DEMÉTRIO - Conto Clássico de Horror - Clemente Palma


 

DEMÉTRIO

(Fantasia Malvada)

Clemente Palma

(1872 – 1945)


Demétrio era um excelente amigo, mas tinha um riso zombeteiro que me exasperava. Fez por mim inúmeros sacrifícios. Numa ocasião, esteve vinte e cinco dias à cabeceira de meu leito ministrando-me remédios, velando o meu sono e dando-me comida. Era mais terno comigo do que uma mãe, uma irmã ou uma amada. Noutra ocasião, quando me abateu a mais terrível miséria, deu-me metade da sua cama, roupa e comida. E mais: eu sabia que ele tinha uma amada, a filha do mujique Gremchka, que vinha frequentemente buscá-lo e com quem ele tinha um menino. Uma noite, substituí-o, enganando-o e valendo-me da escuridão. Ao sair de seu quarto, encontrei-o a poucos passos de distância da casa. Será que ele suspeitou do que aconteceu? Não sei. Parece que rangeu os dentes. À luz de uma lamparina de rua, vi o seu rosto lívido e convulso. Meteu nervosamente a mão no bolso onde guardava uma faca. Mas quando passei, disse-lhe:

— Boa noite, Demétrio.

— Boa noite, Vladimir. Hi, hi, hi! — respondeu com a risadinha desconcertante. Creio que Natália não mais voltou à casa de Demétrio. Oh, a risadinha!

Estudávamos o Direito russo, mas eu o fazia com os seus livros. No final do curso, mais inteligente e estudioso dos que eu, foi aprovado; eu, reprovado. O pobrezinho chorou, beijou-me, disse que requeria refazer o curso comigo.  Por fim, o maldito risinho. Pensei em me vingar.

Demétrio tinha uma mãe e uma irmã em Kiev. Quando resolveu visitá-las, disse-me:

— Vladimiro, irmãozinho! Não posso viver sem ti. Vamos a Kiev. Direi à minha mãe que ela tem um outro filho; à Sônia, a minha irmã, que tenho um novo irmão. Sônia é quase uma criança, bonita e sem pretendente, e conhece todas as artes da casa. Se a amares, ela partilhará a tua casa como tua mulher. O que achas? Hi, hi, hi!

A maldita risadinha me desesperava e acentuava o surdo rancor que me ia na alma.

Pouco dias antes de irmos a Kiev, vimos na praça um grupo de ciganos da Boêmia. Faziam dançar ursos e lobos domesticados, tiravam fitas verdes e pretas da boca e das narinas, brincavam com facas afiadas — que atiravam habilmente para o ar com vertiginosa rapidez —, engoliam algodão em fogo, partiam pedras com os punhos e atavam-se com cordas grossas, que desatavam com um simples movimento dos ombros e dos cotovelos. Mas ganhavam mais copeques vendendo às mocinhas pomada de urso polar para conservar a suavidade e a brancura da pele; pomada de coração de rena para triunfar sobre a rival; bezoar para afastar a peste e curar doenças; pó de mandrágora para conservar o amor; infusão de fel de pombo preto para atrair a felicidade, almíscar, colar mágico etc.

A caminho de Kiev, chegamos ao cimo de uma colina íngreme que, de um lado, dava para um caminho frequentado por caravanas quirguizes e, do outro, para um vale profundo e agreste que tínhamos de cruzar para chegar à estrada direta para Kiev. Pusemo-nos a almoçar e a descansar. Para passar o tempo, disse a Demétrio:

— Lembras-te daquele cigano que se atava com uma corda e se desamarrava num instante? Pois bem, vou fazer melhor ainda esse truque que tanto te impressionou. Verás.

— Mas nós não temos corda.

— Estás enganado, irmãozinho. Eu as trouxe, porque sou previdente.

Ele riu.

— Quando o vires, rirás mais ainda — disse, cerrando os punhos e baixando dissimuladamente o gorro de pele de raposa sobre os olhos, para que ele não lesse o que me estava a acontecer.

Pedi-lhe que me atasse. Como eu conhecia o jogo, desamarrei-me facilmente. Ele ria e dizia coisas carinhosamente alegres, mas que feriam vivamente a minha suscetibilidade, sobretudo por causa do infame risinho, sempre presente. Disse-lhe que Kirchoff, o meu bisavô, era provavelmente cigano. Que o contorno do meu nariz era perfeitamente chandala.

— Primeiro, atam-se as mãos por sob joelhos. Quando assim amarradas, deslocam-se as mãos sobre os joelhos. Esta mudança de posição altera a direção das cordas. Simples movimentos dos cotovelos e dos ombros afrouxam os nós. Experimenta, Demétrio. Irás rir muito! Hi, hi, hi! Se pudéssemos amarrar os nossos professores Boleslau e Vasili, sem lhes ensinar o segredo, e depois atirá-los da mais alta montanha nevada dos Urais para a Sibéria asiática... Hi, hi, hi!

Nervosamente infectado, eu imitava a diabólica risadinha.

— Hi, hi, hi — riu Demétrio, dispondo-se a ser atado para repetir a experiência.

— Hi, hi, hi — ria eu, apertando bem os nós.

— Não com tanta força, Vladimiro. Não com tanta força, irmãozinho, hi, hi, hi!

Eu tinha os olhos injetados como um lobo cheirando sangue.  Sem que o bom do Demétrio percebesse, fiz um nó corrediço que passei por debaixo de seu pescoço e nele coloquei, convenientemente, a minha navalha aberta. Atei-lhe a extremidade da corda ao tornozelo. Em seguida, eu a acomodei sobre uma rocha.

— Pela primeira vez, exageraste, Vladimir. Não te amarrei tão apertado assim. Hi, hi, hi. Terei um mérito superior ao teu. Hi, hi, hi!

— Olá, irmãozinho. Achas que és mais meritoso do que eu? É verdade! Passaste no curso. Eu não. Hi, hi, hi, irmãozinho.

— Vladimir. Por que trazes isto à tona?

— Certo, Demétrio. Foi apenas uma lembrança. Eis como vais desatar o nó. Não o faças ainda. Com um golpe forte e violento, estica o pé direito enquanto abre os braços. Falemos agora um pouco sobre outras coisas.  Sobre como divertiremos a mãe Ivanovna e a bela Sônia, à noite, em Kiev, fazendo todas aquelas maravilhas que os ciganos fazem. Imagina, irmãozinho, que Sônia vai reparar o meu nariz de chandala. Como rirão das nossas graças, enquanto, do lado de fora da isbá, a nevasca transforma os campos de feno em algodão. Hi, hi, hi!

Demétrio riu.

— Sei de muitas outras coisas, que mostrarei. Tu sabes que, durante a minha infância, vivi muito tempo na Transilvânia. Kirchoff, meu bisavô, me ensinou estas artes de vagabundo, que são, certamente, mais fáceis que o código russo. Ocorre-me uma coisa, Demétrio, meu tão querido irmãozinho: diz-me por que Natália... Tu te recordas de Natália, a filha do mujique? Por que ela não voltou a te procurar? Mandaste-a embora?  Ela merecia o teu carinho. Era muito bonita e amorosa. Fostes um louco. 

Eu disse tudo isso folheando os cadernos de estudo de Demétrio, mas o mirava de soslaio. Percebi-lhe uma reação, seguida de uma forte palidez. Mas já se recompunha e ria. Eriçaram-se os meus cabelos. Repeti quase gritando, para abafar a sua horrível risadinha:

— Foste muito louco em abandoná-la. O que se dizia era verdade? Que uma manhã ela acordou morta com um filho à porta de casa? Porque Sônia, a tua irmã mais nova, deve ter a mesma suavidade epidérmica, os mesmos beijos ardentes de Natália, os mesmos...

Não terminei porque já não tinha mais um propósito. Desesperado, ele não esperou pelo sinal para se desamarrar. A cabeça estava assustadoramente contraída. Uma corrente de sangue jorrava-lhe da nuca. Que belo fio, o da minha navalha! Aproximei-me do bom Demétrio, pus-lhe um joelho no peito, arranquei-lhe a cabeça com um puxão e joguei-a no vale profundo. Fiz isso para ajudá-lo a desamarrar-se. O meu bom irmãozinho, sem o estorvo da cabeça, com o esforço do corpo nos últimos estertores da agonia, na última convulsão da vida agarrado ao tronco, soltou as cordas.

— Hi, hi, hi! — do fundo do vale gritou, triunfalmente, a cabeça.

Também lancei fora o corpo. No meu retorno, caiu uma nevasca. Durante a noite eu estive a escutar a maldita risadinha de Demétrio, em resposta às gargalhadas das hienas e aos uivos dos lobos. Todas as noites na cidade, no campo ou onde eu esteja, escuto a endiabrada risadinha de Demétrio a perturbar os meus sonhos.

— Hi, hi, hi!

Começo a pensar que melhor me valeria nunca ter ensinado a Demétrio o jogo dos ciganos.

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