A MORTALHA- Conto Clássico Fúnebre - Luis Coloma
A MORTALHA
Luis Coloma
(1851 – 1915)
Tradução de Paulo Soriano
Há
muitos anos, na manhã da Sexta-feira Santa, multidões compostas por pessoas de
todas as classes sociais enchiam a espaçosa praça de Santiago de Jerez de la
Frontera. A cada instante, novas ondas de gente aumentavam a já grande multidão
que se apinhava em torno de um alto túmulo erguido no centro. Numerosas
senhoras ocupava todas as varandas, salvo uma daquelas sacadas. Nela, um velho
frade, de longa barba e venerável aparência, ajoelhava-se, sob um dossel negro,
em oração.
Tudo
indicava que ali iria realizar-se um ato eminentemente religioso. E era verdade.
Mui brevemente, aquele povo — ali congregado pela mais viva fé e pela piedade
mais profunda — iria representar um auto sobre o sublime drama do Calvário. Um surdo
murmúrio elevou-se na praça, mas em todos os semblantes estampavam-se sinais do
mais amargo desconsolo. E era que os nossos padres, inflamados por um profundo
amor a Deus e pelo fogo de uma ardente caridade, lastimavam-se pelos próprios
pecados, considerando que foram eles, e não o povo judeu, que crucificaram e
maltrataram, de forma tão cruel, Aquele em cujo corpo — coberto de chagas e
destroçado pelos mais atrozes tormentos — estão impressas, com sangrentos
caracteres, estas palavras do Rei profeta: Traspassaram meus pés e mãos e
contaram todos os meus ossos!
Outra
cena, que contrastava, em parte, com a anterior — mas semelhante à primeira em
alguns aspectos —, ocorria, coetaneamente, num quarto baixo da vizinha Rua de
la Merced, consequência dolorosa da fome e da miséria que dizimara a cidade.
Sobre um mui pobre leito repousava o cadáver de uma jovem, coberta tão-somente
por miseráveis farrapos. Suas rígidas mãos seguravam uma negra cruz contra o
peito, como se expressassem o seu último pensamento.
Sentado
junto a uma mesa estava um homem velho, em cujo semblante e atitude via-se
impressa aquela decadência — aquela espécie de inércia física e moral — que se apodera
de um homem quando a angústia e o desconsolo lhe oprimem o coração. Sua cabeça,
prateada pela neve dos anos, inclinava-se sobre o peito; seus braços caíam ao
longo do corpo; seus olhos contemplavam o cadáver com uma fixidez estúpida, que
lhe retratava o estado d’alma: embotada pelo ímpeto da dor, a alma não
conseguia compreender a extensão da própria desgraça. Mas, de repente, o velho desviou
os olhos e lançou-os, ansioso, a um quadro da Virgem das Dores, encostado sobre
a mesa, e sua fisionomia mudou completamente: de fria e estúpida, tornou-se ardente
e expressiva; então, cruzando as mãos calejadas num gesto de súplica, de seus
lábios escaparam palavras entrecortadas, que pareciam pedir algo com aquela fé,
com aquela esperança que a religião de Jesus Cristo inspira aos desgraçados.
Depois, voltou à imobilidade, e uma lágrima — amarga como azevinho e como fogo
abrasador — deslizou por sua face e caiu no chão, que a absorveu e, num átimo,
fê-la desaparecer, da mesma maneira como o triste desengano consome e extingue,
num só instante, a mais risonha ilusão.
Há
outra pessoa naquele enorme antro de dor e desconforto: é uma mulher de
cinquenta anos, que parece presa do mais horrível desespero; o seu corpo treme
como uma folha débil; suas mãos golpeiam o rosto decomposto pela rigidez dos
músculos e seus olhos arregalados não derramam uma lágrima sequer. Ora anda,
ora para, ora arroja-se ao leito e beija freneticamente o cadáver da filha. Depois
se levanta com uma dor tão terrível que o seu coração parece partir-se em mil
pedaços. E ela grita, interrompendo-se com gemidos roucos:
—
Morta de fome, a minha filha! Meu Deus! Não poderei, sequer, amortalhá-la?
Imponente,
era, pois, a cena que contemplavam alguns curiosos; estes, atraídos pelos
gritos da mãe, se tinham aproximado da janela. De um lado via-se a dor calma e
resignada, mas amarga e profunda; de outro, as represas rompidas, a dor
transbordante, a loucura, o desespero. Mais além, a fria insensibilidade, a
morte...
De
repente, os murmúrios aumentam na praça e todos os olhares se voltam para a Rua
Larga, onde a procissão da Irmandade da Piedade avançava lenta e
majestosamente. Entre duas fileiras de penitentes, e carregada nos ombros de
quatro deles, vinha uma imagem de Cristo morto na cruz; e, um passo atrás, seguiam
a Virgem Santa, São João — o discípulo amado — e as três Marias.
Enquanto
a procissão abria o passo, dirigindo-se ao sepulcro, uma voz, dominando os
murmúrios da multidão, cantou, no tom triste das chamadas saetas, os
seguintes versos, que, sem obedecer a nenhuma regra poética, encerram um
precioso tesouro de poesia e sentimento:
“Quem
compra esse pobre manto
que
estou usando
para
enterrar meu filho
que
nesta tarde morreu?”
O
atribulado ancião — a cujos ouvidos a seata havia chegado clara e distintamente
—, assim que finda a melodia, levantou-se — como se impelido por uma mola — e
saiu correndo, dizendo à esposa, com um tom misterioso e singular:
—Espera!
E
com uma agilidade que não parecia própria de seus muitos anos, atravessou
rapidamente a rua e chegou ao Arco de Santiago, conseguindo, graças a poderosos
esforços, colocar-se num sítio um tanto elevado.
Depois
de colocadas as imagens sob o túmulo, o frade, ajoelhado na varanda,
levantou-se e iniciou o panegírico da morte do Senhor.
O
velho escutava com singular atenção o patético relato dos sofrimentos do
Redentor; doces lágrimas, que a compaixão arrancava de sua dor, resvalavam por
suas faces e um tremor convulsivo sacudia o seu corpo.
Ao
descrever o piedoso e caridoso ato realizado por José e Nicodemos no alto do
Calvário, dois sacerdotes, representando aqueles santos homens, aplicaram duas
escadas nos braços da cruz, e, subindo por elas, despojaram a imagem da coroa
de espinhos, depois a descravaram e, finalmente, envolvendo-a num lençol,
puseram-na nos braços da Virgem.
Em
seguida, o frade, dirigindo-se aos frades penitentes, disse:
—
Irmãos, Cristo morreu; pedi em caridade para o Seu enterro.
E
os irmãos, agitando os sinos, disseminaram-se pela praça, implorando a caridade
do povo. Naquele ano, em a miséria fora espantosa, poucos foram os que deram
esmolas. E, ao percebê-lo, o frade, cujo investigativo olhar perscrutava a
praça, arrancou violentamente dos ombros o manto e, jogando-o fora, gritou com enérgica
e desgarrada entonação:
—
Se vós nada dais para o sepultamento de Cristo, lá vai minha capa!
A
estas palavras, um clamor universal elevou-se na praça: muitos choraram e todos
ofereceram aos irmãos tudo o que tinham em joias e dinheiro.
O
desgraçado velho pai caíra de joelhos e exclamava, batendo no peito:
—Perdoai-me,
Deus da minha alma! Atrevi-me a duvidar de vossa providência porque não podia
amortalhar a minha filha, mas agora vejo que a vossa Mãe Santíssima se encontra
na mesma situação!
Tão
profunda era a aflição com que foram pronunciadas estas palavras, tanta era a
amargura que se retratava naquele semblante, que atraiu a atenção de algumas
pessoas, malgrado a heroica ação do santo frade tivesse embargado o ânimo e
todos os presentes. Mas ninguém tinha uma palavra de conforto para aquele pai aflito.
Apenas uma senhora, cujo traje e figura denotavam a elevada classe à qual ela,
sem dúvida, pertencia, acercou-se do ancião e murmurou-lhe algumas palavras ao
ouvido. Estas palavras devem ter sido muito doces e consoladoras para aquele
infeliz, pois ele respondeu ao segredo com um expressivo olhar de gratidão e,
levantando-se, fez-lhe sinal para que ela o seguisse.
A
senhora obedeceu ao velho e este logo ofereceu aos seus olhos o horrível
espetáculo antes descrito. O assombro e a compaixão estavam impressos no rosto
da boa senhora. Todavia, recuperada da emoção que sentira, procurou, com
palavras de esperança e de consolo, aplacar a terrível dor daqueles pais,
prometendo satisfazer ao máximo os seus desejos.
E
não foram em vão as promessas da caridosa dama, pois, poucas horas depois, era
muito diferente a aparência que aquele miserável quarto. As paredes e o chão
estavam cobertos de negros panos; no centro se levantava pequeno catafalco
igualmente negro. Acima dele, e num ataúde branco, estava o cadáver da jovem,
rodeado de luzes e flores; sua mortalha também era branca e suas mãos cruzadas
seguravam um crucifixo e um lírio-branco...
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