O LOBISOMEM - Conto Clássico Pseudossobrenatural - J. de F. Novaes
O LOBISOMEM
J. de F. Novaes
(Séc. XIX)
I.
Alguns
jovens estouvados gritam de uma maneira capaz de meter inveja ao melhor
berrador de catedral que estamos no século das luzes e não das trevas, como por
aí dizem os velhos a quem os quer ouvir, por isso que não conservamos as
tradições estúpidas, os prejuízos tolos e as superstições asnáticas de nossos
maiores. Essa gente engana-se.
Os
nossos maiores tinham muito juízo por crer em tudo isso....
E
se não me acreditais, escutai uma história que eu tenho a ingenuidade de aos
contar, e cuja veracidade afianço, palavra de romancista!
II.
Na
rua de São José havia, em 1814, um açougueiro francês e um vendedor ambulante
português, M. de Fracasville e José Pereira, vizinhos e amigos.
Ambos
eram casados, mas quanto tinha a mulher do açougueiro de bela, tinha a do vendedor
de feia, torta e desgadelhada.
Mencionamos
este último defeito da pobre mulher porque temos a fazer observar que ele era
proveniente da brutalidade do vendedor, que espancava e arrancava os cabelos da
desgraçada todos os dias
Mas
essa brutalidade não provinha da embriaguez, como talvez julgueis; outra era a
sua causa.
Para
em poucas palavras dizer tudo, o vendedor era lobisomem, e quando voltava,
todas as noites, de cumprir o seu fadário, é que maltratava daquela maneira a
sua pobre metade.
III.
Todas
as noites o lobisomem saía de casa às onze horas da noite para não voltar senão
de madrugada.
E
então é que sua mulher tremia de susto, julgando o transformado ora em porco,
ora em burro, ora em lobo, ora em bode, ora em cão etc., e por isso levava toda
a noite a rezar, o que lhe alterou a saúde.
E
que seu marido era lobisomem, ela nenhuma dúvida tinha, e, embora nunca o
tivesse visto transformado em animal, sabia ser ele o sétimo filho de uma
bruxa, mulher de um soldado, e como tal irremissivelmente condenado a sofrer a
sorte de Nabucodonosor, segundo a tradição; e, também, porque, durante a
ausência noturna de seu marido, ouvia latir os cães desesperadamente na rua, sinal
de andar o vendedor atropelando-os, transformado em animal. Por isso, a
desgraçada, quando podia falar ocultamente com o açougueiro — pois que este
tinha muita familiaridade em casa do vendedor —, chorava, queixava-se, e
lamentava-se por não poder livrar seu consorte de tão má sina.
IV.
M.
de Fracasville. que era uma boa alma, ouvia com paciência os queixumes de sua
vizinha, e num dia, precisamente o Sábado de Aleluia desse ano, que havia feito
excelente negócio vendendo bastante carne de vaca, que havia sido desterrada na
quaresma que então findava, sentiu-se disposto à compaixão, pois que se julgava
feliz, e por isso disse à sua vizinha:
—Mas
que diabo posso fazer para acabar os vossos desgostos? Que diabo hei de fazer
para quebrar o fadário de vosso marido, madame?
—Oh!
M. de Fra... de Fraca... não... de Fa... Meu Deus, sempre me engano no vosso
nome!
—
Fracasville, madame. Fracasville.
—Pois
sim, M. de Facavil, eu sei que remédio há para curar meu marido, mas
receio que vós não o possais fazer!
—
Mas sacrebleu! Dizei-o sempre, vizinha!
—
O único remédio que há para curar os lobisomens é feri-los levemente quando eles
estiverem transformados em animais.... mas vós não tereis ânimo!
—
Diable! — exclamou M. de Fracasville, coçando a orelha. — O caso é
espinhoso, mas eu sempre vou tentar isso.
—
Deveras, M. de Facavil?
—
E há de ser hoje à noite mesmo.
—
Oh, quanto sois bom, M. de Facavil! — exclamou a pobre mulher com lágrimas de
gratidão.
V.
Quando
chegou a noite, M. de Fracasville, julgando acertado quebrar o fadário do lobisomem,
seu vizinho, quando este voltasse de sua peregrinação noturna, para mais
depressa o vendedor poder tratar da ferida que o bom do açougueiro esperava
fazer-lhe, M de Fracasville, dizemos, dormiu tranquilo até as quatro horas da
madrugada.
Levantou-se
então, pegou em uma espada — por isso que temeu que, tendo o facão de seu uso
em punho, poderia mui bem esquecer a prudência, lembrando-se da chacina que
fazia nos animais em seu açougue, o que seria prejudicial ao ambulante —, saiu
com toda a cautela de casa e foi postar-se junto à de seu vizinho, para esperar
a volta dele.
VI.
Não
tardou muito que o lobisomem aparecesse. Mas, com grande admiração do
desencantador, ele saiu da própria casa deste, mas não transformado em animal,
descendo por uma escada de cordas que estava presa à janela de um sotãozinho
onde habitava a madama.
Ora,
M. de Fracasville — que, além de crer em lobisomens, era un mari fort sutupide
—, supôs que ou seus olhos o iludiam, ou o lobisomem, adivinhando, sem dúvida,
a sorte que o esperava para escapar a ela, tomara, de súbito, a sua forma
primitiva e fingia descer da casa de seu desencantador para, enquanto este
ficava embasbacado, poder escapulir-lhe, sendo que esta última hipótese,
segundo dizem, era a exata.
E,
por conseguinte, o francês deu um pulo quando já o vendilhão punha um pé em
terra, e descarregando-lhe um golpe sobre o ombro direito, errou, e decepou-lhe
uma orelha toda.
VII.
Dois
gritos se ouviram. Um do lobisomem, que deitou a correr, berrando como uma fera,
e outro de M. de Fracasville. Este último fez estremecer o francês.
M.
de Fracasville correu, trêmulo de raiva, ao sótão que sua mulher habitava e, achando-a
estendida no soalho, desmaiada, tudo compreendeu.
*
Não
se atreveu M. de Fracasville a matar sua mulher, nem mesmo no seu primeiro
momento de cólera. Oh, ele era uma alma
timorata e temia as penas do inferno! Mas, daí a dois dias, Madame de
Fracasville foi expulsa da casa de seu marido, a fim de perder para sempre o
sestro de falar com lobisomens ao amanhecer, não se sabendo o fim que ela teve.
José
Pereira ficou completamente curado, não só da sua orelha, como também da sua
mania ou moléstia de lobisomem. Nunca mais saiu à noite de casa, e criou tal
medo ao seu antigo amigo, M. de Fracasville, que nem se atrevia a olhar para
ele.
E
a vendilhona, por essa cura radical de seu marido, recobrou sua saúde, e todos
os dias chorava de alegria e orava pelo seu salvador, M. de Facavil,
como ingenuamente dizia.
VIII.
Dizem
os jovens que os mais velhos mereciam bolos por acreditar em lobisomens.
Enganam-se. Os nossos avós faziam muito
bem em ter tal crença, e, se o duvidais, perguntai-o aos lobisomens modernos.
Fonte: “O
Beija-flor”/RJ, edição de 2 de fevereiro de 1850.
Fizeram-se breves
adaptações textuais.
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