O JUIZ CONDENADO AO INFERNO - Conto Clássico de Terror - Juan Antolinez de Burgos

O JUIZ CONDENADO AO INFERNO

Juan Antolínez de Burgos

(1561 – 1644)

Tradução de Paulo Soriano



No corpo da igreja não há lugar vazio: todo o chão se encobre de túmulos, lousas, com suas inscrições dos nomes de seus donos; só dois carecem de pedras e, em seu lugar, há duas lajes e, nelas, duas figuras, uma de um homem e outra de uma mulher. Estas lajes se despedaçaram com o tempo, de modo que os túmulos ficaram sem lousas ou pedras.

É tradição em Valhadolide que ali foi enterrado um certo juiz que, em corpo e alma, foi levado pelo inimigo do gênero humano ao castigo eterno. Vários autores relatam o caso e a tradição afirma que a desventura ocorreu aqui. O relato é o que se segue:

Um certo jurista morreu e, no dia seguinte — como era o costume —, um certo religioso deveria predicar em seu funeral. Este padre, na noite anterior, fora à biblioteca do convento para preparar o sermão. Em meio a esse cuidado, na calada da noite, ele ouviu um lamentoso toque de trombeta, que o encheu de terror e espanto. Quando o pavoroso estrondo traspassou a porta da biblioteca, o religioso, movido de justo temor, escondeu-se embaixo das estantes; e de lá viu entrar uma multidão de enlutados; dentre estes, o que parecia ser o superior, sentou-se e ordenou que trouxessem a alma daquele jurista infeliz. Então, uma miríade de demônios entrou, fazendo um grande alarido de correntes, e lançou a alma do dito jurista num fogaréu cercado por inúmeros demônios, que a atormentavam.

Disse o presidente:

Leia um de vós o processo e a sentença que a majestade de Deus proferiu contra esse homem.

Um deles saiu e leu os graves crimes que aquele desgraçado havia cometido e, chegando ao fim, disse:

Por esses terríveis pecados nos quais morreu fulano, nós o condenamos à prisão perpétua no Inferno, em corpo e alma, desde o presente dia.

Disse, então, um daqueles enlutados:

Como haverá de ser publicada esta sentença e como tomaremos o corpo que — já sabeis — não podemos chegar a tocá-lo?

O presidente respondeu:

Traz aquele religioso, que ali se esconde; ele será testemunha e publicará amanhã esta sentença. Ele nos dará o corpo deste maldito.

Trouxeram o religioso — não há necessidade de ponderar sobre seu medo e confusão — e, mostrando-lhe a miserável alma, condenada à punição eterna, disse-lhe o presidente:

Amanhã pregarás o que vês e o que verás.

Dali, o pregador seguiu à igreja, acompanhado por aquela alma infeliz e inúmeras legiões de demônios e, como decorrência da ordem da Justiça Divina de executá-la, o Céu conferiu-lhe força e coragem, de modo que, sem desmaiar, e pôde ele percorrer tais estações.

Chegados ao sepulcro deste infeliz, os inimigos abriram-no, mas não lhe ousaram tocar o corpo; outros lá surgiram com muitos círios e se ajoelharam, e o presidente disse ao religioso que fosse à sacristia, colocasse uma sobrepeliz e trouxesse um cálice; ele foi e, encontrando aberta a sacristia, fez conforme lhe fora ordenado.

Voltaram ao sepulcro e o presidente ordenou que toda a terra fosse dele removida; disse ao sacerdote que colocasse o cálice junto à boca do defunto. Ele o fez, e saltou dentro do cálice a hóstia consagrada que havia recebido e, naquele ponto, ficando o religioso com o Santíssimo, alguns o acompanharam até o altar iluminado, enquanto outros pegaram o desventurado corpo e o levaram embora.

Nesse ponto, sucedeu-se uma tal tempestade que pareceu sucumbir o mundo, agitado por trovões, relâmpagos e águas tão furiosas que acordavam os que mais profundamente dormiam; e todas as pessoas da cidade foram obrigadas a pedir favor ao Céu e a clamar por misericórdia.

No dia seguinte, o obediente religioso pregou o que havia visto.


Fonte: Antolínez de Burgos, Juan. Historia de Valladolid, Hijos de Rodríguez, 1887, pp. 264-266. 

 

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