O DIAGNÓSTICO DE MORTE - Conto Clássico de Terror - Ambrose Bierce


 

O DIAGNÓSTICO DE MORTE

Ambrose Bierce

(1842 – 1914?)

Tradução de Paulo Soriano

 

— Não sou tão supersticioso quanto alguns dos seus confrades médicos, ou homens de ciência, como gostam eles de ser chamados — disse Hawver, respondendo a uma acusação que sequer fora formulada. — Alguns de vocês — apenas alguns, confesso — acreditam na imortalidade da alma e em aparições a que não têm a honestidade de chamar de fantasmas. Não vou além da convicção de que, às vezes, os vivos não são vistos onde estão, mas onde já estiveram — nos lugares onde viveram tanto tempo, e talvez tão intensamente, que deixaram a sua marca em tudo o que os rodeava. Eu sei, de fato, que o ambiente onde vive uma pessoa pode ser afetado por sua personalidade a ponto de — muito tempo depois —suscitar uma imagem daquela mesma pessoa aos olhos de outra. Sem dúvida, a personalidade que impregna o ambiente há de ser marcante, assim como predispostos a percebê-la devem ser os olhos que a vislumbram — os meus, por exemplo.

— Sim, o tipo certo de olhos, que transmitem sensações ao tipo errado de cérebro — disse o Dr. Frayley, sorrindo.

— Obrigado! Gostamos de ver as nossas expectativas satisfeitas. E essa é a resposta que — supus — contamos quando a civilidade é esperada.

— Perdoe-me. Mas intuo que você sabe o que diz. É muita coisa, não é mesmo? E talvez você não se importe de esclarecer como aprendeu essas coisas.

— Você dirá que se trata de alucinação — disse Hawver —, mas eu não me importo com isto.

 E contou a história.

— Como você sabe, eu fui, no verão passado, veranear na cidade de Meridian. O parente, em cuja casa eu tencionava ficar, adoeceu; por isso, tive de procurar outro lugar para alojar-me. Com alguma dificuldade, consegui alugar uma casa desocupada, antes habitada por um médico excêntrico, que a deixara há alguns anos, e cujo nome era Mannering. De lá, partira o doutor a um lugar ignorado, mesmo para o seu procurador. Ele próprio construíra aquela casa e nela morara com um velho criado durante aproximadamente dez anos. Ele havia abandonado completamente a medicina, a cuja prática, aliás, ele pouco se dedicava. Além disso, tinha-se retirado quase por completo da vida social, tornando-se um recluso. Um médico local — praticamente a única pessoa com quem ele se relacionava — me disse que, durante o seu período de clausura, ele se dedicara a uma única linha de estudo, cujo resultado expusera num livro. A obra, aliás, não mereceu a aprovação de seus pares; estes, em verdade, desconfiavam da sanidade do colega autor. Não li o livro e nem me recordo de seu título, mas soube que nele era exposta uma teoria deveras surpreendente. Dizia Mannering que era possível prever-se a morte de qualquer pessoa saudável, com exatidão, vários meses antes do seu advento. O limite, creio eu, era de dezoito meses. Circulavam histórias de que ele realmente exercera a capacidade de realizar tais prognósticos — ou, talvez, se possa dizer diagnósticos —, e se dizia que, em todos os casos, as pessoas — a cujos amigos o médico assim prognosticara — morreram, subitamente, e sem qualquer causa aparente, justamente na hora em que o médico precisamente antecipara. Nada disto, porém, tem a ver com o que eu irei contar. Apenas pensei que um médico acharia tal achega divertida.

“A casa permanecia mobiliada tal como era no tempo em que o médico a habitava. Era uma casa um tanto sombria para alguém que, como eu, não era recluso ou erudito; e penso que me transmitiu algo do seu caráter, quiçá um pouco do caráter do seu antigo ocupante: nela, sempre senti um quê de melancolia — que, aliás, não se incluía em minha natural disposição, e que, penso eu, também não irradiava daquele estado de solidão. Os empregados lá não pernoitavam e, como você sabe, sempre gostei muito da minha própria companhia, já que sou muito aplicado à leitura, embora pouco afeito aos estudos. Fosse qual fosse a causa, o efeito era o desânimo, acompanhado da sensação de mal iminente. Percebia-se tal sensação especialmente no escritório do Dr. Mannering, malgrado aquele cômodo fosse o mais iluminado e arejado da casa. O retrato a óleo do médico, em tamanho natural, estava pendurado naquele ambiente e parecia dominá-lo completamente. Nada havia de invulgar no retrato. O homem, de boa aparência, tinha cerca de cinquenta anos. Exibia os cabelos cinzentos, rosto bem barbeado e olhos circunspectos, de escura tonalidade. Mas havia algo naquele retrato que me chamava a atenção. O aspecto do homem tornou-se-me familiar e, de certa forma, assombrava-me.

“Uma noite, eu passava por esta sala, seguindo em direção ao meu quarto, com um candeeiro na mão (não há gás em Meridian). Parei, como de costume, diante do retrato que, à luz do candeeiro, parecia encorpar uma nova expressão, de difícil definição, mas nitidamente estranha. Aquela visão despertou o meu interesse, mas não me perturbou. Movi o candeeiro de um lado para o outro e observei os efeitos da gradação luminosa. Enquanto o fazia, assaltou-me o impulso de virar-me. Então, ao fazê-lo, vi um homem a atravessar a sala, vindo diretamente em minha direção! Assim que se aproximou o suficiente para que a luz do candeeiro lhe iluminasse o rosto, vi que era o próprio Dr. Mannering. Era como se o retrato, agora, andasse.

“’—Peço-lhe desculpas — disse-lhe, com alguma frieza —, mas, se o senhor bateu à porta, eu não ouvi’.

“Ele passou por mim, à distância de um braço, ergueu o dedo indicador direito, como se me advertisse e, sem dizer uma palavra, saiu da sala, embora eu não tivesse visto a sua retirada mais do que observara a sua entrada.

“Nem é preciso dizer que este incidente representa o que você nomina alucinação, mas que eu chamo de aparição. Aquela sala tinha apenas duas portas, uma das quais estava trancada; a outra dava para um quarto, em que não havia outra saída. O que senti, ao aperceber-me disto, não é, todavia, importante ao relato do incidente.

“Não há dúvida que isto lhe parece uma ‘história de fantasmas’ deveras banal — uma história construída segundo os elementos regulares estabelecidos pelos velhos mestres da arte. Mas, se assim fosse, eu não lhe a teria contado, mesmo que verdadeira. O homem não estava morto; encontrei-o hoje na Union Street. Ele passou por mim em meio à multidão”.

Hawver terminou a sua história e os dois homens ficaram em silêncio. O Dr. Frayley tamborilou, distraidamente, os dedos sobre a mesa.

— Ele lhe disse alguma coisa hoje? —perguntou. — Alguma coisa que lhe permitisse deduzir que ele não estava morto?

Hawver olhou-o, mas não respondeu.

—Talvez — prosseguiu Frayley — ele tenha feito um sinal, um gesto, levantado um dedo, como se produzisse uma advertência. É um tique que ele tinha — um hábito que se lhe suscitava quando dizia algo sério, a exemplo do anúncio de um diagnóstico, por exemplo.

— Sim, ele realmente fez isso, tal como a aparição já me havia feito. Mas, Santo Deus! Você o conhecia?

Hawver parecia ingressar num estado de nervosismo.

— Sim, eu o conhecia. Li os livros dele, como todos os médicos um dia acabam fazendo. É uma das mais notáveis e importantes contribuições deste século para a ciência médica. Sim, eu o conhecia. E o atendi, quando ele estava enfermo, há três anos. Agora, ele está morto.

Hawver levantou-se da cadeira, visivelmente perturbado. Pôs-se a andar, na sala, de um lado para o outro. Depois, aproximou-se do amigo e, com uma voz trêmula, disse:

—Doutor, como médico, tem alguma coisa a me dizer?

—Não, Hawver. Você é o homem mais saudável que já conheci. Mas, como amigo, aconselho-o a recolher-se em seu quarto. Você toca violino como um anjo. Toque-o. Toque algo leve e alegre. Tire da cabeça esta maldita história.

No dia seguinte, Hawver foi encontrado morto em seu quarto, com o violino ao pescoço, o arco sobre corda e a partitura aberta, diante dele, na Marcha Fúnebre de Chopin.

 

Imagem: "O Médico" de Sir Samuel Luke Fields (1843 - 1927).

Comentários

  1. que conto sensacional, amigo Barão! Vossa tradução ficou perfeita. Eu lera esse conto faz tempo em algum lugar, porém os contos dos autores clássicos sempre são como inéditos quanto os relemos. Sua tradução, repito, ótima, bem trabalhada. Agora, esse Bierce, convenhamos, é um gigante na literatura de horror ou literatura fantástica. Quando leio o Bierce, esse gigante, me sinto uma formiguinha com meus escritos. O velho Bierce era bom demais! (Roger)

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  2. Concluindo: o título você digitou "diganostico". Mas, como falei, uma maravilha sua tradução e o conto do Bierce.

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  3. BELO E ENGRAÇADO CONTO DE BIERCE. FINAMENTE CONHECI SEU SITE, PAULO SORIANO

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