O ATIRADOR - Conto Clássico de Suspense - Alexandre Dumas
O ATIRADOR
Alexandre Dumas
Tradução de autor desconhecido do início do séc. XX
Nossa vida, na pequenina aldeia da Rússia, onde nosso regimento aquartelara, nada tinha de alegre. Nossa única distração era reunirmo-nos ora em casa de um, ora em casa de outro; e não mantínhamos relações senão entre nós mesmos.
Uma só pessoa, não militar, fazia parte de nosso grupo; era Sylvio, um homem de trinta e cinco anos presumíveis e, portanto, muito mais velho do que qualquer um de nós. E, antigo militar, sua experiência dava-lhe grande autoridade em nosso grupo. Nunca soubemos por que motivo deixara a carreira militar e se instalara naquela aldeia humilde, onde passava uma existência penosa e triste; mas sua casa estava sempre aberta aos oficias de nosso regimento.
Também não sabíamos quais eram seus recursos para viver, mas nunca nos atrevemos a fazer perguntas a tal respeito. Sua principal ocupação era atirar a pistola; as paredes de seu aposento estavam crivadas de balas e a perfeição de sua pontaria era tal que nos parecia insuperável.
Muitas vezes nossa palestra versava sobre duelos e notei que Sylvio mantinha nesses momentos absoluto silêncio.
Se um de nós lhe perguntava se já se havia batido, respondia apenas “sim”, em tom seco. E nada mais dizia. Essa singularidade convenceu-nos de que ele tinha na consciência algum incidente fatal devido a sua prodigiosa pontaria. Mas nunca o suspeitamos de cobardia; por isso, uma aventura, que sobreveio, nos deixou todos cheios de espanto.
Nesse dia, dez de nossos companheiros jantavam em casa de Sylvio e, como de costume, beberam largamente. Após a refeição, começamos a jogar.
Havia entre nós um novo conviva, um tenente recém-chegado do regimento e que não conhecia ainda os hábitos de Sylvio. Este nunca intervinha em nossas disputas de jogo. Travou-se uma discussão sem importância: o oficial novo apelou para o testemunho do dono da casa e, como este não lhe respondesse, julgou-se ofendido. Então, exaltado pelo vinho e pelo debate, apanhou sobre a mesa um candelabro e atirou-o à cabeça de Sylvio, que mal teve tempo para evitar o golpe e ergueu-se, livido de cólera, com os olhos faiscantes.
—Saia, senhor — disse ele, dominando-se a custo. — Saia e dê graças a Deus por se ter passado isto em minha casa.
Compreendendo as consequências inevitáveis do incidente, retiramo-nos, considerando nosso companheiro um homem morto. Mas, no dia seguinte, chegando ao campo de manobras, já ali encontram o tenente, que nos declarou não haver recebido de Sylvio a menor notícia.
Passaram-se mais três dias e Sylvio, ao invés de mandar testemunhas ao tenente, contentou-se com a mais vaga das explicações.
Isso produziu péssima impressão entre nós, mas, no fim de alguns dias, o caso foi esquecido e continuamos a manter boas relações com Sylvio.
Apenas eu, a despeito da amizade que lhe tivera, conservei uma impressão má, que me impediu de voltar a me aproximar dele; não tornei a procurá-lo e só lhe falava, quando nos encontrávamos por acaso.
Uma vez em que eu estava diante dele, vieram trazer-lhe uma carta e um embrulho. Ele abriu a carta com impaciência e, ao lê-la, ficou com os olhos flamejantes.
— Senhores — disse então Sylvio —, meus negócios exigem que eu parta imediatamente. Deixarei este lugar amanhã à noite e peço que jantem comigo pela última vez. Peço-lhes que não faltem e peço-o especialmente ao senhor — acrescentou, dirigindo-se a mim.
E afastou-se precipitadamente.
Cheguei à casa de Sylvio à hora indicada e ali encontrei já quase todos os oficias de meu regimento. Seus móveis já estavam todos acondicionados para a viagem, de modo que as paredes mostravam mais visíveis as marcas das balas. Sentamo-nos à mesa. O dono da casa estava tão alegre que nos pôs todos de bom humor.
Era tarde quando acabamos de jantar e ia, como os outros, despedir-me de Sylvio, quando ele me disse:
—Preciso de lhe falar.
Quando ficamos sós, ele guardou silêncio ainda por alguns instantes, depois disse:
—Provavelmente, nunca mais nos veremos. Provavelmente, deve ter notado que eu me incomodo muito pouco com a opinião alheia; mas, dada a simpatia que sempre nos uniu, ser-me-ia penoso deixar-lhe uma má impressão. Deve ter-lhe parecido estranho que eu não exigisse satisfações daquele ébrio, não é verdade? — continuou ele. — Ora, em primeiro lugar, há de compreender que, cabendo-me a escolha das armas, eu tinha sua vida em minhas mãos e, por as sim dizer, não corria perigo algum. Agora, poderia dizer-lhe que não o desafiei por generosidade, mas não quero mentir; tivesse podido puni-lo sem risco de vida, tê-lo-ia feito.
Fitei-o com estupefação.
Suas palavras assombravam-me.
Porém, ele prosseguiu:
— Sim. Eu não tenho o direito de arriscar minha vida. Há seis anos, um homem deu-me uma bofetada e esse homem ainda está vivo.
— Não se bateu com ele? — perguntei, no auge do espanto.
—Bati-me e aqui tem a prova de nosso duelo.
Tirou de uma caixa, que estava a um canto, um boné de oficial e colocou-o na cabeça. Apresentava um orifício de bala a uma polegada de sua fronte.
— Como sabe — continuou Sylvio —, eu servi num regimento de hussardos. Era então um alegre, um tumultuoso, considerado o mais jovial companheiro de todo o regimento.
“Um dia, foi transferido para esse corpo um oficial rico e de ilustre família. Nunca vi rapaz mais insinuante e encantador. Ao fim de poucos dias, ele se tornara para mim um rival sério. Sua popularidade no regimento enchia-me de ciúme. Comecei a provocá-lo, porém ele respondia a minhas indiretas com pilhérias mais espirituosas do que as minhas e minha cólera aumentava dia a dia. Uma noite, em um baile em casa de um fidalgo polaco, vendo que as moças só a ele davam atenção, disse-lhe ao ouvido uma injúria grosseira.
“Desta vez, ele zangou-se e, voltando-se, deu-me uma bofetada.
“Desembainhamos os sabres ali mesmo; houve um movimento de pavor entre as senhoras: os homens precipitaram-se para nos separar e tivemos que combinar um duelo regular para a madrugada seguinte.
“Ao alvorecer, eu estava no lugar marcado com minhas testemunhas. Com impaciência febril, esperei meu inimigo. Ele chegou pouco depois, trazendo uma só testemunha; vinha com passo calmo, comendo cerejas, que trazia dentro do boné.
“As testemunhas mediram doze passos. Eu tinha o direito de atirar primeiro, mas a cólera fazia-me a mão tremer tanto, que, para ganhar tempo, propus que ele atirasse primeiro.
“Como meu rival recusasse, as testemunhas resolveram submeter o caso à sorte.
“Mais uma vez, a sorte o protegeu. Ele visou e atravessou-me o boné. Cabia-me, agora, atirar. Enfim, tinha sua vida em minhas mãos. Fitei-o atentamente, procurando descobrir em sua face a sombra de um temor. Mas qual! Ele esperava tranquilamente comendo cerejas. Seu sangue-frio exasperou-me. Que me adiantava tirar a vida a um homem que parecia não fazer nela o menor empenho?
“Tive uma ideia cruel e baixando a pistola, disse:
“— Quer-me parecer que o senhor não está preparado para a morte. Peço licença para deixá-lo terminar sua jovial refeição.
“Ele deu de ombros.
“— Como quiser. Tem o direito de disparar um tiro contra mim… Se não quer fazê-lo neste momento, fico às suas ordens para quando quiser.
“Voltei-me para minhas testemunhas e disse.
“— Pois está decidido. Reservo-me para atirar em qualquer outro dia.
“Retiramo-nos todos, e eu, tendo pedido baixa do exército, parti uma semana depois. Desde esse dia, vivi com a preocupação de minha vingança e hoje, afinal, a hora chegou.
“Tirou do bolso a carta que recebera na véspera. Era de um amigo, comunicando-lhe que ‘a pessoa em questão ia desposar uma formosa moça’.
“—Leu? — disse ele. — Chegou a ocasião. Parto amanhã para Moscou; quero ver se ele agora encara a morte com tanta calma.”
Apertou-me a mão, sentou-se na carriola, que estava à sua espera, levando apenas uma capa e a caixa de suas pistolas.
*
Tinham-se passado alguns anos após esses fatos quando meus negócios me obrigaram a ir morar por algum tempo na aldeia de Nevart. A quatro verstas1 de minha casa, erguia-se uma bela propriedade pertencente à condessa de Beauport. O conde era um homem de trinta a trinta e dois anos, de belo e de nobre aspecto; acolheu-me cordialmente e encantou-me com sua conversação variada e espirituosa.
Apresentou-me sua esposa, que era de rara beleza e, em pouco, tornamo-nos quase íntimos, e tive real prazer em examinar os livros e quadros que o conde reunira com fino gosto.
Foi então que notei uma coisa muito singular em uma paisagem da Suíça. Duas marcas de bala uma sobre a outra, quase se sobrepondo.
—Olá! — exclamei. — Que bela pontaria!
—Ah! — murmurou o conde. —Gosta de atirar?
—Um pouco. E o senhor?
—Já atirei bem, mas há quatro anos que não empunho uma pistola.
—Ah! Então deve ter perdido muito. Essa arma exige exercício diário. O homem, que já vi atirar com mais segurança neste mundo, tinha por hábito, todas as manhãs, cortar três balas de pistola no gume de uma faca. Se lhe acontecia ver uma mosca pousada na parede, tirava a pistola do cinto e, quase sem visar — zaz!… —, esmagava-a.
— É maravilhoso! — exclamou o conde.
— Como se chamava esse homem?
—Sylvio.
—Sylvio! O senhor conheceu Sylvio?
—Éramos até muito amigos. E o senhor também o conheceu?
—Se o conheci! O senhor, que foi seu amigo, nunca o ouviu falar de mim?
—Nunca — respondi.
Mas, de súbito, com uma ideia instintiva, exclamei, fitando-o:
—A menos que o senhor seja o homem que ele…
— Sim. Sou — respondeu o conde com viva emoção. — E esse quadro é a prova de nosso último encontro. Já que o senhor conheceu o princípio desta aventura, ouça… Vou lhe contar como ele se vingou. Logo que me casei, vim passar um mês aqui. Poucos dias depois, vieram me dizer que um homem desconhecido queria falar comigo. Entro nesta sala e vejo-o de pé junto daquela porta.
—Sylvio! — exclamei. E confesso que senti um calafrio percorrer-me todo o corpo.
— Disse-me Sylvio: “Está disposto a receber o tiro que tenho o direito de lhe dar?”. Concordei com um gesto e, medindo doze passos, fui me colocar imóvel no outro extremo da sala, pedindo-lhe que atirasse sem demora, porque minha esposa podia aparecer a cada momento.
“Ele fez pontaria para mim. Eu contava os segundos, pensando em minha amada. Foi um instante horrendo. E ele demorava-o, gozando minha emoção.
“De súbito, deixou cair o braço e disse:
“— Não. Isto assim dá-me a impressão de um assassinato. Não posso atirar sobre um indivíduo desarmado. Vá buscar sua pistola e tiremos de novo a sorte para ver a quem cabe atirar primeiro.
“Eu estava estonteado. Creio que comecei por não concordar; mas, depois, tirei minha pistola de uma gaveta e carreguei-a. Ele escreveu nossos nomes em dois pequenos pedaços de papel e colocou-o dentro do boné, que eu perfurara com um tiro, seis anos antes. Ainda uma vez a sorte me designou:
“ —Homem feliz! — murmurou ele, com um sorriso, que nunca hei de esquecer.
“Atirei e, ao invés de acertar nele, mandei a bala àquele quadro.
“Sylvio ergueu de novo sua arma e visou. Desta vez, havia em seu rosto uma expressão que não me permitia esperar misericórdia. De súbito, a porta se abriu; minha mulher acudira ao estampido e, com um grito, de terror abraçou-se comigo. Sua presença restituiu-me todo o sangue frio.
“—Louquinha! — exclamei. — Não vês que se trata de uma brincadeira, de uma aposta? Afasta-te.
“Porém, ela não acreditou e, como uma louca, dirigiu-se a Sylvio.
“—Deveras, senhor? Isso é uma brincadeira?
“—Pois claro! — respondeu ele, com uma gargalhada sarcástica. — Seu marido gosta muito de brincar comigo. Um dia, por brincadeira, deu-me uma bofetada; outro dia, ainda por pilhéria, fez com uma bala este furo em meu boné; agora, brincando sempre, atirou contra mim e acertou naquele quadro. Cabe-me, agora, a vez de brincar.
“E ergueu de novo a pistola. Maria compreendeu tudo e atirou-se de joelhos a seus pés.
“—Oh! —exclamei furioso. — Não me envergonhes deste modo.
“E, voltando-me para Sylvio, gritei-lhe:
“—Vamos. Atire e acabemos com isto.
“—Não — disse ele. — Vi tua angustia, teu amor. Duas vezes atiraste contra mim e erraste o tiro. Estou vingado. Deixo-te com tua consciência.
“Dirigiu-se para a porta; mas, antes de sair, voltou-se e, quase sem visar, disparou a pistola. Para me provar a certeza de seu tiro, pusera sua bala sobre a minha.”
Fonte: Vida Policial/RJ, edição de 1º de maio de 1926.
Fizeram-se breves adaptações textuais.
Nota:
1Cerca de 4300 quilômetros.
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