O RABINO - Narrativa Clássica Sobrenatural - Xavier Marmier
O RABINO
Xavier Marmier
(1808 – 1892)
Tradução de autor desconhecido do séc. XIX
Um grave rabino retirou-se do mundo para uma humilde cabana. Aí, mergulha-se em profundas meditações. Imagina penitências, impõe-se jejuns, procura nos livros venerados o ensino para a vida.
Um dia, num dos seus estudos, parece-lhe que Deus o olha com cólera e a sua alma fica cheia de angústia.
Eis que chega a festa da Páscoa com o Sol da primavera. O rabino apressa-se a pôr o pão pascoal na mesa, esperando um conviva, porque a lei lhe diz: “Cumprirás os deveres da hospitalidade”. Mas não aparece ninguém. O rabino chora, bate no peito, roja-se no limiar da porta, depois vai para a estrada procurar um viajante que possa levar para a sua cabana, e a quem possa dar de beber e de comer.
Num certo ponto, avista um velho mendigo, que caminha com dificuldade, encostado a um cajado. Aproxima-se dele saúda-o, dá-lhe o beijo da paz, e o conduz à sua morada. Aí apressa-se a servi-lo: lava-lhe os pés; dá-lhe do seu melhor vinho e fá-lo deitar na sua cama. No dia seguinte — quando o velho, fortificado por uma boa ceia e por um bom sono, toma o seu cajado de viagem, e, agradecendo ao seu generoso hospedeiro, se prepara para partir —, o rabino detém-no e diz-lhe:
—Viajante que o céu me enviou, sede bondoso, e ficai ainda um dia e uma noite na minha cabana.
Mas, durante a noite, levanta-se, agarra num cacete cheio de nós e, com toda a força, bate no mendigo adormecido.
O pobre velho, desfalecido, ensanguentado, exclama:
— Mau rabino, porque mereci um tal castigo?
Então o rabino lança-se-lhe aos pés, pede-lhe perdão, depois examina as chagas que lhe fez e faz-lhe curativos com as mais delicadas atenções. E dia e noite vela-o e serve-o, até que o vê completamente restabelecido.
Novamente, o mendigo se prepara para partir. Novamente, o rabino lhe suplica que fique ainda na sua cabana um dia e uma noite. Mas, à noite, levanta-se, pega num machado e dirige-se ao seu hospede para o matar. O velho acorda, apodera-se do machado e diz ao rabino:
—Podia matar-te como tu me querias matar, mas tenho dó de ti, porque és doido.
—Perdão, perdão! — exclamou o eremita lançando-se aos seus pés. — Perdoa-me e escuta-me. Queria obedecer ao Livro da Lei, que nos recomenda três deveres principais: ser hospitaleiro, tratar os doentes e enterrar os mortos, orando depois por eles. Entrastes em minha casa e eu cumpri, o melhor que pude, as leis da hospitalidade. Não tinha nenhum doente, maltratei-te para te curar. Não tinha nenhum morto, queria matar-te para te enterrar. Meu Deus! aproxima-se o meu ultimo momento e não cumprirei este último mandamento.
O anjo da morte baixou sobre ele e disse, chorando:
— Oh, desgraçados homens que, pelos seus raciocínios, falseiam as verdadeiras leis de Deus!
Fonte: Correio da Manhã, Suplemento Literário/Lisboa, edição de 21/07/1890.
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