A CAIXA OBLONGA - Conto Clássico de Mistério e Horror - Edgar Allan Pöe

A CAIXA OBLONGA

Edgar Allan Pöe

(1809 – 1849)

Tradução de autor desconhecido do séc. XX



Há alguns anos passados tomei passagem, de Charleston para Nova York, no formoso navio Independence, governado pelo capitão Hardy. Deveríamos partir no dia 15 de junho e, no dia 14, fui para bordo arrumar algumas coisas em meu camarote.

Verifiquei que havia muitos passageiros, entre os quais muitas senhoras. Na lista dos viajantes, encontrei o nome de algumas pessoas conhecidas, entre as quais figurava, com grande alegria minha, o de Cornelius Wyatt, jovem artista a quem me unia uma verdadeira amizade. Tínhamos sido companheiros de estudos na universidade de C…, onde tínhamos tido uma vida muito unida. Seu temperamento era o de todos os homens geniais, mistura de misantropia, sensibilidade e entusiasmo. A estas qualidades unia o melhor coração, o mais ardente e mais puro que já bateu em peito humano.

Em seu nome achavam-se reservadas três cabines e verifiquei, consultando novamente a lista de passageiros, que viajava com a mulher e duas de suas irmãs. Os camarotes eram regularmente amplos e com duas camas, uma em cima da outra. Não podia compreender, portanto, porque necessitava de três cabines para quatro pessoas. Naquela época, meu espírito passava por este estado psicológico que presta atenção de modo anormal a qualquer bagatela, e devo confessar que fiquei forjando diversas conjecturas indiscretas e absurdas sobre o tema do camarote suplementar, e, embora isso não me devesse preocupar, dediquei-me a resolver o enigma. Por fim, cheguei a uma conclusão, que estranhei que não me tivesse ocorrido logo: “Certamente trata-se de uma criada”. Tornei a percorrer a lista de passageiros, sem encontrar indicação alguma de que algum deles levasse uma criada, embora parecesse que alguém, a princípio, tivesse tido essa intenção, pois a palavra “e criado” aparecia escrita e riscada. “Então deve tratar-se de excesso de bagagem; alguma coisa que não quiseram que fosse para o porão, por necessitar de cuidado pessoal. Deve ser um quadro, talvez aquele que estava comprando a Nicolino, o ‘judeu italiano’”. Fiquei satisfeito com a minha ideia e tranquilizei-me.

As duas irmãs de Wyatt, que eu já conhecia, eram jovens amáveis e inteligentes. Mas não tivera ocasião de ver ainda sua esposa, com a qual se casara recentemente, se bem que muitas vezes me falasse dela com sua maneira entusiasta, descrevendo-a como dotada de incomparável beleza, inteligente e cheia de perfeições. Tinha, portanto, muita vontade de conhecê-la.

No dia 14, quando visitei o barco, o comandante informou-me de que Wyatt e a família deviam fazer o mesmo e, na esperança de conhecer a esposa de meu amigo, demorei-me a bordo mais do que esperava; mas, no último momento, chegou um recado de que a senhora W. estava adoentada e só viria no dia seguinte à hora de embarcar.

No dia seguinte, no caminho do hotel para o navio, encontrei o comandante Hardy, que me disse que, devido às circunstâncias, pensava que só poderiam zarpar dentro de um par de dias e que me avisaria. Pareceu-me isso bastante estranho, pois soprava um vento sul seguro; mas não tive outro recurso senão voltar ao hotel e encarar as coisas com calma. Passou-se uma semana sem que eu recebesse o esperado aviso; por fim chegou e fui imediatamente para bordo. O navio estava cheio de passageiros e tudo demonstrava o reboliço da próxima partida. Wyatt, com a família, chegou uns dez minutos depois de mim. O artista dizia sofrer de uma de suas crises de misantropia, que eu conhecia demais para me surpreender. Nem sequer me apresentou à esposa, o que foi feito pela irmã, Mariana, moça agradável e inteligente, que fez a apresentação com palavras apressadas.

A Sra. Wyatt tinha o rosto escondido por um véu e, quando o ergueu para falar-me, fiquei profundamente surpreso. Já conhecia por demais o meu amigo para fiar-me em suas entusiastas descrições de artista e, sobretudo, em seus comentários acerca da beleza feminina. Ao falar da beleza da mulher, subia a regiões de puro ideal.

A Sra. Wyatt pareceu-me uma mulher comum, positivamente feia, mas que tinha desejo de não sê-lo. Todavia, vestia-se de modo esquisito e deduzi que o que cativara meu amigo tinham sido, certamente, as qualidades de inteligência e espírito. A Sra. Wyatt disse algumas palavras e entrou na cabine acompanhada do marido.

Renasceu minha antiga curiosidade. Como não havia a presença de nenhum criado, fui verificar a existência da bagagem suplementar. Chegou pouco depois ao cais uma caixa de pinho, oblonga, e o navio empreendeu a partida.

A caixa em questão media seis pés de comprimento por dois e meio de largo. O formato era um tanto particular e felicitei-me por haver aceitado em minhas conjecturas. Chegara à conclusão de que a bagagem suplementar do artista deveria consistir de quadros, ou, pelo menos, de um quadro. E aqui se achava agora esta caixa que, por seu formato, poderia conter uma cópia da Última Ceia de Leonardo, feita por Rubini, e que eu sabia estar em poder de Nicolino. Considerei, portanto, este ponto resolvido, rindo ao pensar em minha sagacidade. Era aquela a primeira vez que Wyatt tinha para comigo um segredo artístico; evidentemente, procurava levar um bom quadro para Nova York, diante de meu nariz, julgando que eu não o perceberia. Resolvi, portanto, burlá-lo agora e daí por diante.

Todavia, não deixei de estranhar uma circunstância. A caixa não foi colocada no camarote reservado e sim no do próprio Wyatt, onde ocupava quase todo o espaço livre, com grande incômodo para o artista e a esposa, sobretudo pelo cheiro especial que se evolava do alcatrão ou pintura com que estava escrito o rótulo em grandes letras maiúsculas. Era um cheiro desagradável e particularmente repugnante. Na tampa, estavam pintadas estas palavras: Mrs. Adelaide Curtis, Albany, Nova York. Aos cuidados de Corvelius Wyatt, Esq. Parte Superior. Cuidado.

Como eu sabia que Mrs. Adelaide Curtis era a sogra do artista, aquilo pareceu-me uma mistificação feita especialmente em minha intenção e pensei, naturalmente, que a caixa e seu conteúdo não sairiam do estúdio de meu misantropo amigo, em Chambers Street, Nova York.

Durante os três ou quatro primeiros dias, tivemos um tempo lindo, embora o vento não fosse favorável. Os passageiros estavam muito alegres e mostravam-se dispostos a ser comunicativos. Devo excetuar, todavia Wyatt e suas irmãs, cuja atitude fria me chamou a atenção, julgando-a descortês. Não estranhava a de Wyatt, mais melancólico que de costume, e na realidade, sombrio. Conhecia já suas excentricidades. Mas quanto a suas irmãs, não encontrava desculpas possíveis; retiraram-se para seus camarotes durante a maior parte da travessia e, apesar de minha insistência, recusaram-se a relacionar-se a bordo.

Quanto à Sra. Wyatt, mostrava-se muito mais agradável. Gostava de falar, qualidade muito apreciável durante uma viagem por mar; travou relações com a maioria das senhoras e, o que estranhei profundamente, mostrou grande coqueteria com os homens. Divertia-nos muito, e digo divertia sem saber como explicá-lo, pois a realidade é que muitas vezes se riam da Sra. Wyatt. Os homens falavam pouco nela; mas as senhoras, em suas conversas, qualificavam-na de “boa pessoa, de tipo muito comum, completamente mal-educada e muito vulgar”. Estranhava como Wyatt se tinha deixado complicar com semelhante casamento e a maioria o atribuía a questões de interesse, o que eu sabia não ser verdade, pois Wyatt me tinha dito que ela nada possuía, nem tinha, por este lado, esperanças de nenhuma espécie. “Caso-me por amor — costumava dizer — e só por amor; minha noiva é merecedora de minha afeição”. Ao recordar estas palavras de meu amigo, sentia-me perplexo a um ponto indizível. Tratar-se-ia de um começo de loucura? Que mais poderia eu pensar? Ele, tão refinado, inteligente, com tão violenta reação diante de qualquer defeito, e com uma sensibilidade tão aguda para o belo! Certamente, sua mulher parecia querer-lhe muito, sobretudo quando ele não estava presente, chegando a ficar em ridículo desde que comentava o que havia dito “o seu muito amado Wyatt”. Parecia ter sempre a palavra esposo “na ponta da língua”, usando uma de suas delicadas expressões. Mas ele, por seu lado, como era fácil de observar, procurava evitá-la do modo mais claro, passando encerrado a maior parte do tempo no camarote, e deixando a mulher em completa liberdade de divertir-se a seu gosto.

Pelo que pude ver e ouvir, cheguei à conclusão de que o artista, arrastado por incompreensível capricho ou por má sorte, ou talvez por uma crise de paixão entusiasta e imaginária, unira-se a uma pessoa notoriamente inferior a ele, e, como consequência, vinha aquela aversão pronta e total que demonstrava. Não podia deixar de lastimá-lo do fundo do coração, embora não chegasse a perdoar-lhe sua reserva a respeito da Última Ceia. E, assim, resolvi vingar-me.

Um dia em que subiu ao tombadilho, pus-me a passear com ele. Sua melancolia — que me parecia natural, dadas as circunstâncias — era a mesma de sempre. Falava com mau humor e evidente esforço. Às minhas tentativas de pilheriar, respondia com um sorriso de sofrimento. Pobre amigo! Por fim, procurei fazer a primeira tentativa, iniciando uma série de alusões e insinuações acerca da caixa oblonga, para demonstrar-lhe que, de modo algum me resignava a ser vítima de seu divertido logro. Minha primeira observação tendia a romper as hostilidades e referi-me “à forma especial da caixa” e, ao dizer estas palavras, tive um sorriso como que inteirado de tudo, pisquei um olho e dei uma pancadinha no peito.

Pelo modo que reagiu, ante esta inofensiva pilhéria, convenci-me de que Wyatt estava louco. Começou por olhar-me fixamente, como se lhe fosse impossível compreender a graça de minha observação; mas, aos poucos, vi seus olhos querendo saltar das órbitas. Ficou rubro e, logo, terrivelmente pálido; depois, como se achasse uma graça extraordinária no que eu havia insinuado, soltou gargalhadas ruidosas que, com grande estranheza minha, foram aumentando gradualmente de intensidade e duraram mais de dez minutos. Subitamente, caiu pesadamente no chão. Quando algumas pessoas acudiram ao meu chamado, a fim de ajudarem-me a levantá-lo, parecia morto.

Com grande dificuldade, conseguimos que recuperasse os sentidos; durante certo tempo, expressou-se de modo incoerente; por fim o sangramos e pusemos na cama. Na manhã seguinte, achava-se completamente bom quanto à saúde corporal, mas, naturalmente, nada podia dizer quanto ao seu espírito. Seguindo o conselho do comandante, procurei evitá-lo durante o resto da travessia, pois, se bem que parecesse concordar comigo a respeito da perturbação que meu amigo sofria, recomendou-me que não falasse disto a ninguém a bordo.

Certas coisas, ocorridas imediatamente depois da crise de Wyatt, contribuíram para aumentar a minha curiosidade. Entre outras, recordo que me achava nervoso por haver tomado chá verde forte demais e mal podia dormir; na realidade, há duas noites que não dormia. Meu camarote dava para o salão principal ou sala de jantar, como o de todos os homens solteiros de bordo. As três cabines de Wyatt ficavam na parte de trás, separadas do salão por uma fina porta corrediça que não se fechava nunca, mesmo de noite.

Minha cama estava colocada de modo que, quando a minha porta estava aberta — o que eu fazia sempre por causa do calor —, podia ver perfeitamente a parte correspondente aos camarotes de Wyatt. Pois bem, durante duas noites — não consecutivas — achando-me desperto, pude notar que, às 11 horas da noite, a Sra. Wyatt saía com precaução do camarote do marido e entrava no camarote suplementar, onde permanecia até o amanhecer, quando Wyatt a chamava. Tornava-se claro que estavam virtualmente separados e tinham quartos independentes, à espera, sem dúvida, de um divórcio mais completo, residindo aí, creio eu, o mistério do terceiro camarote.

Também outra circunstância me interessou bastante. Durante as duas noites de insônia de que falo, e imediatamente depois da saída da Sra. Wyatt, chamaram-me a atenção certos ruídos estranhos e discretos na cabine do marido. Depois de escutar com atenção durante um momento, pude, por fim, compreender sua significação. Tratava-se do ruído feito pelo artista para abrir a caixa oblonga, valendo-se de um escopro e um martelo, este último envolto, para abafar o som, em lã ou algodão.

Assim me pareceu distinguir o momento preciso em que conseguiu retirar a tampa e colocá-la na cama baixa do camarote, por certas pequenas pancadas que deu com a tampa nas bordas de madeira quando procurava colocá-la muito suavemente sobre o leito, já que não dispunha de outro lugar no quarto. Seguiu-se a isso uma tranquilidade completa, e nada mais ouvi, das duas vezes, até o amanhecer; talvez, algum soluço reprimido ou algum murmúrio contido e mal perceptível, se não é que se tratasse de fantasia de minha própria imaginação. Digo que parecia soluço ou suspiro, embora pudesse não ser nada e originar-se em meus próprios ouvidos toda aquela aparência. Provavelmente, o Sr. Wyatt dava rédea solta a alguma de suas fantasias, caindo num arrebatamento artístico. Mas, se havia aberto a caixa, seria para gozar do tesouro pictórico e não haveria, portanto, nada que o pudesse fazer soluçar. Repito que deveria ser tudo puro engano de minha imaginação alterada pelo chá verde do excelente comandante Hardy. Antes do amanhecer, nas duas ocasiões de que estou falando, ouvi como o Sr. Wyatt tornava a colocar a tampa da caixa oblonga, assim como os pregos em suas marcas primitivas, servindo-se do martelo. Uma vez terminada a operação, saía de seu camarote completamente vestido para ir buscar a Sra. Wyatt.

Fazia sete dias que estávamos no mar, e já passáramos pelo cabo Hateras, quando soprou um vento sudoeste particularmente forte. De certo modo, já nos achávamos preparados, pois o tempo vinha ameaçando há alguns dias. Fizeram-se os preparativos necessários e, como o vento soprava sem cessar, dispuseram as velas convenientemente.

Deste modo, continuamos navegando durante quarenta e oito horas, demonstrando o barco ser excelente de todos os modos, pois mal entrava alguma água. Depois o vento transformou-se em furacão e uma das velas espedaçou-se, inclinando-se o navio de tal forma que várias ondas o varreram. Neste acidente, perdemos três homens, a cozinha e outras coisas de bombordo. Mal nos recobráramos, quando outra vela se fez em tiras, tendo-se que consertá-la de maneira a irmos defendendo-nos.

Continuava, todavia, o navio sem dar sinais de que ia ceder. Mas, no terceiro dia, o mastro da mezena caiu a uma forte ventania de sota-vento. Apesar de nossos esforços, durante mais de uma hora não nos foi possível desfazermo-nos dele por causa do forte movimento do navio e, antes que o tivéssemos conseguido, soubemos que o porão estava inundado, com quatro pés de água. Para agravar a situação, as bombas estavam obstruídas e quase imprestáveis.

Tudo era confusão e desespero na embarcação, o que não impediu que se fizesse um esforço para aliviá-lo, atirando ao mar a carga disponível e cortando os dois mastros que ainda restavam. Mas não conseguíamos fazer com que as bombas funcionassem e, por conseguinte, a água aumentava consideravelmente dentro da embarcação.

Ao pôr do Sol, diminuiu a violência do vento e, como o mar começava a ficar tranquilo, tínhamos alguma esperança de poder salvar-nos em botes. Às oito horas, as nuvens dissiparam-se a barlavento, com a sorte de fazer Lua cheia, circunstância muito favorável em nossa situação, que levantou poderosamente os ânimos deprimidos.

Depois de grandes trabalhos, conseguimos colocar o bote maior ao costado do navio sem nenhum acidente material. Trasladou-se para ele toda a tripulação e a maioria dos passageiros, que se afastaram imediatamente e, após grandes sofrimentos, puderam chegar a Ocracoke Julet no terceiro dia do naufrágio.

Ficamos, a bordo, catorze passageiros com o comandante, resolvidos a confiar nossa salvação ao pequeno bote de popa. Descemo-lo com facilidade, embora só milagrosamente conseguíssemos que não afundasse ao chegar à água. Ocuparam a canoa o comandante e sua esposa, o Sr. Wyatt e sua família, um oficial mexicano com a mulher e quatro filhos, eu e um criado negro.

Não havia lugar para mais nada, senão para coisas absolutamente necessárias e algumas provisões. Ninguém pensara em salvar mais nada. Qual não foi a estranheza do todos quando, depois de nos afastarmos algumas braças da embarcação, Wyatt levantou-se na popa e pediu tranquilamente ao comandante que retrocedesse a fim de embarcar sua caixa oblonga.

Faça o favor de sentar-se, Sr. Wyatt. — Disse o comandante em tom sério. —Far-nos-á soçobrar se não ficar tranquilo. Nossa borda quase toca a água.

A caixa! — vociferou Wyatt, ainda de pé. — A caixa! Comandante Hardy, o senhor não pode, não deve negar-se! Seu peso é uma insignificância... é nada... menos que nada. Por sua mãe, pelo amor do Céu, por sua esperança na salvação, imploro-lhe que voltemos para salvar a caixa!

Por um momento, pareceu que o comandante se comovia ante a ardente súplica do artista; mas, recobrando sua atitude severa, disse simplesmente:

Sr. Wyatt, está louco. Não o posso escutar. Sente-se, senão vai fazer o bote soçobrar… Ah! Pare!… Segurem-no!… Vai-se atirar à água! Bem que o temia; já o fez!

Enquanto o comandante falava, Wyatt saltava, com efeito, do bote e, como ainda estávamos perto do navio, fazendo um esforço sobre-humano, conseguiu agarrar-se a um dos caibros que caíam da popa. Um momento depois, estava no passadiço e atirava-se para o camarote.

Enquanto isso, o vento nos atirara para popa e, fora já da proteção do navio, ficávamos à mercê das ondas ainda fortes. Fizemos um grande esforço para retroceder; mas nossa embarcação era como uma pluma levada pela tempestade e, num instante, vimos que a sorte de nosso infortunado amigo já estava decidida.

A distância entre nós e o navio aumentou rapidamente; mas ainda pudemos ver o louco — pois só assim podíamos chamá-lo — arrastando a caixa oblonga em virtude de um esforço que parecia gigantesco. Observamos com assombro como passava uma corda sólida, dando várias voltas em torno da caixa, primeiro, depois em volta do corpo. Uns instantes depois, a caixa e o corpo estavam no mar, onde desapareciam no mesmo momento e para sempre.

Remávamos lentamente, afastando-nos com tristeza daquele lugar, de onde não podíamos afastar o olhar. Por fim apressamos a marcha, mas sem romper o silêncio durante uma hora, até que decidi aventurar uma observação:

Reparou, comandante, na rapidez com que afundaram? Não é isso estranho? Declaro que tive esperanças de que se salvasse quando o vi amarrar-se à caixa e atirar-se ao mar.

Afundaram, naturalmente — respondeu o comandante e de golpe. —Todavia, voltarão à superfície; mas não antes que se dissolva o sal.

O sal? — exclamei.

Silêncio! — disse o comandante mostrando a mulher e as irmãs do morto. — Falaremos disso em ocasião mais oportuna.


*

Depois de muitos sofrimentos e grandes riscos, tivemos a mesma fortuna dos demais companheiros do navio, deitando pé à terra mais mortos que vivos, ao fim de quatro dias de intensa angústia, na praia oposta à ilha Roanoke. Permanecemos ali durante uma semana, sem que ninguém nos incomodasse, e, por fim, pudemos embarcar para Nova York.

Um mês depois do naufrágio do Independence, encontrei casualmente o comandante Hardy em Broadery. Naturalmente, nossa conversa recaiu sobre o desastre e especialmente sobre o triste fim do pobre Wyatt. Só então conheci os detalhes que se seguem.

O artista havia tomado passagem para ele, sua mulher, duas irmãs e uma criada. Sua mulher era, segundo ele mesmo dissera, muito formosa e de grandes qualidades. Na manhã do dia 14 de julho — dia em que eu fora ao navio pela primeira vez — a moça caíra doente, falecendo de repente. Seu marido estava louco de dor; mas, por causas inexplicáveis, não podia retardar sua viagem a Nova York. De um lado, era preciso levar à mãe o cadáver da esposa adorada; por outro lado, o conhecido preconceito geral o impedia de embarcá-lo abertamente, pois a maioria dos passageiros teriam abandonado o navio se soubesse da presença de um cadáver.

Ante esse dilema, o comandante decidiu que levassem para bordo, como bagagem, o corpo parcialmente embalsamado e encerrado com bastante sal numa caixa conveniente. Nada se diria do falecimento e, como todos sabiam que Wyatt tomara passagem para sua mulher, foi necessário que outra pessoa a substituísse durante a viagem, dando-se este encargo à criada da defunta. Conservou-se o camarote suplementar para a criada, onde haveria de dormir todas as noites, representando de dia, como pudesse, a senhora que, como se conseguiu averiguar, ninguém conhecia a bordo.

Meu erro foi devido, naturalmente, a meu caráter despreocupado, muito curioso e impulsivo. Mas, agora, tornou-se difícil para mim dormir profundamente, pois vejo diante de minha frente um mesmo semblante e, por mais voltas que dê, ressoa sempre em meus ouvidos um riso histérico.


Fonte: Síntese/RJ, edição de junho de 1945.


 

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