A HISTÓRIA DE MING-Y - Conto Clássico Sobrenatural - Koizumi Yakumo
A HISTÓRIA DE
MING-Y
Koizumi Yakumo
(Lafcadio Hearn)
(1850 – 1904)
Tradução de autor anônimo do séc. XX
Há
cerca de quinhentos anos, no reinado do Imperador Houng-Wou[1],
cuja dinastia era Ming, vivia na cidade de Genii um homem chamado Tien-Pelou.
Tinha um filho, um belo rapaz que em saber, aparência e cortesia não tinha quem
o excedesse entre os jovens de sua idade. Chamava-se Ming-Y.
Ora,
aconteceu que, quando o rapaz completou o seu décimo oitavo verão, Pelou, seu
pai, foi nomeado inspetor da Instrução Pública da cidade de Tching-Tou, e
Ming-Y acompanhou sua família para lá. Perto da cidade de Tching-Tou vivia um
rico homem de categoria, um alto comissário do governo, cujo nome era Tchang, e
que desejava encontrar um digno preceptor para seus filhos. Ao ter notícia da
chegado do novo inspetor da Instrução Pública, o nobre Tchang visitou-o, e,
acontecendo travar conhecimento com o talentoso filho de Pelou, imediatamente
contratou Ming-Y como professor particular de sua família.
Ficando a casa deste senhor Tchang situada a várias
léguas da cidade, decidiu-se que era melhor Ming-Y fosse morar na casa de seu
patrão. Assim, o moço preparou todas as coisas necessárias para a sua nova
residência, e seus pais, ao se despedirem dele, deram-lhe muitos conselhos e
citaram as palavras de Lao-Tseu e dos antigos sábios:
“Por um belo rosto o
mundo se enche de amor; mas o céu nunca se iludirá com isso. Se vires uma
mulher vindo do Leste, olha para o Oeste; se perceberes uma mulher aproximando
do Oeste, volta teus olhos para o Leste".
Se
Ming-Y não seguiu este conselho, algum tempo depois, foi devido à sua juventude
e a leviandade de um coração naturalmente alegre. Partiu e foi morar na casa do
Senhor Tchang, enquanto o outono passava e o inverno também. Quando a segunda
luz da primavera se aproximava e com ela aquele dia feliz, que os chineses
chamam Hoa-Tchao, ou "O Nascimento de Cem Flores”, Ming-Y sentiu saudades
de seus pais e abriu seu coração ao bom Tchang, que, não só lhe deu a permissão
desejada, mas ainda lhe pôs na mão um presente de prata de duas onças, achando
que o rapaz deveria desejar levar algum pequeno presente a seu pai e a sua mãe.
Pois é um costume chinês, na festa de Hoa-Tchao, dar presentes a amigos e
parentes.
Nesse
dia, todo o ar ficou sonolento com o perfume das flores e vibrante com o
zumbido das abelhas. Pareceu a Ming-Y que o caminho que ele seguia não tinha
sido pisado havia longos anos. A erva crescia nele; vastas árvores de um e de
outro lado entrelaçavam seus grandes galhos musgosos por cima dele, sombreando
o caminho; mas as folhosas obscuridades vibravam com o canto das aves e as
profundas perspectivas do bosque eram coloridas por vapores de ouro e
rescendentes de hálitos de flores como um templo de incenso. A sonolenta
alegria do bosque entrou no coração de Ming-Y, que se sentou entre as flores recém-desabrochadas,
sob os ramos oscilantes contra o céu violeta, para sorver o perfume e a luz e
gozar o grande e suave silêncio. Enquanto assim repousava, um som lhe fez
voltar o olhar para um luar sombreado, povoado de pessegueiros silvestres em
flor, e viu uma jovem mulher, bela como as próprias flores, tentando
esconder-se entre elas. Embora olhasse por um instante apenas, Ming-Y notou a
pureza de sua cútis e o brilho de seus longos olhos, que rutilavam sob um par
de sobrancelhas tão delicadamente curvadas como as asas abertas da borboleta do
bicho da seda. Ming-Y desviou a vista imediatamente; erguendo-se às pressas,
prosseguiu seu caminho. Mas tão embaraçado estava, lembrando aqueles olhos
encantadores, espreitando para ele através das folhas, que deixou cair o
dinheiro que levava na manga sem o notar. Alguns momentos depois, ouviu um
ruído de pés ligeiros, correndo atrás de si, e uma voz chamando-o pelo nome.
Voltando o rosto, com grande surpresa, viu uma encantadora serva que lhe disse:
—
Senhor, minha ama pediu-me que apanhasse e vos entregasse esta prata, que
deixastes cair na estrada.
Ming-Y
agradeceu gentilmente e pediu-lhe que transmitisse os seus cumprimentos à sua
ama. Depois, prosseguiu seu caminho através do silêncio perfumado, entre as
sombras que sonhavam ao longo do caminho esquecido, ele próprio sonhando também,
e sentindo o coração palpitar com estranha rapidez, pensando na bela criatura
que tinha visto.
Foi
num dia exatamente assim que Ming-Y, voltando pelo mesmo caminho, parou mais
uma vez no lugar onde a graciosa figura aparecera momentaneamente diante dele.
Desta vez, porém, ficou surpreendido de perceber, através de longo panorama de
árvores imensas, uma morada que antes tinha escapado à sua percepção — uma
residência de campo, não grande, mas extraordinariamente elegante. As telhas
azul-celeste do duplo teto curvo e dentado, elevando-se acima da folhagem,
pareciam confundir a sua cor com o azul luminoso do dia; os desenhos verdes e
dourados de seus pórticos esculpidos eram esquisitas zombarias artísticas das
folhas e flores banhadas de Sol. E, no cimo da escada do terraço, guardada por
grandes tartarugas de porcelana, Ming-Y viu, em pé, a dona da mansão — o ídolo
de sua apaixonada fantasia —, em companhia da mesma serva que lhe levara a sua
mensagem de gratidão. Enquanto olhava, Ming-Y percebeu que elas o observavam
também, sorriam e conversavam como se estivessem falando dele, e, por mais
tímido que fosse, o jovem reuniu coragem para saudar de longe a beldade. Com
grande assombro seu, a criada fez-lhe sinal de que se aproximasse e, abrindo o
portão rústico, encoberto de trepadeiras com flores carmesim, Ming-Y avançou ao
longo da aleia verdejante que conduz ao terraço com sentimentos misturados de
tristeza e tímida alegria. Quando ele se aproximou, a bela dama desapareceu;
mas a serva esperou na larga escadaria, e disse, quando ele subia:
—Senhor,
minha ama sabe que desejais agradecer-lhe o serviço que há pouco ela me pediu
vos prestasse, e pede que tenhais a bondade de entrar em sua casa, pois já vos
conhece de fama e deseja o prazer de dar-vos bom-dia.
Ming-Y
entrou timidamente, os passos silenciosos nos tapetes macios como o musgo da
floresta, e encontrou-se numa vasta câmara de recepção, fresca e recendendo o
perfume de flores recém-colhidas. Uma deliciosa quietude enchia a mansão;
sombras de aves passavam pelas faixas de "jus" que entravam através
das meias-persianas de bambus; grandes borboletas com asas, de cores
brilhantes, entravam, também, pairando um momento em volta dos vasos pintados e
desaparecendo outra vez no bosque misterioso. E tão silenciosa como as
borboletas, a jovem dona da casa entrou por outra porta e cumprimentou o rapaz,
que levou as mãos ao peito e se curvou em profunda saudação. Era mais alta do
que lhe parecera vista de longe, formosamente esbelta como um lírio; tinha o
cabelo negro ornado de flores cor de creme de "chu-sha-kih", e as
suas vestes de seda pálida assumiam cores diversas quando ela se movia, como os
vapores mudam de luz com a mudança da luz.
—
Se não me engano — disse ela, quando ambos estavam sentados, e depois de
haverem trocado as costumeiras formalidades de cortesia —, o meu honrado
visitante não é outro senão Tien-Chou, cognominado Ming-Y, educador dos filhos
de meu respeitável parente, o alto comissário Tcheng. Como a família do Senhor
Tchang é a minha família também, não posso deixar de considerar o professor de
seus filhos como meu próprio parente.
—
Senhora — respondeu Ming- Y, sem assombro —, permiti-me perguntar o nome de
vossa honrada família e qual o vosso grande parentesco com o meu patrão.
—
O nome de minha pobre família — respondeu a bela dama — é Ping, uma antiga
família da cidade de Tching-Tou. Eu sou filha de um certo Sie Moun-Hao. Sie é
meu nome também, e fui casada com um moço da família Ping, cujo nome era Khang.
Com este casamento tornei-me parente de vosso excelente patrão, mas meu marido
morreu pouco depois do nosso casamento, e eu escolhi este lugar solitário para
residir durante o período da minha viuvez.
Havia
uma música sonolenta na sua voz, como a da melodia dos rios, os murmúrios das
fontes, e uma graça tão estranha no seu modo de falar como Ming-Y nunca ouvira.
Contudo, ao saber que era viúva, o jovem não queria ficar muito tempo na sua
presença, sem um convite formal, e, depois de tomar a chávena de delicioso chá
que lhe fora oferecido, levantou-se para partir. Sie não permitiu que ele se
fosse tão rapidamente.
—
Não, amigo — disse. — Ficai ainda mais um pouco na minha casa, rogo-vos; pois
se o vosso honrado patrão viesse a saber que estivestes aqui e que eu não vos
tinha tratado como hóspede respeitável e obsequiado como a ele próprio, sei que
ficaria enormemente irritado. Ficai ao menos para a ceia.
Assim,
Ming-Y ficou, regozijando-se intimamente, pois Sie parecia-lhe o ser mais belo
e meigo que já vira e conhecera, e sentiu que a amava mais do que a seu pai e a
sua mãe. E, enquanto conversavam, as longas sombras do anoitecer misturaram-se
numa escuridão violenta; a grande luz da cidra do Sol poente apagou. E aqueles
seres estrelados que são chamados os Três Conselheiros e presidem à vida, à
morte e aos destinos dos homens, abriram os olhos frios ao Norte do céu. Dentro
da mansão de Sie acenderam-se as lanternas pintadas, foi posta a mesa para o
repasto da noite. E Ming-Y sentou-se a ela, sentindo pouca disposição para
comer, absorto que estava apenas na face que tinha diante de si. Observando que
ele mal provava as iguarias postas no seu prato, Sie insistiu com seu jovem
hóspede para que bebesse vinho, e os dois tomaram vários copos juntos. Era um
vinho púrpura, tão fresco que a taça em que era vertido se cobria de orvalho,
e, contudo, parecia aquecer as veias de um estranho fogo. Para Ming-Y, à medida
que bebia, todas as coisas se tornavam luminosas como por encanto, e as paredes
da sala pareciam recuar e o teto subir, as lâmpadas brilhavam como estrelas nas
suas correntes, e a voz de Sie chegava flutuante aos ouvidos do rapaz como uma
melodia ouvida através do espaço numa noite sonolenta. O seu coração intumesceu,
a língua soltou-se-lhe, e de seus lábios saíam palavras que ele imaginara nunca
ousariam pronunciar. Sie, entretanto, não procurava reprimi-lo: seus lábios não
sorriam, mas os seus olhos brilhantes pareciam rir de prazer com as suas
palavras de louvor e respondia ao seu olhar de apaixonada admiração com
afetuoso interesse.
—
Tenho ouvido falar — disse ela — de vosso raro talento e de vossos inúmeros
dotes. Eu canto um pouco, se bem não possa gabar-me de nenhuma cultura musical,
e, agora, que tenho a honra de me encontrar em companhia de um professor de
música, aventurar- me-ei a pôr de parte a modéstia e a rogar-vos canteis
algumas canções comigo. Consideraria não pequena lisonja para mim se condescendêsseis
em examinar as minhas composições musicais.
—
A honra e a lisonja, cara senhora — respondeu Ming-Y —, serão minhas, e não
tenho palavras para expressar a gratidão que merece o oferecimento de tão raro
favor.
A
criada, obediente ao chamado de um pequeno gongo de prata, trouxe a música e
retirou-se.
Ming-Y
tomou os manuscritos e começou a examiná-lo com vivo prazer. O papel em que
estavam escritos apresentava um tom amarelo pálido e era tão fino como gaze,
mas os caracteres eram antiquadamente belos, como se houvessem sidos traçados
pelo pincel do próprio Hei-Song Che-Tchoo — aquele divino gênio da tinta, que
não é maior do que uma mosca; as assinaturas ligadas às composições eram as de
Youentchin, Kaopien e Thou-Mou, pujantes poetas e músicos da dinastia de Thang!
Ming-Y não pôde reprimir um grito de prazer à vista de tesouros tão
inestimáveis e tão únicos, mal pôde reunir resolução suficiente para permitir
deixassem as suas mãos percorrê-los mesmo por um instante.
—
Oh, senhora! — exclamou. — Estas são
coisas verdadeiramente inestimáveis, superiores em valor aos tesouros de todos
os reis. Esta é, com efeito, a letra daqueles grandes mestres que cantaram
quinhentos anos antes do nosso nascimento. Como está maravilhosamente
conservada! Não é esta a tinta maravilhosa sobre a qual se escreveu: “Depois de
séculos, eu permaneço firme como a rocha e as letras que eu faço são como laca”?
E como é divino o encanto desta composição! — a canção de Kao-Pien, príncipe
dos poetas e governador de Sze-Tchouen, quinhentos anos atrás!
—Kao-Pien!
Querido Kao-Pien! — murmurou Sie, com uma luz singular nos olhos. — Kao-Pien é
também o meu preferido. Caro Ming-Y, cantemos os versos juntos, com a melodia
de antanho — a música daqueles grandes anos, quando os homens eram mais nobres
e mais sábios do que hoje.
E
suas vozes elevaram-se através da noite perfumada como as vozes dos pássaros
milagrosos — dos Fun-Hoang — confundindo-se em líquida doçura. Um momento
depois, Ming-Y, dominado pela magia da voz de sua companheira, apenas pôde
escutar um mudo êxtase, enquanto as luzes da sala dançavam diante da sua vista,
e lágrimas de prazer corriam pela sua face.
Assim
passou uma hora, e eles continuavam a conversar e a beber o fresco vinho
púrpura e a cantar as canções dos tempos de Tchang, através da noite. Mais de
uma vez, Ming-Y pensou em partir, mas toda vez Sie recomeçava, naquela sua voz
de prata, uma história tão maravilhosa dos grandes poetas do passado e das
mulheres que eles tinham amado, que ele ficava extasiado, ou então cantava para
ele uma canção tão estranha que todos os seus sentidos pareciam desaparecer,
exceto o do ouvido. E, por fim, quando ela se interrompeu para beber com ele
uma taça de vinho, Ming-Y não pôde conter-se e, lançando-lhe um braço em volta
do pescoço redondo, puxou-lhe a cabeça delicadamente para si e beijou-a nos
lábios, que eram mais rubros que o vinho. Depois seus lábios não se separaram
mais, e a noite ia adiantada, e eles não o sabiam.
As
aves acordaram, as flores abriram os olhos para o Sol nascente, e Ming-Y viu-se
finalmente obrigado a despedir-se de sua encantadora amante. Sie acompanhou-o
até o terraço, beijou-o delicadamente e disse:
— Querido rapaz, vem aqui todas as vezes que
puderes... todas as vezes que teu coração te murmure que venhas. Eu sei que não
és desses sem fé e verdade, que traem segredos. Contudo, sendo tão jovem,
poderia ser irrefletido algumas vozes. Peço-te, porém, que nunca esqueças de
que só as estrelas foram testemunhas do nosso amor. Não fales disto a viva
alma, bem-amado, e leva contigo esta pequena recordação da nossa noite feliz.
E
presenteou-o com uma coisinha esquisita e curiosa — um peso de papéis
semelhando um leão deitado, esculpido em jade amarelo, como criado por um
arco-íris em honra de Kong-Fu-Tze. Ternamente, o rapaz beijou o presente e a
bela mão que lho deu.
—
Que os Espíritos me castiguem — jurou — se, alguma vez, que eu saiba, der
motivo que me que me censures, querida! — e separaram-se com mútuas promessas
de fidelidade.
Naquela
manhã, quando voltou à casa do senhor Tchang, disse a primeira mentira que
jamais passara pelos seus lábios. Asseverou que sua mãe pedira que, daí em
diante, passasse as noites em sua casa, agora que o tempo se tinha tornado tão
agradável, pois, embora a distância fosse grande, ele era forte e ativo e
precisava de ar livre e exercício físico. Tchang acreditou em tudo que Ming-Y
lhe disse e não se opôs. Assim, o rapaz pôde passar todas as noites na casa da
bela Sie. Todas as noites, eles se dedicavam ao mesmo prazer que tinha tornado
tão encantador o seu primeiro encontro: cantavam e conversavam alternadamente;
jogavam xadrez — o sábio jogo inventado por Wu-Wang, que é uma imitação de
guerra; compunham peças de oito rimas sobre as flores, as árvores, as nuvens,
as fontes, as aves, as abelhas. Em tudo, porém, Sie excedia muito ao seu jovem
namorado. Toda vez que jogavam xadrez, era sempre o general de Ming-Y, o “tsiang”
de Ming-Y, que era cercado e vencido; quando compunham versos, os versos de Sie
eram sempre superiores aos seus em harmonia, colorido de palavras, elegância de
forma, em majestade clássica de pensamento. E os temas que eles escolhiam eram
sempre os mais difíceis — os dos poetas da dinastia Thang; as canções que
cantavam eram também as de quinhentos anos atrás — as canções de Youentchin,
Thou-Mou, de Kao-Pien sobretudo, grande poeta e governador dia província de
Ste-Tchouen.
Assim
o verão passou sobre o seu amor, e veio o outono luminoso com seus vapores de
ouro fantasma, suas sombras de púrpura mágicas.
*
Então,
inesperadamente, o pai de Ming-Y encontrou-se com o patrão de seu filho em
Tching-Tou, e este perguntou-lhe:
—
Por que há de vosso filho continuar a ir para sua casa todas as noites, agora
que o inverno se aproxima? A caminhada é puxada e quando chega de manhã parece
cansado. Por que não lhe permitis que durma em minha casa durante a estação da
neve?
E
o pai de Ming-Y, muito espantado, respondeu:
—
Senhor, meu filho não visitou a cidade, nem esteve em nossa casa durante todo este
verão. Temo que tenha adquirido maus hábitos e passe as noites em má companhia,
talvez jogando, ou bebendo com as mulheres dos barcos de flores.
Mas
o alto comissário replicou:
—
Não Isso não pode ser. Eu nunca encontrei nenhuma maldade em vosso filho, e não
há tavernas, nem barcos de flores, nem quaisquer lugares de dissipação nestas
redondezas. Sem dúvida, Ming-Y encontrou amável moço de sua idade com quem
passa os serões e só me disse uma mentira com medo de que eu não lhe permitisse
deixar a minha residência. Peço-vos que não lhe digais nada enquanto eu não
tiver procurado descobrir este mistério, e esta mesma noite mandarei o meu
criado atrás dele, para ver aonde vai.
Pelou
assentiu prontamente e, prometendo visitar Tchang na manhã seguinte, voltou
para sua casa. À noite, quando Ming-Y deixou a casa de Tchang, um criado o
seguiu de longe sem ser notado. Mas, ao chegar à parte mais escura da estrada,
o rapaz desapareceu da sua vista tão subitamente como se a terra o tivesse
engolido. Depois de o ter procurado em
vão, o doméstico voltou muito intrigado para casa e narrou o que acontecera.
Tchang mandou imediatamente um mensageiro a Pelou.
Entretanto,
Ming-Y, entrando na câmara de sua bem-amada, ficou surpreendido e profundamente
penalizado de vê-la em lágrimas.
— Querido — soluçou ela, lançando-lhe os
braços em volta do pescoço —, estamos prestes a separar-nos para sempre, por
razões que eu não posso revelar. Desde o princípio que eu sabia que isto
deveria acontecer e, não obstante, no momento me pareceu uma perda tão
subitamente cruel, um infortúnio tão inesperado, que não pude deixar de chorar!
Depois desta noite, nunca mais tornaremos a ver-nos, bem-amado, e eu sei que tu
não poderás esquecer-me enquanto viveres. Mas eu sei também que te tornarás um
grande letrado, serás cumulado de honra e riquezas e que alguma bela e amorosa
mulher vos consolará de minha perda. E, agora, não falemos mais de pesar, mas
passemos esta última noite alegremente, a fim de que minha recordação não seja
penosa e que possais lembrar mais de meu riso do que das minhas lágrimas.
Limpou
as gotas brilhantes da face e trouxe vinho e música e o melodioso
"kin" de sete cordas de seda, e não permitiu que Ming-Y falasse, nem
por um instante, da próxima separação. E cantou para ele uma canção antiga sobre
a calma dos lagos no verão, refletindo apenas o azul do céu, e a calma do
coração, antes que as nuvens dos cuidados, do pesar e da fadiga obscurecessem o
seu pequeno mundo. Em breve eles esqueceram o seu pesar na alegria da música e
do vinho, e aquelas últimas horas pareceram a Ming-Y mais celestiais até mesmo
do que as primeiras horas do seu conhecimento.
Mas
quando a beleza amarela da manhã começou a aparecer, sua tristeza voltou e
ambos choraram. Uma vez mais, Sie acompanhou seu amante até às escadas do
terraço, beijou-o em despedida, pôs-lhe na mão um presente, um pequeno estojo
de pincéis de ágata, maravilhosamente cinzelado e digno da mesa de um grande
poeta. E separaram-se para sempre, derramando muitas lágrimas.
*
Apesar
de tudo isso, Ming-Y não podia acreditar que fosse uma separação eterna.
“Não!"
— pensava. — "Visitá-la-ei amanhã, pois não posso viver sem ela, e tenho a
certeza de que ela não poderá recusar-se a receber-me.”
Tais
os pensamentos que enchiam a sua mente quando chegou à casa de Tchang, onde
encontrou seu pai e seu patrão, em pé ao limiar, à sua espera. Antes que ele
pudesse pronunciar uma palavra, Pelou perguntou:
—
Filho, em que lugar tens passado as noites?
Vendo
que tinha sido descoberto, Ming-Y não ousou responder. E ficou confuso e
silencioso, de cabeça baixa, na presença de seu pai. Então Pelou, ferindo o
rapaz violentamente com o seu bordão, ordenou-lhe que revelasse o segredo e,
finalmente, em parte por medo de seu pai, e em parte por medo da lei que ordena
que “o filho que recusar a obedecer a seu pai, será punido com um cento de
pancadas com a vara de bambu”, Ming-Y gaguejou a história de seu amor.
Tchang
mudou de cor ao ouvir a narrativa do rapaz.
—
Filho, eu não tenho parente nenhum com o nome de Ping. Nunca ouvi falar da
mulher que descreveste. Nunca ouvi falar nem mesmo da casa a que te refere. Mas
sei também que não ousarias mentir a Pelou, teu honrado pai. Deve haver alguma
estranha ilusão em tudo isto.
Então
Ming-Y mostrou os presentes que Sie lhe dera: o leão de jade amarelo, a caixa
de pincéis de ágata lavrada e algumas composições originais dela própria. O
assombro de Tchang foi compartilhado por Pelou. Ambos observavam que a caixa de
pincéis de ágata e o leão de jade tinham o aspecto de objetos que jazeram
enterrados na terra durante séculos e que eram de um primor de arte que nenhum
homem vivo seria capaz de imitar, ao passo que as composições eram verdadeiras
obras-primas de poesia, escritas no estilo dos poetas da dinastia de Tchang.
—
Amigo Pelou — exclamou o alto comissário —, acompanhemos imediatamente o rapaz
ao lugar onde ele obteve estas coisas milagrosas e apliquemos o testemunho de
nossos sentidos a este mistério. O rapaz está, sem dúvida, dizendo a verdade,
mas a história excede à minha compreensão.
E
os três encaminharam-se para o lugar da habitação de Sie.
*
Mas,
quando chegaram à parte mais sombreada da estrada, onde os perfumes eram mais
doces, os musgos mais verdes e os frutos do pessegueiro silvestre mais rosados,
Ming-Y, olhando através dos bosques, soltou um grito de assombro. Onde o
telhado de telhas azuis se envergava contra o céu, havia apenas o vazio azul do
ar; onde estivera a fachada verde-dourada, via-se apenas a agitação de folhas
sob a áurea luz outonal, e onde se estendia o amplo terraço, apenas podia
distinguir-se uma ruína — um túmulo tão antigo, tão profundamente corroído pelo
musgo, que o nome gravado nele já não se podia decifrar. A casa de Sie havia
desaparecido.
Subitamente,
o alto comissário bateu na cabeça e, voltando-se para Pelou, recitou o bem
conhecido verso do antigo poeta de Tching-Kou: “Decerto as flores do
pessegueiro florescem sobre o túmulo de Sie-Thao".
—
Amigo Pelou — continuou Tchang —, a beleza que enfeitiçou vosso filho não foi
outra que aquela cuja sepultura está aí diante de nós! Não disse ela que era
casada com Ping-Khang? Não existe família nenhuma com este nome, mas Ping-Khang
é, com efeito, um amplo beco da cidade próxima. Havia um enigma em tudo o que
ela dissera. Ela se chamou Sie de Moun-Hiao. Não há pessoa com esse nome, não
há rua com esse nome, mas os caracteres chineses Moun e Hiao, colocados juntos,
formam o caráter “Kiao”. Escute! O beco Ping-Khang, situado na rua do Kiao, era
o lugar onde moravam as grandes cortesãs da dinastia de Tchang! Não cantou ela
a canção de Kaopien? E sobre o estojo de pincéis e o peso de papeis, que ela
deu a seu filho, não estão os caracteres que dizem: “Puro objeto de arte
pertencente à cidade de Pno-Hai”? A cidade não existe mais, mas a memória de
Kao-pien permanece, pois era governador da província de Sie-Tchouen, e um
grande poeta. E quando viveu na terra de Chou, não era sua favorita a bela e
volúvel Sie — Sie-Tchao, incomparável em graça entre todas as mulheres do seu
tempo? Foi ela quem lhe deu de presente aqueles manuscritos de canção; foi ela
quem lhe deu aqueles objetos de arte. Sie-Thao não morreu como morrem as outras
mulheres. Os seus membros poderão estar pulverizados. Alguma coisa dela vive
ainda, porém, neste bosque profundo, sua sombra habita ainda estes lugares
sombrios.
Tchang
parou de falar. Um vago temor se apossou dos três. Os vapores finos da manhã
tornavam indivisas as distâncias verdes e aprofundava a beleza fantasmagórica
do bosque. Uma brisa vaga passou por eles, deixando um rasto de cheiro de flor
— o último cheiro de flores murchas, débil como o que se prende à seda de um
vestido esquecido, e, quando passou, as árvores pareceram murmurar através do
silêncio: “Sie-Thao”.
*
Temendo
muito por seu filho, Pelou mandou imediatamente o rapaz para a cidade de
Kwang-Tchau-Fu. E aí, anos depois, Ming-Y obteve altas dignidades e honras em
virtude de seu talento e sabedoria, e desposou a filha de uma casa ilustre, com
quem teve filhas e filhos famosos por suas virtudes e educação. Nunca,
entretanto, pôde esquecer Sie-Thao, e, contudo, diz-se que nunca falou dela,
nem mesmo a seus filhos, quando eles lhe pediam que lhes contasse a história de
dois belos objetos que estavam sempre sobre a sua mesa de escrever: um leão de
jade amarelo e um estojo de pincéis de ágata lavrada.
Fonte: “A Cigarra”/SP,
edição de janeiro de 1950.
Imagens: Ps/Copilot
que loucura essas imagens do COPILOT e claro tem que dar méritos pelo internauta que deu o comando ou descrição da cena rss rss rss
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