O CEMITÉRIO DE REGGOR - Conto de Terror - Paulo Soriano


 

O CEMITÉRIO DE REGGOR

Paulo Soriano

 

Eu já me habituara à lamúria dos ventos mesquinhos.

Vencendo alhures as frestas escarpadas das falésias, cá se atiravam impiedosamente contra as crespas ondulações da extensa charneca lindeira ao vilarejo de Shairaff. E, para mais além, descansavam no tapete relvoso que antecipava o tumultuo verde da floresta de teixos e ciprestes.

Naquela noite de plenilúnio, porém, o lamento angustiante do vento experimentava modulações fantasmagóricas. Nas estradas que conduzem às vivendas rurais, onde à desolação da charneca ajunta-se sempre a opressora sensação de solidão, mesmo que o transeunte esteja em comitiva, o que se ouvia era um coro de vozes atribuladas, como se o vento, ao precipitar-se sobre o velho cemitério de Reggor, consigo arrastasse a aflição até então silenciosa dos quanto ali jaziam sepultados.

Reggor fora, no passado, uma vila de prestígio em nossa região. Aqui, camponeses e aldeões evitam falar sobre a mortandade que dizimou toda uma considerável população — algo em torno de mil e quinhentas almas — há mais de duzentos anos. Da vila de Reggor ficou em pé apenas o solitário campanário de pedra da Igreja de São Jerônimo, que deita as suas sombras geladas sobre as cruzes e sepulcros do cemitério ancião. Circundados por ruínas revelhas, repletas de brumas, ainda hoje os túmulos de Reggor acolhem, de braços e ventres abertos, todos os mortos do Condado de Tzirave. Minha avó paterna admitira, há bem pouco tempo, o cingir do abraço apertado de Reggor, mas ela estava felizmente morta quando declinou à sepultura. Meu pai e meu avô, que repousam ao seu lado, não experimentaram semelhante sorte.

Eu seguia sozinho, a pé, pela estrada tortuosa que margeia o cemitério, já bem próximo à minha pequena herdade, quando, fazendo-se ainda mais pungente o queixume dos ventos, vi uma sombra indecisa deslizar sorrateiramente entre os túmulos. Ao longe, pareceu-me que o vulto fugidio farfalhava roupas femininas. Quando avancei para ele, logrei a convicção de que não me equivocara. Uma jovem mulher, bela como uma Vênus de negros cabelos esvoaçantes, tremia à minha presença e buscava refúgio em um nicho do que fora, outrora, certamente, uma digna sepultura.

À luz exuberante da Lua, a silhueta feminina, de vestido esgarçado, exibia na face uma beleza deslumbrante. Intuí que trazia algo nas mãos. Mas, antes que eu me desse conta do que seria, a jovem despojou-se do objeto, arremessando-o para longe de si. A ela perguntei quem era e o que fazia ali, mas nada ouvi em resposta. A moça parecia assustada. A minha presença significava-lhe, certamente, uma ameaça. Vi que olhou furtivamente para os lados, antecipando uma fuga. Mas, antes que pudesse pôr em prática os seus desígnios, agarrei-a pelos pulsos e puxei-a contra mim. A princípio, a moça esboçou uma reação. Depois, cedeu à minha firme determinação de não a arredar de mim. Ela deixou-se conduzir docilmente à minha herdade, onde a acolhi satisfeito, oferecendo-lhe comida — que ela recusou — e repouso. Como não me considero um homem generoso, atribuí aquele gesto solidário à simples curiosidade (já que era incomum encontrar uma beldade quase nua em um cemitério de aldeia), embora relutasse em admitir que algo em mim se insinuava furtivamente; algo que, para os de corações enternecidos certamente deveria chamar-se paixão.

O tempo não existe fora de nós. Trazemos o tempo na alma: resumimo-nos a recordações e expectativas. É preciso, assim, muito equilíbrio. Quando as recordações sufocam e as expectativas trucidam, quedamos prisioneiros de um presente longo e opressor: o futuro nunca chega; o passado nunca passa. O futuro do futuro é tornar-se um amargo passado que, por não se conter em si mesmo, espraia-se no presente e se perpetua. Pois foi o passado que vi perpetuar-se na noite em que levei Vênus para casa. Pairando sobre as névoas de um sonho absurdo, aproximou-se-me a imagem pálida e assustadora de minha avó, que morrera, muito velha, por aqueles dias. Eu estava sentado sobre uma antiga sepultura do cemitério de Reggor, ouvindo atentamente a velha defunta falar:

— Promete-me que zelarás pelo meu túmulo.

— Vovó, bem sabes que detesto túmulos.

— Não há quem goste deles, afora os ghouls.

Ghouls não existem, Vovó!

— Existem. Ainda ontem, os ghouls profanaram Reggor. Eles são seres imundos. Percorrem cemitérios e violam os sepulcros. Alimentam-se de cadáveres. Tenho medo do que pode suceder aos meus despojos.

— Os ghouls são uma lenda, reminiscência antiga, dos tempos em que os otomanos dominavam o nosso país.

— Eles são demônios famintos. Violam os túmulos e se alimentam de carcaças humanas. Portanto, promete-me que zelarás pelo meu túmulo. Não deixes que eles se aproximem.

— O que posso fazer contra eles?

—Eles fogem, se tu te aproximas. Nas noites enluaradas, assumem a forma de demônios, mas evitam os filhos dos homens. Se os veem, recobram imediatamente a forma humana e debandam assustados. Mas não podes matá-los. Eles nunca morrem, a menos que comam carne humana viva. Mas eles repugnam carne viva. Por isso sempre vivem. De sã consciência, jamais mergulhariam as presas em ser vivente. E sempre estão a vagar pelos cemitérios, nutrindo-se de sangue coalhado e de carne podre. Promete-me, pois, que zelarás.

— Prometo.

— És um bom menino, Lucbarr.

— Eu sei.

O passado esvaeceu. A neblina rodopiou e sugou a face austera de minha avó. Fiquei apenas eu, sentado sobre a lápide mortuária, arrependido da solene promessa que fizera.

Sempre que eu ia ao cemitério de Reggor, evitava os túmulos de meus familiares. Sob a mesma sombra gélida do campanário de São Jerônimo descansavam meus pais e meus avós. Talvez pareça desumana esta aversão que cultivava aos túmulos dos meus antepassados, mas eu tinha sérias razões para assim proceder.

Meu pai desceu ao solo de Reggor aos trinta e cinco anos, vítima de um mal súbito. Minha mãe o amava muito, mas a consternação causada pela exumação do cadáver do meu pai excedeu em muito a dor que ela sentira dois anos antes, quando do sepultamento. Assim que a tampa do caixão foi aberta, os circunstantes verificaram, atônitos, que o corpo do meu pai — e ele ainda trazia um punhado de carne podre nos braços e no crânio — estava revirado. E na tampa do ataúde viam-se ainda os arranhões produzidos por unhas desesperadas.

Depois desse episódio, minha mãe caiu em um estado de profunda catatonia. Culpava-se pelo terrível destino de meu pai. Mergulhara num estado deplorável. Minha mãe morreu um ano depois, internada no sanatório de Tzirave. Quando a vi pela última vez, minha mãe era apenas escombros. Batia, com força, os punhos cerrados contra o peito e gritava, bem alto, que deveria ter sido mais cuidadosa com o meu pai. É verdade que eu tentava consolá-la, mas o fazia sem convicção alguma, pois sabia que ela tinha razão. Era justo o seu sofrimento e eu nunca lhe perdoei a negligência. O remorso de que a minha mãe padecia encontrava uma justificativa inarredável, já que era público e notório em Shairaff que o meu avô, um próspero médico rural, também fora sepultado vivo. Recobrara os sentidos e morrera asfixiado no fundo de uma cova profunda.

Ainda assim, na manhã seguinte, voltei ao cemitério de Reggor, seguindo o mesmo caminho que fizera na noite anterior. Há poucas coisas, neste mundo de Deus, tão desoladas quanto aquele sítio. Mesmo quando o Sol segue alto no firmamento, não é possível contemplar as cruzes serifadas sem uma grave constrição no lado esquerdo do peito. Um vago receio, que a princípio se insinua em nossa alma, evolui, paulatinamente, enlevado pela decrepitude dos túmulos, para um estado em que o medo, malgrado sem uma razão plausível, é palpável e dominador. E experimentamos, então, uma perturbação de espírito de todo incomum nos estados de vigília, mas frequente nos pesadelos mais angustiantes.

Eu estava à procura do objeto lançado fora pela bela jovem na noite anterior e pretendia realizar a missão com a maior brevidade possível. Temia erguer os olhos e deparar-me com o espectro de minha avó, implorando-me para que zelasse por sua sepultura.

 Bem próxima ao nicho onde a mulher se escondera, havia um túmulo muito recente, em que se viam nítidos sinais de profanação. A terra musgosa estava revolvida e, no interior da cova, vislumbrava-se um caixão de criança recém-nascida, completamente destroçado. A criança não mais estava lá. Encontrava-se, sim, a alguns passos de distância. Jazia sobre um punhado de urzes e samambaias. O cadáver não tinha cabeça e as extremidades do corpo estavam dilaceradas. Não sou um homem piedoso e nem me deixo seduzir pelas emoções. Mas não pude deixar de experimentar certa comoção quando levei o corpinho, que sequer chegara a apodrecer, de volta ao caixão, cobrindo-o de terra.

Eu já me havia demorado mais que o esperado. É possível, por arte daqueles tão insólitos acontecimentos, que eu já tivesse me esquecido do intuito que me levara ao cemitério de Reggor. Portanto, me pus a caminhar, velozmente, de volta para casa, temendo que uma mão pousasse no meu ombro e me obrigasse a zelar por um sepulcro abandonado. Percorria uma senda estreita, entre sepulturas austeras e cancerosas, mas me vi alucinado, porque pisei em algo macio. Ao olhar para os pés, gemi de pavor. Lá estava a cabecinha da defunta, esmigalhada, quase sob a minha bota. Um único instante foi suficiente para que eu concluísse algo de aterrador: a face da criancinha exibia marcas de mordidas profundas. Algo — ou alguém, diria minha avó — mergulhara a boca e os dentes no rostinho da defunta, sugara-lhe os olhos e arrancara nacos de carne morta com grande avidez. Algo bem feroz. Certamente um lobo carniceiro, que, de alguma forma, aprendera a sorver. Ghouls não poderiam existir, e disto eu tinha absoluta convicção.

Pensei em encontrar um quê de felicidade em companhia de Vênus.  Em verdade, eu nunca soube o seu nome real, se é que ela tinha um. Estava certo de que ela era uma estrangeira, porque não sabia o nosso idioma e demorou muito a entender alguns de seus rudimentos. Vênus nunca falava. Enquanto esteve sob o meu teto, jamais pronunciou palavra alguma.

 


 

O companheirismo que existia entre nós não era bem visto pelos vizinhos. Eu bem pretendia desposá-la, mas Vênus abominava a nossa igreja e o que fosse de sagrado aos olhos de nossa religião. Concluí que deveria ser ela otomana e muçulmana. A combinação dessas duas péssimas qualidades rendia comentários maldosos entre os nossos confrades e, aos poucos, percebi que os meus conhecidos — e mesmo os amigos mais íntimos e sinceros — não apenas me abandonavam: se pudessem, eu seria imediatamente proscrito de Shairaff.

Vênus me parecia um anjo. Cuidava de mim com dedicação e esmero. Embora eu tivesse o coração empedernido, via que minha afeição à jovem moça aumentava a cada dia. Ponderei, certa feita, que eu estava tão habituado às suas carícias que me parecia impossível viver doravante sem aqueles afagos. O medo de perdê-la não era à toa. Vi que a moça quase não se alimentava. Nutria-se, a contragosto, de poucos punhados de vegetais e nada mais. A carne de animal lhe causava repulsa. Mas, em que pese ao jejum eterno, Vênus não dava mostra de debilidade física. Não fosse a palidez que grassava em seu rostinho divino, dir-se-ia que Vênus gozava de perfeita saúde de corpo. Quanto ao seu espírito, todavia, o mesmo eu não poderia dizer. Direi por quê.

Percebi que, com certa regularidade, a jovem otomana oscilava em seu humor, passando, paulatinamente, de uma fleuma tranquila a um estado de agitação profunda. Com o tempo, pude constatar que tumultuo que lhe ia à alma adensava nas noites enluaradas e cessava abrupta e imediatamente quando a Lua, deixando para trás o apogeu, ingressava na fase minguante. À agitação seguia-se a bonança: Vênus tornava-se subitamente lânguida e calma. Estes eram os momentos em que, a dois, compartilhávamos de uma imensa felicidade.

— Promete-me que zelarás pelo meu túmulo — disse o espectro de minha avó, surgindo das névoas gosmentas de Reggor.

— Vovó, bem sabes que detesto túmulos — disse-lhe. Eu sabia que minha avó estava morta; mas me parecia absolutamente natural dialogar com os mortos, sentado sobre a lápide de meu pai. Lá embaixo, os despojos de meu pai ainda arranhavam a tampa do caixão. Mas eu sabia que o seu esforço seria inútil.

— Não há quem goste deles, afora os ghouls — minha avó concluiu, com sapiência.

Ghouls não existem, Vovó!

— Existem — ela redarguiu, irritada. — Ainda ontem, os ghouls profanaram Reggor. Eles são seres imundos.  Percorrem cemitérios e violam os túmulos.

Minha avó olhou, com os olhos vazios de cadáver recente, para a Lua; de tão inchada, a Lua estava prestes a explodir.

— Alimentam-se de cadáveres. Tenho medo do que pode suceder aos meus despojos.

— Os ghouls são uma lenda, reminiscência antiga, dos tempos em que os otomanos dominavam o nosso país.

—Eles são demônios famintos. Violam os túmulos e se alimentam de carcaças humanas. Portanto, promete-me que zelarás pelo meu túmulo. Não deixes que eles se aproximem.

Eu ia responder alguma coisa, mas não pude. Com algum esforço, balbuciei:

—O que posso fazer contra eles?

Mas minha avó não mais estava lá. Eu estava sozinho e perfeitamente acordado. A luz da Lua infiltrava-se pelo vidro da janela e morria no lugar onde Vênus deveria estar.

Onde estaria Vênus, que abandonara o nosso leito em plena madrugada? O que estaria a fazer, no auge de sua excitação?  Lembro que ela se deitara ao anoitecer. O vento, cada vez mais angustiado naquela véspera de plenilúnio, parecia exercer sobre ela uma influência devastadora. Vênus recolhera-se com o espírito atribulado, com as mãos desesperadas a comprimir os ouvidos relentos. Tremia sob os lençóis e suava abundantemente. Entre um e outro espasmo, deixava escapar dos lábios uma espécie de gemido, um uivo lastimoso, quase animal.

Vênus deixara a portela aberta. Chovera à noitinha, de molde que o seu rastro era perfeitamente visível à luz da Lua.

A marca de seus pés, perfeitamente delineada na terra úmida, traçava uma trilha que, a partir da cancela de minha herdade, tomava o caminho de Shairaff. À medida que eu avançava, a melodia triste dos ventos experimentava modulações e cadências ainda mais funéreas; crescia em volume e intensidade, como se se preparasse para um desfecho apoteótico. E, ali, onde a estrada se bifurcava, o vento gemeu assustadoramente, porque os passos deixados por Vênus, inesperadamente, quebravam à direita, seguindo a fúnebre trilha que conduz ao velho cemitério de Reggor.

 

(Eles são demônios famintos.  Violam os túmulos e se alimentam de carcaças humanas. Portanto, promete-me que zelarás pelo meu túmulo. Não deixes que eles se aproximem.)

 

Se experimentei uma medonha preocupação ao deduzir qual seria o destino de Vênus, foi o desespero que se apossou do meu espírito quando vi as transformações que ocorriam aos rastros deixados pela bela mulher. Aos poucos, as marcas de seus pés abandonavam a compleição humana. À entrada dos portões do cemitério de Reggor, o que eu via era o registro de patas animalescas. Os artelhos alongados fincavam profundamente a terra úmida, aspergindo grãos compactos de areia negra atrás e ao redor. Somente garras vultrinas poderiam impregnar o solo de vestígios tão repulsivos.

Foi então que, ao longe, divisei a silhueta. Vi a réstia da coisa monstruosa que, agachada, dilacerava, com as patas, à semelhança de uma ave de rapina, o abdome do cadáver que exumara. A coisa urrava com sofreguidão. E, trêmula, mergulhava a mão nas ranhuras do cadáver, extraindo as vísceras mefíticas, que conduzia às fuças avidamente.

 

(Eles fogem, se tu te aproximas. Nas noites enluaradas, assumem a forma de demônios, mas evitam os filhos dos homens. Se os veem, recobram imediatamente a forma humana e debandam assustados.)

 

Creio que a coisa me farejou. Porque para mim volveu os olhos escarlates e uivou dolorosamente. Uma dor intensa, insuportável, rebentou no meu peito quando vi uma abominação: a coisa abandonava a forma demoníaca e, em debandada, assumia uma forma humana. Uma forma de mulher. A forma de Vênus.




Fui ao chão, inconsciente.

Eu sabia que este era, também, o meu destino. Sempre soube. Os meus antigos amigos, que agora me execravam, certamente consentiram em me sepultar o mais brevemente possível.  Não sei se blasfemo, mas os cidadãos de Shairaff ficariam extremamente satisfeitos se eu padecesse do mesmo fim e da mesma agonia que os meus antepassados.

Recobrei os sentidos vagarosamente, como quem desperta de um sono profundo e regenerador. Continuava rígido como um cadáver e a minha respiração ainda era quase imperceptível. Embora mantivesse os olhos fechados, eu sabia que, se pudesse abri-los, não enxergaria nada além da espessa escuridão. Sentia uma opressão imensa no espírito, mas não faria como o meu pai. Assim que meus músculos adquirissem novamente flexibilidade, projetaria com força a cabeça contra a tampa do ataúde até esmigalhar os ossos e os sentidos. Assim, poderia morrer em paz.

Mas não era este o desfecho que o destino me reservava. O ruído áspero de terra removida fez-se perceber. Algo escavava velozmente acima de mim. Naquelas circunstâncias, quem quer que estivesse em minha desesperadora situação agradeceria, aliviado, a dádiva aos céus. Mas eu, abandonado e execrado pelos confrades, não poderia esperar pela ajuda de um bom samaritano. Lá fora, ainda existia uma Lua cheia capaz de converter belas mulheres em demônios.

 

(Alimentam-se de cadáveres. Tenho medo do que pode suceder aos meus despojos.)

 

Puseram-me numa cova rasa, porque o ruído de terra removida era cada vez mais audível e desesperador. A coisa, agora, arranhava furiosamente a tampa do caixão. Em pouco tempo, o vento frio e pegajoso sibilava em meus ouvidos. Um cheiro de coisa deletéria denunciou a proximidade do ente repulsivo. Ele aproximou as fuças bem perto de meu pescoço e se pôs a resfolegar. Certamente distendia a mandíbula entrecruzada por dentes finos e irregulares. A dor foi lancinante. Um bocado de minha carne foi violentamente dilacerado e o sangue jorrou aos borbotões. A coisa mastigou ruidosamente e se pôs a sorver. Depois sugou um dos meus olhos, que rolou para a sua boca sem a mínima resistência.

 

(Eles nunca morrem, a menos que comam carne humana viva.)

 

O ghoul ainda mastigava o meu olho esquerdo, quando, de súbito, estacou. E caiu sobre mim em espasmos alucinados. A coisa se dissolvia, à medida que as convulsões aceleravam. Em pouco tempo, muito do que jazia sobre mim era uma massa gosmenta, terrivelmente fétida, a tegumentar um esqueleto de mulher.

As dores cessaram subitamente, porque a morte é a antítese da dor.

Não sei por quanto tempo, para a minha felicidade, permaneci escravo da morte. Mas a alforria veio violentamente.  Repentina e atroz. O que me dilacerava, agora, era a fome. A fome de coisas mortas e deletérias. Uma fome que fazia os meus dentes entrecruzados chocalhar e tremer. Estremecer de fome e de avidez.

De Vênus restava pouca coisa de saborosa. Chupei-lhe os ossos e alguma carnosidade pútrida incrustada nos ossos da face.

O gosto de carne morta era um forte delírio.

 

(Tenho medo do que pode suceder aos meus despojos.) 


— Não, minha avó — deixei escapar a mórbida ironia pelas ranhuras de minhas presas hirtas e disformes. — Não tenhas medo. Eu prometo que zelarei.

 

(Eles são demônios famintos.  Violam os túmulos e se alimentam de carcaças humanas.)

 

“Sim, são demônios; mas o que eu tenho a ver com isso?”

“Porque os ventos melódicos me impelem e me fazem feliz.”

Então, esgueirei-me pelas sombras tumulares do velho cemitério de Reggor, tangido pela fome dilacerante, pela fome desumana, para revolver algo de bom das carnes pútridas de meus antepassados...

 

(És um bom menino, Lucbarr.)

(Eu sei...)

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