A FANTASMAGÓRICA HISTÓRIA DE HOICHI - Conto Clássico Sobrenatural - Koizumi Yakumo

A FANTASMAGÓRICA HISTÓRIA DE HOICHI

Koizumi Yakumo

(Lafcadio Hearn)

(1850 – 1904)

Tradução de autor anônimo do séc. XX


Já vai longe o tempo — sete séculos talvez — em que, em Danno-ura, no estreito de Shimonosekti, culminou, numa grande batalha, a rivalidade existente entre os Heikés, da tribo de Taira, e os Genjis, da tribo Minamoto. Venceram os Genjis, os quais, como prêmio da vitória, exterminaram todos os Heikés, não escapando nem o jovem imperador — com suas mulheres e filhos — nem mais o mais humilde vassalo.

Após esse espantoso massacre, tornaram-se malditos o mar e as orlas do estreito… Por aí, coisas estranhas pairam com frequência… Em certas noites sombrias, brilham, semelhantes à chama mortiça, miríades de “luzes fantasmas”, que dançam sobre a superfície das águas num ritmo infernal. A esse espetáculo dão-lhe os pescadores o nome de Onibi1.

Quando o vento, brandindo e silvando, torna revolta as águas oceânicas, eleva-se, então, formidável clamor que faz lembrar aquela gigantesca batalha. Antigamente, as almas dos Heikés mostravam-se muito mais inquietas que agora. Levantavam-se, ameaçadores, os fantasmas em torno das barcaças, tentando soçobrá-las. Outras vezes, procuravam atrair os nadadores solitários para as profundezas insondáveis do mar.

Foi com o fito de acalmar esses malignos espíritos que se elevou, em Shimonoseki, o templo budista de Ami-daji Construiu-se, também, perto da praia, um grande cemitério, com mausoléus artísticos, nos quais foram inscritos os nomes do imperador e de seus nobres vassalos. Incessantemente, para o eterno repouso das almas, são celebrados ofícios religiosos.

Erguido o templo, é bem verdade que as almas torturadas dos Hekiés não deixaram de aparecer, pois, de quando em quando, feitos misteriosos e rumores confusos vêm comprovar que ainda não encontraram repouso definitivo


*


Há alguns séculos, vivia, na aldeia de Shimonoseki, um cego chamado Hoichi, conhecido em todo o país pela excelência de seu talento declamatório e pela arte esquisita com que tocava a “biwa”2. Ainda criança, aprendera a música e a declamação. Cedo, tornou-se superior aos próprios mestres, celebrizando-se como “sacerdote-lutier” pela emoção com que declamava a lenda da rivalidade entre Heikés e Genjis. Dizia-se mesmo que era tão exímio e perfeito, que os próprios fantasmas gemiam quando ele entoava o poema do encontro que tivera lugar nos campos de Dan-no-ura

Ao iniciar sua carreira de músico, Hoichi teve a miséria por companheiro. E continuou nessa sofredora peregrinação até que lhe apareceu o monge guardião do templo de Amijadi que, amante da música e da boa poesia, frequentemente o levava à sua morada, para ouvir dele lendas e poemas trágicos. Emocionado com o talento do jovem músico, propôs-lhe fosse morar, ao seu lado, no templo. Em compensação, Hoichi deveria recitar e cantar para ele quando outros compromissos não o impedissem de fazê-lo. Enternecido, aceitou o cego a proposta e instalou-se, definitivamente, no templo.

Em uma cálida tarde de verão, foi o bondoso monge chamado, com urgência, para celebrar a extrema-unção na casa de um de seus fiéis. Apressadamente, abandonou o templo, em companhia de seu ajudante, deixando Hoichi sozinho. Este, antes de deitar-se, resolveu tomar um pouco de ar fresco. Sentou-se na galeria que dava para um pequeno jardim, situado na parte posterior do templo e, pacientemente, aguardou a chegada do monge. Para distrair-se, tocava “biwa”.

Ao soar meia-noite, o monge não havia regressado ainda. Entretido com sua arte, o cego deixava que as horas se escoassem deliciosamente. Súbito, sua atenção foi despertada por uns passos que, firmes, se acercavam das grades do jardim. Detiveram-se, um instante, diante da pequena porta de ferro e atravessaram-na depois.

Hoichi estremeceu. Aquele andar lhe era desconhecido. Habituado a discernir os menores ruídos, permaneceu atento para certificar-se de que não se enganara. Suas suspeitas foram imediatamente confirmadas quando uma voz, forte e sonora, chamou-o pelo nome. Pelo tom autoritário, só poderia tratar-se de um samurai.

O cego recebeu o primeiro chamado assustadiço e calado. Insistente, vibrou o segundo grito:

—Hoichi!

Desta feita, o músico, aterrorizado, arregalou os olhos sem luz e, trêmulo, balbuciou:

— Hein?… Não posso ver… Quem me chama?

—Nada tens a temer — respondeu-lhe a voz com brandura. — Meu senhor, que é de condição muito elevada, deteve-se em Shimonoseki, com seu séquito, para satisfazer um desejo antigo: ver os campos onde se travou a batalha de Dau-no-ura. Aqui, está desde ontem. Mas a fama do talento, do entusiasmo e do brilho com que declamas a célebre lenda desse combate chegou a seus ouvidos, em regiões distantes… Meu senhor quer, pois, contemplar os campos de Dan-no-ura ao som de tua arte maravilhosa. Empunha tua "biwa" e segue-me até onde nos espera a augusta assembleia.

Por aquele tempo, segundo os costumes sociais, um samurai exercia poder inconteste sobre as classes inferiores. A vontade dele era satisfeita religiosamente pelos indivíduos de condição menos favorecida. Razão por que Hoichi, automaticamente, calçou as sandálias, dispondo-se a acompanhar o estranho visitante.

Guiado por ele, a passos largos, caminhou para fora do templo. Enveredaram por um caminho lateral e, silenciosos, prosseguiram na marcha. Pairava sobre a terra o silêncio misterioso da noite. Em volta, tudo dormia tranquilamente. Pelo chão adormecido, havia sinais de aniquilamento e morte. Somente no alto, no brilho refulgente das estrelas, parecia haver vida, animando os profundos mistérios dos infinitos insondáveis.

Um ruido seco e metálico era a única coisa que quebrava o adormecimento da natureza. Partia da armadura do desconhecido que, segundo supunha Hoichi, deveria ser guarda do palácio.

Vencidos os primeiros temores naturais, o músico passou a refletir, com calma, na frase que o estranho pronunciara ao entrar no templo: “Meu senhor é de condição muito elevada”.

Por fim, a sorte que, tantas vezes, lhe fora adversa, dele se lembrara, oferecendo-lhe a oportunidade de cantar perante uma assembleia, presidida, por certo, por um dáimio de primeira classe. Se assim fosse, a recompensa que receberia torná-lo-ia descansado para o resto da vida.

Ia embebido nestas cogitações quando foi obrigado a deter-se diante de uma porta de ferro. Mostrou-se surpreso. Jamais tivera conhecimento de que por aquela região, em muitas léguas ao redor, houvesse porta semelhante àquela. Abriram-na imediatamente a uma ordem do desconhecido. Atravessaram um pequeno jardim e pararam em frente a uma outra porta. Repetiu-se a mesma ordem, que, como anteriormente, foi cumprida incontinênti. Agora, encontravam-se em amplo salão. O misterioso condutor do cego, detendo-se, exclamou solenemente:

—Senhores! Trago-lhes Hoichi!

Grande agitação abafou-lhe as últimas palavras. Ouviram-se passos apressados atravessando a sala; uma quantidade infinita de pequenos rumores, causados por inúmeras cortinas descerradas umas após outras, eram o entreabrir de portas e vozes abafadas de mulheres em comentários rápidos. Pouco tempo se demorou ai. As mulheres incumbiram-se de guiá-lo, enquanto o samurai voltava sobre os passos. Conduziram-no por uma escada, em cujo topo pediram a Hoichi que descalçasse as sandálias.

Em seguida, uma suave e fria mão feminina tomou a sua e fê-lo caminhar, descrevendo uma interminável série de complicadas voltas, chegando por fim, ao que lhe pareceu, a uma sala de grandes proporções. Presumiu Hoichi que estivesse repleta. Pelo menos, é o que indicava o roçagar das sedas, tão intenso que fazia lembrar as folhas das árvores de um bosque agitadas pela brisa O murmúrio crescente das vozes, que falavam em linguagem das cortes, faziam-no pintar, com a imaginação, um quadro imponente.

Alguém se aproximou, então, de Hoichi e falou-lhe com voz feminina:

— Pedem para que recites, hoje, a lenda dos Heikés, acompanhado de tua “biwa”.

O poema era longo. Para declamá-lo todo, seriam necessários muitos dias, razão por que Hoichi, timidamente, se atreveu a dizer:

— A lenda é muito grande para ser recitada de uma só vez. Que trecho deseja ouvir a augusta assembleia?

—Recita-nos o trecho da batalha de Dan-no-ura, porque esse é o mais trágico episódio e de mais tristes recordações — respondeu-lhe a mesma pessoa.

Hoichi elevou, então, a voz. Debilmente a princípio, tornou-se firme à medida que avançava no relato da amarga derrota dos Heikés, sofrida nas águas fatídicas do estreito de Shimonoseki e nas areias de suas praias. Seus longos dedos acariciavam apenas o instrumento, de cujas cordas mágicos sons eram arrancados, revivendo a epopeia daquela luta de gigantes. As notas sonoras do instrumento corriam céleres umas após outras, imitando, com extraordinária precisão, o bater dos remos na água, o brusco deslizar das pirogas, o sinistro sibilo das flechas, o grito dos guerreiros, o som metálico das espadas contra as armaduras, o baque surdo dos corpos sobre o mar. Quando fazia ligeira pausa, para tomar alento, escutava em seu redor um murmúrio abafado de manifestações elogiosas:

— Que maestro!… Que artista maravilhoso!… Hoichi é incomparável!… Nunca ouvi ninguém tocar com tanta perfeição!…

Hoichi, envaidecido, sentiu-se penetrado por um entusiasmo divino e declamou e cantou como jamais o houvera feito antes. Sua arte atingiu o sublime. Seus versos e sua música adquiriram expressões verdadeiramente extraordinárias, como se alguma força sobrenatural o agitasse.

Fez-se profundo silencio ao seu redor.

Parecia que os ouvintes, eletrizados por aquela grandiosa manifestação da arte, continham a própria respiração para não perder uma única nota do dramático relato. Momentos houve em que Hoichi atingiu ao auge. Declamava o episódio mais empolgante da narrativa. Aquele em que, com versos profundos e comovedores, descreveu o cruel destino das mulheres e crianças da tribo, perseguidas e massacradas, sem piedade, pelos Genjis vitoriosos; aquele em que seus versos, cheios de sentimentos, relataram o gesto trágico e heroico da favorita do imperador, Nii-owa, que, fugindo desesperada da turba ululante, se atirou, com as vestes incendiadas, do alto do navio ao seio ensanguentado das águas, levando nos braços o pequeno herdeiro do trono. Um longo e sentido grito percorreu toda a assistência que se pôs em soluços desesperados. Assustado com tão inesperada manifestação de dor, Hoichi tremeu. Por algum tempo, somente se ouviram choros e lamentos, que, pouco a pouco, foram decrescendo. Finalmente, a mesma mulher, que ante a ele se dirigira, disse-lhe, pausadamente:

— Hoichi! Por mais que nos dissessem de teu talento na arte de recitar e de tocar a “biwa”, nunca poderíamos supor que chegasses às raias do maravilhoso, como acabas de comprová-lo. Meu senhor deseja recompensar-te largamente. Manifestou, também, o agrado que teria em ouvir-te durante essas noites seguintes. Deverás cantar para ele e seus acompanhantes. É bem possível que, após essa demora, empreenda “sua augusta viagem de repouso”. Amanhã — prosseguiu ela — a esta mesma hora, serás esperado aqui. Quem te trouxe hoje poderá conduzir-te das outras vezes. Antes que me esqueça, devo fazer-te uma última recomendação. Não fales a ninguém de tuas viagens a estes lugares, enquanto permanecer, em Shhnonoseki, o nosso augusto senhor. Como viaja incógnito, ordena-te que não menciones seu nome em parte alguma. Agora, podes regressar ao templo.

Amanhecia quando Hoichi chegou à casa, guiado pelo samurai. Sua ausência não fora notada e, durante o dia, tivera o cuidado de não mencionar o acontecimento da véspera.

À meia-noite, conforme lhe fora dito, o samurai voltou ao templo para levá-lo à augusta assembleia. Repetiu-se o êxito da noite anterior. Desta feita, porém, notaram sua ausência. O monge esperava-o, de pé, na porta de seu quarto.

Quando Hoichi, cautelosamente, se acercava de seus aposentos, a voz do amigo, num tom de afetuosa reprovação, fê-lo deter os passos:

—Ficamos inquietos com tua ausência, porque és cego. Não deves sair só, mormente à noite. Por que não me preveniste? Teria mandado um servente em tua companhia. Aonde foste?

—Perdoe-me, meu bom amigo — respondeu-lhe Hoichi.

E acrescentou, evasivamente:

— Fui tratar de um assunto muito importante, mas exclusivamente pessoal, e a noite é o único momento em que posso realizá-lo.

O monge quedou certo de que seu companheiro ocultava a verdade. Entretanto, não contestou. Preferiu ordenar a seus criados que estivessem atentos a todos os movimentos do cego, seguindo-o mesmo, se acaso chegasse a afastar-se do templo.

Como das outras vezes, à meia-noite, Hoichi saiu. Agora, porém, era observado pelos fieis criados do monge, que o seguiam de lanternas acesas. Era uma sombria noite de tempestade. Pesadas nuvens, morosamente, vagavam pelo espaço. A escuridão era completa e a luz das lanternas perdia-se pálida e esbatida no envoltório negro da noite. Quase não se via Hoichi. Somente, de quando em quando, é que seu perfil se delineava nítido à luz fugitiva e intermitente das faíscas que riscavam o céu. Ele marchava, ereto e rápido, por aquela escuridão tremenda, como se caminhasse por largas estradas, guiado pela luz dos próprios olhos. Por mais ativa que fosse a vigilância de seus seguidores, inexplicavelmente, após uma curva do caminho, ele não mais foi visto. Infrutíferas foram as buscas feitas para encontrá-lo. Nas casas dos arredores, em que bateram perguntando por ele, a resposta era sempre a mesma: ninguém o tinha visto.

Desanimados, resolveram regressar ao templo. Detiveram-se, porém, a meio do caminho, ao ouvir o som puríssimo de uma “biwa”, tão extraordinariamente tangida que se supunha a intenção do músico fosse domar, pela música, a fúria dos elementos desencadeados. Ao mesmo tempo, uma sucessão infinita de fogos fátuos e labaredas nervosas surgiam aqui e acolá, ora baixando, ora subindo, acompanhando o ritmo agitado daquela música cheia de mistérios. De olhos esgazeados, passos trôpegos, respiração ofegante, aproximaram-se do cemitério, com cautela.

À luz de suas lanternas, puderam contemplar uma cena surpreendente: sentado junto à catacumba do jovem imperador Anteko-Teunu, Hoichi tocava sua “biwa” com desenfreado furor e declamava, cheio de exaltação, os versos da batalha de Dan-no-ura…

Do alto de sua cabeça, do seu lado, debaixo de seus pés, das sepulturas vizinhas, irrompiam “os clarões fantasmas”, como a emoldurar de luz a figura delicada de Hoichi. Jamais aos mortais fora dado contemplar tal quadro.

—Hoichi-San!… Hoichi-San! — gritaram-lhe os homens aterrorizados. — Estás endemoninhado, Hokhi-San?

O cego não os ouvia. Tocava com fúria crescente o instrumento e narrava as alternativas do grande combate.

Os serventes, amedrontados, mas animados todos, cada qual pela presença dos outros, aproximaram-se dele e, tomando-lhe a aba do casaco, gritaram-lhe:

—Hoichi-San! Saiamos daqui!

Hoichi, então, vivamente contrariado, voltou-se e disse-lhes:

—Não tolerarei que me interrompam dessa forma, diante de tão augusta assembleia.

Os serventes perpassaram, cheios de terror, os olhos ao redor, sem nada ver, nem compreender. E, julgando Hoichi alucinado, levaram-no à viva força para o templo. Trocaram-lhe as vestes encharcadas e deram-lhe de comer. A seguir, conduziram-no à presença do monge, o qual lhe pediu, energicamente, explicações sabre tão estranha conduta.

Antes de obedecer-lhe, Hoichi vacilou. Mas, compreendendo que sua fuga havia alarmado o amigo, relatou-lhe, minuciosamente, o que acontecera. Quando terminou, o amigo, em voz pausada, disse-lhe:

—Hoichi, meu caro! Corres um enorme perigo. Teu maravilhoso talento causar-te-á inúmeros contratempos. De início, devo dizer-te que não tocaste para assembleia alguma. Pura ilusão. Estas três últimas noites passaste-as na cidade dos mortos, entre os túmulos dos Heikés. Na noite chuvosa de hoje, meus serventes encontraram-no junto ao túmulo de Anteko-Teunu. O que supões ter ouvido ou acontecido não passa de pura fantasia. Tudo… exceto o chamamento persistente dos mortos. Isso é verídico. Ao obedecer-lhes uma vez, tu te puseste sob o domínio deles. Se ainda lhes deres atenção, depois desta noite, respondendo-lhes o chamado, tua desgraçada sentença terá sido lavrada. De qualquer forma, cedo ou tarde, acabariam por matar-te! Esta noite, sou forçado a afastar-me daqui. Entretanto, antes de sair, inscrever-te-ei no corpo versículos sagrados. Essa inscrição sagrada será a tua proteção.

Uma hora antes do pôr do Sol, Hoichi foi despido e, com delicadas palhetas, cobriram-lhe o corpo com o texto do divino Sutra, chamado Hamya-Shino-Kijo. Terminada a tarefa, o monge disse-lhe:

—Hoje, à noite, após minha partida, senta-te na galeria, como tens feito nas noites anteriores, e espera. Tornarão a chamar-te. Entretanto, cuida de não responderes, aconteça o que acontecer. Permaneçe imóvel, como se estivesse meditando. Não levantes, nem faças o menor ruido ou gesto, porque, se o fizeres, serás imediatamente destruído. Nada receies. Se quiseres chamar alguém, priva-te de fazê-lo. Nenhum ser humano poderá socorrer-te. Cumpre as minhas determinações e o perigo passará para sempre.

Dito isso, o monge partiu. Já era noite.

Hoichi foi postar-se, então, na galeria, colocando a “biwa” ao lado.

Desfilava em profundo silêncio o cortejo das horas, somente quebrado, de espaço a espaço, pelo grande relógio a anunciar, ruidosamente, a marcha inalterável do tempo.

Soou meia-noite. No jardim, o silêncio era profundo. Daí a pouco, Hoichi ouviu, distante, os passos do samurai, que parou ao seu lado. Ligeiro estremecimento percorreu-lhe o corpo.

—Hoichi! — chamou o espectro.

O cego reteve a respiração e continuou quieto.

—Hoichi! — reboou a voz ameaçadora.

— Hoichi! — gritou pela terceira vez, com mais fúria ainda.

O cego conservou-se mudo, imóvel, petrificado, tendo a vida concentrada toda no coração.

—Isto não pode continuar assim. É preciso ver por onde anda ele — exclamou o samurai.

Lentas passadas ressoantes percorreram toda a galeria, até que pararam novamente próximo do cego. Um silêncio angustiado fez-se, então. Hoichi acreditou, por momento, que seu coração não resistiria à grande agitação que lhe ia dentro. Por fim, a voz cavernosa e profunda do guerreiro, junto a ele, exclamou:

—Aqui estão a “biwa” e as sandálias. Não o vejo, porém, nada, a não ser suas pequenas orelhas. Está explicado por que não pode responder-me. Como falar sem boca? Só ha as orelhas... Levá-las-ei ao meu senhor para que se certifique de que suas ordens foram obedecidas, na medida do possível.

No mesmo instante, sentiu Hoichi que brutais dedos de ferro seguravam suas orelhas… E, num grande esforço, arrancaram-na de sua cabeça. Cerrou os dentes, a fim de impedir que traiçoeiro grito de dor lhe atravessassem os lábios.

Pouco a pouco foram-se afastando os passos até que se confundiram, ao longe, com o silêncio da noite. Pelas faces do cego corria o sangue quente das feridas abertas. Entretanto, não ousou esboçar o mais ligeiro movimento para estancá-lo.

O Sol ainda não tinha galgado o cume dos montes quando o monge chegou ao templo. Imediatamente, dirigiu-se à galeria, onde esbarrou num corpo. Era Hoichi, que se encontrava na mesma atitude impassível, com duas enormes chagas, das quais o sangue manava em pequenos filetes.

—Pobre Hoichi! Que te sucedeu?

A este chamado, compreendeu que sua salvação estava feita. As forças fugiram-lhe e, desmaiado, caiu nos braços do amigo.

—Pobre Hoichi! E pensar que sofreste exclusivamente por minha culpa. Meus ajudantes esqueceram-se de gravar, em tuas orelhas, os versículos sagrados. Imperdoável descuido.

Rapidamente, nos braços, conduziu o cego para o próprio quarto, onde o deitou. Por seus solícitos cuidados, as feridas de Hoichi logo se cicatrizaram.

A história de sua singular aventura correu de boca era boca, tornando-se cálebre em todo o país. E, desde esse dia, passou a ser conhecido por Mimi-Nashi-Hoichi, “o mago sem orelhas”.


Fonte: “A Noite Ilustrada”/RJ, edição de 11 de março de 1941.

Fizeram-se breves adaptações textuais.


Notas:

1 No folclore japonês, são luzes fantasmagóricas que promanam dos cadáveres de seres humanos ou de animais.

2Instrumento de cordas japonês semelhante a um alaúde.



 

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