uníssono
e ele pulou para trás, gritando:
—
Quem é você? O que quer?
—
Abra a porta! Abra a porta! — veio a voz do lado de fora.
—
Abrir a porta?... Não a abrirei até saber quem é você e o que faz tão tarde em
uma noite como esta.
—Mas
você tem que me deixar entrar. Como posso seguir em frente nesta nevasca tão
violenta? Não peço comida; somente abrigo.
—
Sinto muito, mas não tenho colchas ou roupas de cama. Não posso deixá-la ficar
em minha casa.
—
Não quero colchas nem roupa de cama. Peço-lhe somente abrigo —implorou a voz.
—
De qualquer forma, não posso deixá-la entrar. É muito tarde e permitir que
entre vai contra os costumes e a lei.
Dizendo
isto, Kyuzaemon reforçou a porta com uma barra de madeira resistente, sem
sequer se aventurar a entreabrir as persianas para ver quem seria a visitante.
Quando se voltou para a cama, viu, sobressaltado, a figura de uma mulher ao seu
lado, vestida de branco, com os cabelos fluindo pelas costas. Não tinha
aparência fantasmagórica. Seu rosto era belo e ela parecia ter cerca de vinte e
cinco anos. Kyuzaemon, tomado de surpresa e muito assustado, gritou:
—
Quem é você? Como entrou aqui? Onde estão os seus tamancos?
—Posso
penetrar em qualquer lugar quando quiser — respondeu ela. — Eu sou a mulher que você não queria deixar
entrar. Não preciso de tamancos, porque me movo com os redemoinhos na neve e às
vezes flutuo no ar. Estou a caminho da próxima aldeia, mas o vento está contra
mim. Era por isto que eu queria que você me deixasse descansar aqui. Se fizer
isto, partirei assim que o vento amainar. De toda sorte, irei-me embora pela
manhã.
—
Fosse você uma mulher comum, não me importaria em lhe conceder descanso. Eu
deveria, de fato, alegrar-me com isto. Mas eu temo muito os espíritos, assim
como os temiam os meus antepassados — disse Kyuzaemon.
—
Não tenha medo — disse a figura. — Você tem um bustsudan[1]?
—
Sim, eu tenho butsudan — disse Kyuzaemon. — Mas por que quer saber?
—
Disse-me que tem medo dos espíritos e do que posso fazer a você. Mas desejo
prestar as minhas homenagens às tábuas de seus antepassados, e assegurar aos
espíritos de sua família que não lhe farei mal algum. Você pode abrir o butsudan
e acender uma lamparina?
—Sim
— disse Kyuzaemon, muito amedrontado e trêmulo. — Vou abrir o butsudan e
acender a lamparina. Por favor, também reze por mim, pois sou um homem
desafortunado e infeliz. Mas, em troca, você me dirá quem é e que espécie de
espírito é o seu.
—
Você quer saber demais. Mas, ainda assim, eu lhe direi — respondeu o
espírito. — Creio que você é um bom de
bem. Meu nome era Oyasu. Sou filha de Yazaemon, que mora na aldeia vizinha. Meu
pai, como talvez já tenha ouvido falar, é um fazendeiro, e acolheu, no seio de
sua família, e como marido de sua filha, Isaburo. Isaburo é um bom homem, mas,
após a morte de sua mulher, no ano passado, abandonou o seu sogro e retornou à
sua antiga casa. Agora, procuro por ele sobretudo para recriminá-lo por sua má
ação.
—
Devo entender — disse Kyuzaemon — que a filha que foi casada com Isaburu é a
mesma que morreu na neve no ano passado?
Se sim, então você deve ser o espírito de Oyasu, mulher de Isaburo.
—
Sim, você está certo — disse o espírito. — Eu era Oyasu, a esposa de Isaburo,
que morreu, amanhã fará um ano, na grande tempestade de neve.
Kyuzaemon,
com as mãos trêmulas, acendeu a lamparina no pequeno butsudan,
murmurando, com um fervor sem precedentes: “Namu Amida Butsu”[2] .
Feito isto, ele viu a figura do Yuki Onna (Espírito da Neve) avançar. Mas não
se ouvia o som de passos enquanto o espectro deslizava em direção ao altar.
Kyuzaemon
retirou-se para a cama, na qual adormeceu prontamente. Mas, em seguida, a voz
da mulher, que se despedia, o despertou. Antes que ele tivesse tempo de se
sentar, ela desapareceu sem deixar vestígios. O fogo ainda ardia no butsudan.
Havendo-se
levantado ao romper do dia, Kyuzaemon foi à aldeia vizinha para ver Isaburo, a
quem encontrou morando com o sogro, Yazaemon.
—
Sim — disse Isaburo —, foi um erro de minha parte abandonar o pai de minha
esposa quando ela faleceu. E não me surpreende que, nas noites frias, quando
cai a neve, o espírito de minha mulher me visite continuamente, como uma
repreensão. Nesta manhã, bem cedinho, eu a vi novamente e resolvi voltar à casa
de meu sogro. Faz apenas duas horas que estou aqui.
Conjecturando,
Kyuzaemon e Isaburo descobriram que o espírito de Oyasu, após deixar a casa do
agricultor, fora diretamente visitar Isaburo e esteve com ele até que o marido
prometesse voltar para a casa de seu pai, ajudá-lo e ampará-lo em sua velhice.
Esta
é mais ou menos a história de Yuki Onna. Todos aqueles que sucumbem à neve e ao
frio tornam-se Espírito da Neve, aparecendo justamente quando neva. Ressurgem
da mesma forma que os espíritos dos que se afogam no mar e que só aparecem em
mares tempestuosos.
Até
hoje, no Norte, os sacerdotes fazem orações para apaziguar os espíritos dos que
morreram na neve, evitando, assim, que retornem para assombrar as pessoas às
quais estão ligados.
[1] Altar de
família, que contém as tábuas mortuárias de seus membros e, também, imagens de
vários deuses. (N. do A.).
[2] “Eu
me refugio no Buda da luz infinita”.
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