HABILIDADES DEFEITUOSAS - Conto de Ficção Científica e Terror - Marcelo Medone
HABILIDADES DEFEITUOSAS
Marcelo Medone
Tradução de Marcelo Medone
— Isso é um desastre — disse-me a agente policial Isabel Requena, enquanto estremecia de desgosto ao ver um pedaço de músculo rasgado, com uma mancha de sangue coagulado ao redor, caído no chão de ladrilhos do laboratório de pesquisa em ruínas.
Assenti com a cabeça, mais interessado em estudar o local do que nos comentários da minha assistente. Mas ela não deu trégua ao interromper minhas reflexões. Ela olhou para mim como um aluno zen buscando a aprovação de seu antigo mestre.
— Restos humanos? — insistiu.
— Teremos que analisá-los. Não há cabelos visíveis. Pode ser tecido de aves. Ou retroaviário, que é a mesma coisa: uma diferença semântica, em resumo.
Andamos pelo resto do laboratório, que estava um caos, com prateleiras reviradas, tubos de vidro quebrados por toda parte, geladeiras abertas e desordenadas.
De repente, me deparei com um cadáver caído no chão: tive que me afastar para não pisar nele. Era um homem de sessenta e poucos anos, vestido com uma bata branca, deitado de bruços, com a cabeça virada para o lado em um ângulo impossível, os olhos arregalados e a língua saindo pela boca com a mandíbula desconjuntada. Seu rosto parecia ter sido parcialmente devorado, assim como parte de seu pescoço e um braço. Requena viu a cena e foi, pálida, vomitar no banheiro.
Peguei o cadáver pelos ombros e o virei; um cartão com a foto e o nome dele estava preso no bolso superior da bata: “Huincul, Tarcisio Jerónimo”. Li em voz alta para que Requena ouvisse do banheiro. Ela voltou, mais aliviada.
— O nome não me diz nada — disse ela.
— Também não me parece familiar — eu respondi.
Chamamos os peritos forenses: eles iam demorar um pouco. Encontrei uma mesa com um terminal de computador. Sentei-me e verifiquei se ele estava ligado. Por sorte, ele não me pediu uma senha.
Abri o menu e apareceu uma pasta de arquivo que dizia “TJH”: a pasta de Tarcisio Jerónimo Huincul, sem dúvida. Abri a pasta e apareceu o menu de arquivos. O primeiro arquivo se chamava “Diário de Pesquisa”. Requena olhou por cima de meu ombro, ansiosa.
— Vamos dar uma olhada. Pode haver algo lá — disse ela.
Eu lhe obedeci e pressionei ENTER.
“DIA 1.
Início formal do Projeto Retroterópode da Patagônia. Entrada de 24 casais reprodutores de ema ou nhandu (Rhea americana), provenientes de fazendas locais, aclimatados ao microclima de Trelew. Essa espécie de ratites foi escolhida, além da conveniência logística, por sua relativa docilidade em comparação com outras aves da ordem Strutioniformes, como o avestruz africano (Struthio camelus), a ema australiana (Dromaius novaehollandiae) e o casuar (Casuarius casuarius), da Austrália e da Nova Guiné.
Anteriormente, identificamos o genoma completo da Rhea americana e isolamos os genes responsáveis pelo desenvolvimento de características ancestrais de terópodes, como dentes de bico, garras nas asas, maior desenvolvimento muscular e ósseo, comportamento predatório de répteis...”.
— O que tudo isso significa? Eles criaram emas? — Requena me perguntou.
Olhei para ela com certa condescendência. Nem todos os policiais são fanáticos por dinossauros como eu. Pelo menos não em suas vidas adultas. Quando eu tinha quinze anos, assisti ao filme Jurassic Park, de Spielberg, e me apaixonei por aqueles animais magníficos e aterrorizantes. Eles ainda me fascinam até hoje.
Fiz minha melhor cara de professor de ciências e respondi:
— A maioria das pessoas acha que os dinossauros foram extintos com a queda de um meteorito na costa de Yucatan, há 66 milhões de anos. Mas esse não é o caso. Há um grupo que sobreviveu e até prosperou: estamos cercados por eles. Eles são as aves. Em essência, as aves são dinossauros modernos.
— Então um pardal é descendente de um brontossauro?
— Não. Os brontossauros e apatossauros (os répteis herbívoros gigantes dos filmes) não deixaram descendentes: eles eram dinossauros saurópodes. Os que continuaram sua linhagem até as aves foram os outros, os carnívoros, os terópodes. Como o famoso tiranossauro e os raptores. As galinhas são os velociraptores de nosso tempo.
Requena ficou parada por um tempo, ruminando minhas palavras e assimilando-as. Ela olhou para mim como se fosse dizer algo, mas eu me antecipei a ela.
— Quer saber o que tudo isso tem a ver com a criação de emas no meio da Patagônia argentina?
Requena assentiu enfaticamente com a cabeça.
— Que eles estão tentando transformar terópodes aviários em terópodes dinossaurídeos. Mergulhando nos genes dormentes da ema para encontrar e ativar características reptilianas. Transformar uma ema em uma espécie de velociraptor: além de fazê-la desenvolver as características mais notórias, como dentes e garras, aumentar seu tamanho, massa muscular e força, até mesmo modificar seu caráter para transformá-la em um verdadeiro predador. Ninguém quer um velociraptor tímido que foge ao ver humanos.
Avancei várias páginas do diário de Tarcisio Jerónimo Huincul. Eu me situei sete meses após o primeiro registro.
“DIA 216.
Fizemos um progresso notável. Os filhotes, que agora nascem com dentes no bico e garras vestigiais na extremidade de cada asa, estão apresentando características comportamentais inéditas entre as emas. Modificamos os genes que regulam a resposta simpaticomimética para induzir a agressão em vez da fuga. Além disso, eles atacam os filhotes uns dos outros e matam os mais fracos.”
Continuei lendo o diário:
“DIA 301.
As injeções intraovulares do agente estimulador da proliferação neuronal proporcionaram um aumento médio de 32% na massa cerebral dos pintinhos. Eles estão resolvendo testes de labirinto e de memória com o dobro da velocidade do grupo de controle. Eles estão até mesmo mostrando sinais de agressão combinada: agem como leões ou lobos, com táticas de matilha.
Nossos retroterópodes são definitivamente inteligentes e gregários”.
Requena estava começando a ficar inquieta.
— Quanto tempo mais levará para os cientistas chegarem? Este lugar me deixa nervosa.
— Não se preocupe. Eles devem chegar logo. Não há urgência: cadáveres não mudam de lugar — eu disse rindo, mas ela não estava se divertindo.
Continuei lendo o jornal:
“DIA 422.
O tamanho de cada ninhada está crescendo geometricamente, assim como os próprios ovos, que aumentaram para o tamanho de ovos de avestruz. O período de incubação aumentou dos 40 dias iniciais, típicos dos ratites, para cerca de 48.
Morfologicamente, os membros superiores não se assemelham mais a asas e suas garras estão quase totalmente desenvolvidas. Até mesmo esporões ósseos semelhantes a facas nos membros posteriores estão totalmente desenvolvidas e funcionais. Não os considero mais retrognatídeos, mas mutarraptores”.
As imagens mostradas não eram de emas domesticadas e curiosas: eram de feras selvagens com olhares penetrantes e corpos corpulentos armados para o ataque.
“DIA 491.
Nossos mutarraptores aprenderam a manipular objetos e usá-los como ferramentas. Suspenderei as injeções do agente de proliferação neural até que eu tenha avaliado melhor a inteligência atual deles.”
Então, ouvi batidas na porta do laboratório.
Eu disse a Requena:
— Abrir a porta para os especialistas.
Requena, aliviada, foi até a porta. Assim que a abriu, um mutarraptor enorme, tão alto quanto um humano e com o dobro da ferocidade de um pitbull, atacou-a. Em um instante, ele a derrubou, rasgou seu abdômen com um dos esporões e afundou o bico cheio de dentes afiados em seu pescoço.
Em menos de um minuto, a agente policial Isabel Requena estava morta, com o rosto desfigurado e as vísceras expostas em uma poça de sangue.
O animal feroz soltou um grasnido e eu vi pelo menos dois outros se aproximando, talvez muitos mais.
Sem perder tempo, saí por uma janela estreita que dava para o estacionamento do laboratório. Lá, vi os corpos mutilados dos especialistas e de um guarda caídos na calçada. Um mutarraptor estava ocupado comendo o cérebro deste último.
Assim que percebeu minha presença, ele olhou para mim, estudando-me, e então roubou a arma do oficial caído com seu bico. Com incrível destreza, ele pegou a pistola Browning GP-35 em suas garras e a apontou para mim.
Os tiros ainda soam em meus ouvidos. Juro que contei os tiros das 13 balas no carregador da 9 milímetros. Felizmente, as habilidades do retroterópode ainda eram defeituosas e não incluíam tiro de precisão.
Primeiro prêmio do concurso “Terror Gótico e Monstros Experimentais” da Kanon Ediciones, Lima, Peru, publicado na antologia correspondente em maio de 2021.
Ilustração: PS/Copilot.
Este conto foi publicado originariamente, em português e espanhol, na revista Relatos Fantásticos. Para acessá-la, clique AQUI .
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