LUTA - Conto Clássico Cruel - Leopoldino Brígido

LUTA

Leopoldino Brígido

(1876 – 1947)


Em meio do capinzal, ao pé do morro, próximo ao leito do caminho de ferro, quedava um touro, forte, grande e belo, que viera dos sertões longínquos, onde se estendem as campinas claras, para os pastos da fazenda. Era um animal raro, o mais bonito, o mais valente do seu campo nativo.

Tinha o pelo preto e luzidio com uma larga mancha branca no dorso potente.

O seu aspecto era todo de glórias e de força, quando corria pelas várzeas, balançando pesadamente o corpo sólido, fazendo tremer o chão com as patas rijas, ou quando escarvava a terra e urrava altaneiramente, levantando o focinho ao sol. Era indomado e nunca tinha visto uma habitação humana antes de ter sido preso, ao decidirem vendê-lo; lutara então desesperadamente, fatigara dias e dias os vaqueiros mais esforçados, refugiando-se raivoso e indignado pelas várzeas e pelos matos, apegando-se, com um amor e uma valentia de herói, à liberdade que lhe queriam roubar.

Depois fora outra série de esforços quando o trouxeram, em meio da boiada numerosa, pelos caminhos agrestes, marchando dezenas de léguas, por longos dias e noites. Havia sobre ele uma vigilância contínua e tenaz, pois o animal mostrava-se temeroso ao sentir-se assim levar à força, através daqueles campos vastos, daquelas serras ricas, por onde ele podia escapar-se, destemido e livre.

Chegado à fazenda nessa manhã, soltaram-no logo a pastar. E o touro estacara ali muito tempo, de pé, sentindo-se livre, em meio do largo vale dourado do sol, mirando as águas claras do rio, que rolava perto, marulhante e vasto, sorvendo o cheiro grato do capinzal vicejante; mas, desconfiado e surpreso desse país, que lhe era desconhecido, e olhando, longamente para os trilhos do caminho de ferro, que contornavam o morro perto, e seguiam para além, em linha recta, simétricos e negros, sobre o terreno vermelho da estrada.

Eram 10 horas. O sol fulgurante subia num céu azul claríssimo e banhava vivamente tudo. O rio parecia estorcer-se de gozo sob a luz macia e fina. Os galhos altos das árvores da margem e do cafezal que coria o morro cintilavam como prata, movendo-se à aragem morna e calada que soprava.

O corpo negro do touro tinha um brilho de ébano polido, a mancha branca no dorso espalhava vibrantemente e por todo ele passava uma leve ondulação voluptuosa, que produziam a carícia do sol e o sopro delicado da brisa.

O touro fitava longamente, melancolicamente, a estrada extensa e vermelha. De repente recuou, pôs-se estático a vinte passos longe, como à espera de um ataque: um ruido pesado e crescente abalava o chão, um tremor passava pelos trilhos, e logo um silvo altíssimo e vibrante partiu pelo ar. O animal violentamente voltou-se, de um salto, e avistou ao longe um trem que se aproximava, rápido e ruidoso.

Um forte estremecimento sacudiu-lhe o corpo todo, e os seus olhos fitaram, com espanto e raiva, aquilo que caminhava para ele. A pata forte e pesada cavou o chão: o touro estava pronto para o ataque.

Aquele estranho animal, grande, negro, fumegante, que rolava como uma tempestade, que rugia cem vezes mais forte que ele, tornou-lhe o peito frio de espanto e admiração; mas o sangue valoroso da raça agitava-se, bramia; o monstro não o devoraria indefeso; o touro queria lutar, lutaria com o ardor grandioso de um ser bravio, livre, destemido, que tem inato o ódio de outra espécie. Queria lutar, queria morrer feliz e orgulhoso, esmagado sob as patas do ciclope.

A locomotiva audaz vinha cada vez mais perto, negra e altiva, arrastando a cauda gigantesca. Quando, a uns dez passos de distância, outro silvo cortou o espaço, o touro com o dorso elástico, os olhos inflamados, rápida como uma bala, abateu-se furiosamente sobre o trem.

Um grito altíssono e soberbo de agonia prolongou o silvo da locomotiva.

Quando o comboio passou, ostentava-se sobre os trilhos a carne rasgada, rubra, fumegante do animal, o sangue golfante ensopava o chão vermelho, fazia manchas destacadas pelo caminho afora, como um rastro vitorioso, e salpicava ainda das rodas do último vagão, que fugia rapidamente por detrás do morro.


Fonte: “Almanak Litterario e Estatistico do Rio grande do Sul para 1896”, Carlos Pinto & Comp., 1895.

 

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