AS TERRÍVEIS PROFECIAS DE CAZOTTE - Narrativa Clássica Verídica de Horror - Jean-François de La Harpe

AS TERRÍVEIS PROFECIAS DE CAZOTTE

Jean-François de La Harpe

(1739 – 1803)

Tradução de autor anônimo do séc. XX


Pareceu-me que foi ontem, e, no entanto, foi no começo do ano de 1788. Estávamos à mesa na casa de um dos confrades da Academia, nobre e jovem, cheio de espírito. A reunião era numerosa e de todas as categorias: gente da corte, juízes e advogados, literatos, acadêmicos etc. Havia, como sempre, uma mesa lauta.

A sobremesa, os vinhos de Malvoise e de Constance uniram à alegria das boas companhias esta espécie de liberdade que não escolhe nunca lugar nem classe.

Chegamos a um ponto, no mundo, onde tudo é permitido para fazer rir. Chamfort leu uns contos ímpios e libertinos, e as empregadas ouviram sem se socorrerem dos aventais. De um lado, um dilúvio de gracejos sobre religião. Um, citava uma tirada de Pucelle; outro, os versos filosóficos de Diderot:


E com as entranhas do último padre,

Apertas o pescoço do último rei.


Houve aplausos. Um terceiro levanta-se e, pegando no copo cheio diz:

—Sim, senhores, estou também certo de que não existe Deus e que Homero foi um tolo.

Com efeito, ele estava certo da existência de um e do outro, quando falou de Deus e de Homero, e havia convivas que tinham falado bem de um e do outro.

A conversação, pouco a pouco, tornou-se mais séria: referiram-se com admiração sobre a revolução que Voltaire fizera, e ficou estabelecido que isso foi o primeiro louro de sua glória: “Deu uma tonalidade a seu século e se fez tanto nas antessalas como nos salões.”

Um dos convivas contou-nos, rindo, que seu cabeleireiro lhe havia dito quando lhe empoava:

— Veja, senhor, embora eu não seja senão um miserável praticante, não tenho mais religião que qualquer outro.

Concluíram que a revolução não demoraria a rebentar, que era absolutamente necessário que a superstição e o fanatismo dessem lugar à filosofia; fizeram cálculos sobre as probabilidades da época, e quais seriam os daquela sociedad, que iriam ver o reino da razão. Os mais velhos se lastimaram; os jovens se alegraram por terem uma esperança consoladora, e felicitaram a Academia, sobretudo por ter preparado a grande obra, e de ter sido a cabeça, o centro o móvel da liberdade do pensamento.

Um único dos convivas não tomou parte na nossa alegria nem na nossa conversação, dizendo mesmo, com suavidade, alguns gracejos sobre o nosso belo entusiasmo. Era Cazotte, homem amável e original, mas desgraçadamente enfatuado pelos sonhos dos iluminados. Pede a palavra e, com toda a seriedade, diz:

— Senhores, podeis ficar satisfeitos; vereis todos esta grande e sublime revolução que tanto desejais. Sabeis que sou um tanto profeta. Repito: vós a vereis!

Responderam-lhe pelo conhecido estribilho:

— Não é necessário ser um feiticeiro para fazê-lo…

— Seja! Mas, talvez eu o seja um pouco mais para o que me resta dizer-vos. Sabeis o que chegará com esta revolução, o que virá para vós, quantos estão aqui, e que será a sequência imediata, o efeito bem provado, a consequência bem reconhecida?

—Ah, vejamos! — disse Condorcet, com seu ar e seu riso dissimulado e ingênuo. — Um filósofo não se agasta em transformar-se em profeta!

— Vós, senhor Condorcet, morrereis sobre as pedras de unia prisão; morrereis pelo veneno que tomareis para vos furtar do carrasco, o veneno que a ventura desse tempo vos forçará a carregar sempre convosco.

Grande assombro no primeiro momento; mas recordando que o bom Cazotte era sujeito que sonhava acordado, começaram a rir.

— Senhor Cazotte, o conto que recitastes agora não é tão belo quanto o vosso Diable Amoureaux. Mas que diabo vos meteu na cabeça essa prisão, essa peçonha e esses carrascos? O que tudo isso pode ter de comum com a filosofia e o domínio da razão?

—É precisamente isso que vos digo. É em nome da filosofia da humanidade, da liberdade. É sob o domínio da razão que tereis de acabar desta maneira. E será bem o domínio da razão, pois, então, ela possuirá templos e terá em toda a França, nesse tempo, muito templos da razão.

— Por minha fé! — disse Chamfort com um sorriso de sarcasmo. —Vós não sereis um dos padres desses templo?

— Eu o espero; mas vós, Sr. Chamfort, que sereis um, e muito digno de o ser, abrireis vossas veias com vinte e dois golpes de tesoura; [no entanto, só morrereis alguns meses depois]1.

Olharam-no e riram.

—Vós, senhor Vicq-d'Azyr, não abrireis vossas veias, mas, depois, fareis abri-las seis vezes por dia, no curso de um acesso de gota, para ficar mais seguro de vosso aniquilamento, e morrereis à noite. Vós, senhor Nicolau, morrereis no cadafalso; vós, senhor Bailly, no cadafalso; vós, senhor de Malesherbes, no cadafalso…

—Ah! Deus seja bendito! — disse Roucher. — Parece que o senhor não cita sinão a Academia; prognosticou uma terrível execução. E eu, beleza do céu?

—Vós morrereis também no cadafalso.

—Oh, isso é uma aposta! — exclamaram de todos os lados. — Ele jurou exterminar tudo!

—Não, isso eu não jurei!

—Mas seremos subjugados então pelos turcos e pelos tártaros? Ainda…

—Absolutamente! Eu vos disse — sereis governados então pela única razão. Aqueles que vos trataram assim, serão todos filósofos, tendo a todo o momento nos lábios as mesmas frases que discutíeis há uma hora, repetirão todas as vossas máximas, citarão, como vós, os versos de Diderot e de “A Donzela”.

— Disseram em voz baixa:

— Vejam bem que é um louco (e Cazotte mostrava a maior seriedade). Será que não profetisa coisas agradáveis? E deveis saber que sempre escreveu coisas maravilhosas em suas zombarias.

— Sim, respondeu Chamfort; — mas essas de agora não são alegres, são patibulares. E quando isso acontecerá?

—Seis anos não terão passado e tudo o que vos disse estará feito.

E, desta vez eu falei:

— Mas isso será então um milagre! Não profetizastes nada para mim!

— Vós — e será também um milagre extraordinário —, vós sereis então cristão!2

Grandes exclamações.

—Ah! — replicou Chamfort. — Estou conformado: se não morrermos até La Harpe tornar-se cristão, então seremos imortais!..

—Neste caso — disse a duquesa de Grammont —, somos mais felizes, nós mulheres, por não entrarmos nunca em revoluções. Quando digo nunca, isso não quer dizer que não nos intrometamos um pouco, mas é sabido que não nos prendem, e nosso sexo…

— Vosso sexo, senhora, não vos defenderá desta vez; e faríeis bem em não vos intrometerdes, pois sereis tratadas como os homens, sem nenhuma diferença.

— Mas o que dizeis, senhor Cazotte? É o fim do mundo o que profetizais!

— Nada sei; mas, o certo é que vós, madame duquesa, sereis conduzida ao cadafalso, vós e mais outras damas, convosco na carreta, com as mãos atadas às costas.

— Ah! Espero que, neste caso, terei pelo menos uma carreta guarnecida com pano preto.

—Não, madame; muitas grandes damas como vós irão também numa carreta e as mãos atadas às costas.

—Muitas grandes damas! Quê! As princesas de sangue?

—As grandes damas ainda…

Neste momento, houve um movimento muito sensível entre todos os comensais, e o dono da casa entristeceu. Começaram a perceber que a brincadeira tornara-se demasiada. Madame de Grammont, querendo dissipar a tempestade, insistiu sobre esta última resposta e contentou-se em dizer rapidamente:

— Vede, senhores, ele não quer me deixar nem um único confessor!

—Não, madame, nem vós, nem nenhuma pessoa; o último supliciado que terá direito a uma graça será…

Parou por um momento.

—Muito bem. Quem será esse feliz mortal que gozará dessa prerrogativa?

—É a única que lhe restará; e esse será o rei da França.

O dono da casa levantou-se de supetão, e todo mundo o acompanhou. Aproximou-se de Cazotte e disse-lhe num tom ríspido:

—Meu caro senhor Cazotte, já durou muito essa facécia lúgubre; vós a levastes demasiadamente longe, comprometendo até a sociedade onde estais e a vós mesmo.

Cazotte nada lhe respondeu e se dispunha a retirar-se, quando madame de Grammont, que sempre evitava a seriedade, procurando a alegria, dirigiu-se para ele e disse:

— Senhor profeta, dissestes a todos nós o que nos aconteceria, somente de vós nada dissestes.

—Madame, lestes o corco de Jerusalém, em Josefo?

—Oh, sem dúvida! O que foi que não li? Mas, falais como se eu não o tivesse lido!

— Muito bem! Madame, durante aquele cerco, um homem, no espaço de sete dias, deu voltas às muralhas, à vista dos sitiantes e dos sitiados, gritando numa voz sinistra: “Desgraçada Jerusalém!”. No sétimo dia ele gritou: “Desgraçada Jerusalém! Desgraçado de mim mesmo!”. E, neste momento, uma pedra enorme lançada pelas maquinas inimigas o atingiu e o fez em pedaços.

Após essa resposta, Cazotte fez uma reverência e saiu3.


Fonte: “Vamos Ler!”, Rio de Janeiro, edição de 12 de janeiro de 1939.


Notas:


1Falta o restante da frase no texto-fonte. Fez-se o acréscimo, com lastro no original, entre colchetes.

2La Harpe, discípulo de Voltaire, realmente se converteu ao cristianismo.

3 Sobre as profecias de Cazotte, escreveu Henry James Forman: “Chamfort, embora não estivesse bem à vista da revolução, foi rejeitado pelo Terror e seus excessos sangrentos. Ameaçado de prisão, ele abriu as veias; sobrevivendo às feridas, morreu do tratamento inadequado a que se submeteu. No princípio de 1794, Condorcet foi encontrado envenenado no chão de sua célula. Ignora-se o que aconteceu a Nicolau. Jean Bailly, astrônomo e maire de Paris, foi guilhotinado em 1793. Malesherbes, jurista reputado, que defendeu Luiz XVI perante a Convenção, foi preso e morto sobre o cadafalso, quase com alegria. Jean Roucher foi executado por sua oposição ao Terror. La Harpe, escritor sonhador, dramaturgo e livre pensador, não escapou, apesar de ter se tornado crente e piedoso. A sorte da duquesa de Grammont foi a mesma de numerosas aristocratas; sobre Luís XVI e Maria Antonieta, tudo é demasiadamente conhecido.

(…)

Tudo isso constitui um arquivo comprobatório em favor da existência da profecia, anteriormente à revolução francesa ou aos seus princípios. Neste momento, já La Harpe havia redigido a profecia de Cazotte.

(…)

A profecia de Cazotte, uma vez sua autenticidade reconhecida, aparece como uma das mais notáveis que alguém tenha feito nos tempos modernos.

Quanto ao pobre Cazotte, seu destino apoderou-se dele exatamente como havia previsto. Inimigo corajoso e declarado da revolução, foi preso em 10 de agosto de 1792 e encarcerado numa abadia (…). Dentro de pouco tempo foi posto em liberdade (…). Como ele havia previsto, o gendarme de sua visão apareceu em 11 de setembro, trazendo uma ordem assinada por Pétion. Cazotte foi levado (…) à Conciergerie. Após vinte e sete horas de interrogatório sem interrupção, foi condenado à morte, e, em 26 de setembro, guilhotinado”.

 

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