O MISTÉRIO DA PONTE THOR - Conto Clássico de Mistério - Arthur Conan Doyle
O MISTÉRIO DA PONTE THOR
Arthur Conan Doyle
(1859 – 1930)
Tradução de autor anônimo do séc. XX
—Conhece Neil Gibson, o rei do ouro? — perguntou-me subitamente Holmes, após um dos longos silêncios a que eu já me habituara.
—O senador norte-americano?
—Sim. Representou não sei que Estado no Senado de Washington, mas é famoso, principalmente, como financista, magnata de Wall Street, senão do mundo, porque há cinco anos saiu de seu país e instalou-se na Inglaterra para mais de perto dirigir o mercado de câmbio europeu.
—Ah!… Agora me lembro. Enviuvou recentemente de um modo trágico.
—Duplamente trágico. E, agora, reclama meus serviços.
—Para descobrir o assassino de sua esposa?
— Não. Ao contrário… Quero dizer: não se trata propriamente disso. Mas leia a carta que recebi dele.
E Holmes entregou-me uma folha de papel na qual o multimilionário escrevera com mão firme, autoritária, as seguintes linhas:
“Claridge Hotel, 3 de dezembro.
Caro Sr. Holmes.
Não me posso resignar à ideia de ver uma criatura boa e inocente condenada à morte. Não tento sequer explicar coisas que, até este momento, me parecem inexplicáveis, mas tenho uma absoluta e profunda convicção de que miss Dunbar não é culpada do crime de que a acusam. Irei procurá-lo, amanhã, às 11 horas, e muito lhe agradecerei se puder receber-me para conhecer detalhes que talvez lhe permitam desvendar esse alucinante mistério.
Seu muito alento e admirador,
J. Neil Gibson”.
—É espantoso — murmurei, depois de ler essa carta. — Muito se interessa ele por essa tal miss Dunbar, que, segundo dizem os jornais, assassinou sua esposa, assassinou-a covarde e traiçoeiramente. Isso não lhe parece suspeito?
Sherlock Holmes limpou cuidadosamente o cachimbo, antes de enchê-lo de novo. Encolheu os ombros e respondeu, pensativo:
—Eu nunca firmo suspeitas sem perfeito conhecimento das coisas. Tenho visto, tantas vezes, a mentira apresentar todas as aparências de verdade! Ouça as linhas gerais do caso: o Sr. Gibson tem fama de ser um homem de caráter violento, com acessos de cólera temíveis; porém é bom, carinhoso, fácil de emocionar e honesto, de uma lealdade inflexível. Quanto à sua esposa, por enquanto, sei apenas que já não era moça e vivia ultimamente torturada pelo ciúme da jovem professora contratada para seus filhos. Sobre essa última, os jornais têm dito coisas tão contraditórias que não me atrevo a formar juízo. São esses os personagens do drama. Cenário: um velho castelo, na velha Inglaterra. Miss Gibson foi encontrada, uma noite, caída, a meia milha de distância do castelo, com toalete de soirée e o peito marcado por uma bala de revólver. Não havia junto ou em torno dela arma nenhuma. Foi um policial quem primeiramente viu o corpo ali. Chamou um médico, um fotógrafo e a morta foi atentamente examinada antes de ser transportada… Prestou atenção?
—Toda a atenção. Mas por que acusam a professora?
—Porque foi encontrado em seu guarda-roupa, muito bem oculto, no fundo de uma caixa de lenços, um revólver ao qual faltava um cartucho do mesmo calibre da bala que matou Miss Gibson.
—Ah!
—Espere. Isso não é tudo. Encontraram, no peitilho do vestido de miss Gibson, uma carta — ou melhor, um breve recado —, pedindo-lhe que fosse, às 10 horas da noite, ao lugar em que foi encontrada morta. Esse bilhete foi escrito por miss Dunbar. Quanto ao móvel do crime, a polícia considera-o claro, evidente. Miss Dunbar é muito bonita e tem quinze anos menos do que Mrs. Gibson. É possível, pode-se mesmo ter como certo, que seus encantos tinham impressionado o milionário. Se Mrs. Gibson desaparecesse, ela poderia substituí-la, ser a esposa de um homem poderoso, imensamente rico… A tentação cegou-a.
—E que diz ela?
—Nega tudo, menos que o Sr. Gibson deixara transparecer uma ardente admiração por ela e que sua esposa não ocultava seus ciúmes. Mas ouça o resto. O corpo foi encontrado junto da ponte de Thor, uma velha construção de granito, que atravessa um rio tranquilo…
Meu amigo não pôde me dizer mais, nesse momento, porque ouvimos a campainha da porta e o criado veio anunciar o ilustre visitante.
Em contraste com todas as tradições e lendas sobre os magnatas de Wall Street, o Sr. Gibson não era gordo, não tinha na boca um charuto enorme, nem afetava maneiras napoleônicas. Era um homem normal, com aspecto quase tímido, como uma criatura que vive mais pelo cérebro do que pelos sentidos.
Estendeu-nos a mão com perfeita naturalidade e, aceitando a cadeira, que Sherlock Holmes lhe indicava, sentou-se, fitando-o, sem disfarçar sua admiração.
Houve um longo silêncio. Meu amigo limitava-se a observar seu ilustre visitante com olhar tranquilo, mas terrivelmente lúcido, que tanto perturbava os culpados e aqueles que pretendiam falar-lhe, ocultando alguma coisa.
O milionário ficou visivelmente incomodado por aquele exame atento, silencioso. Mas tive a impressão de que sua perturbação não era a de um criminoso e, sim, a de um homem prestes a falar em coisas que chocam um pouco seus sentimentos mais íntimos; a emoção de um homem que vai fazer um pedido de casamento.
Não sei porque tive essa impressão, mas afirmo-lhes que foi essa a imagem que surgiu em minha imaginação. Suponho que o mesmo se passou no cérebro de Sherlock Holmes, por que, quando se decidiu falar, ele disse pausadamente:
—Recebi sua carta e confesso-lhe que estou tentado a me encarregar desse caso. Mas não poderei fazê-lo se me ocultar alguma de suas circunstâncias ou me fornecer informações menos exatas.
—Não, senhor — protestou imediatamente o milionário. — Eu desejo sinceramente que toda a verdade apareça.
Fez uma pausa, um esforço talvez, e concluiu:
— Vim decidido a lhe dizer tudo quanto possa esclarecê-lo.
—Muito bem. Então, vamos começar pelo essencial. Quais eram suas relações com miss Dunbar?
O Sr. Gibson corou, como um adolescente a quem interpelam sobre o primeiro namoro. Piscou rapidamente os olhos mas disse corajosamente:
—Eu amo-a. Mas não se apresse a me julgar mal. Meu casamento foi um erro. Eu me julguei estupidamente obrigado a desposar uma criatura que não era de meu nível, nem de minha educação. Vou-lhe contar. Muito moço ainda, quando andava pelo Arizona, em busca de ouro, petróleo, fosse o que fosse, de aventuras em fim; trabalhando aqui e ali como caubói para ganhar meu sustento, conheci Mary em uma fazenda. Filha de outro caubói, ela era um pouco mais velha do que eu, mas muito bonita… nessa época. Namoramo-nos e, o senhor sabe como são essas coisas, trocamos juramentos, promessas cheias de ternura. Não me casei, então, porque éramos demasiadamente pobres e eu não queria ficar vegetando ali. Já tinha ambições, já sonhava ser um homem notável… Parti, porém, jurando-lhe que voltaria para desposá-la, desde que firmasse minha situação.
—Quanto tempo ficou ausente?
—Cinco anos.
—Escreveu-lhe durante esse tempo?
—Não. Ela não sabia ler, nem escrever, e eu sentia uma invencível repugnância à ideia de que minhas cartas seriam lidas por outra pessoa… Mas considerava-me ligado por meus juramentos. Imaginava-a esperando-me, confiante ou chorando, talvez, nas horas de desânimo. Além disso — acredite que estou lhe dizendo tudo tal como se passou, como eu senti —, a própria lembrança de sua incultura, da miséria, que a cercava, ainda mais me comovia, mas me fazia acreditar que seria covarde e ignóbil abandoná-la. Quando vendi a jazida, que descobrira afinal, para me estabelecer com um pequeno banco na Pensilvânia, voltei ao Arizona para cumprir minha palavra.
Sua alegria, sua deslumbrada surpresa, ao ver me, foi para mim a melhor das recompensas. E um grande mal, porque me impediu de ver claro em meus próprios sentimentos e nos dela. Só mais tarde, compreendi a verdadeira situação que minha ilusão e a dela haviam ocultado. Eu viera tão cego pelo preconceito sentimental de respeitar um juramento leviano e antigo que não notei que ela vibrava mais de orgulho, de satisfação por ir para uma cidade, ser uma senhora, do que de amor por mim. Por minha vez, eu me sentia orgulhoso do papel romântico que estava representando, da admiração com que todos me cercavam. Só de volta a Pittsburgo, onde me estabelecera, vi tudo com clareza. Mary tinha algum encanto no cenário pitoresco em que eu a conhecera. Além disso, não havia entre nós a ternura, o amor verdadeiro e enternecido que só ele é capaz de harmonizar duas criaturas de gênio, educação e nível diferentes.
Com a maleabilidade peculiar às mulheres, ela em pouco se habituou às coisas físicas — vestir-se, mover-se e figurar na mesa ou nos teatros, tão elegante como qualquer outra; mas, do ponto de vista mental ou de educação, ficou sempre a mesma e, embora eu tudo fizesse para disfarçá-lo, sua presença acabou por se tornar extremamente penosa para mim.
—Ah!… O senhor procurou sinceramente evitar que ela o notasse?
—Sim, senhor. Mas as mulheres têm, para isso, um instinto infalível. Ela o notou ou sentiu e, desde então, minha vida se tornou um inferno; porque, como todas as pessoas de caráter inferior, a mudança de situação e de fortuna tornara-a extremamente vaidosa. Mary também não me amava, mas considerou uma desconsideração intolerável que eu não vivesse em adoração diante dela. E, como eu não podia fingir o que não sentia, e me limitava a tratá-la com paciência e cortesia, acabou por me odiar e perseguir com cenas constante e escandalosas.
—Todos os criados se referiam a isso — observou meu amigo em tom incolor, que não deixava apreender sua opinião.
—Sim — disse o milionário, acabrunhado — e isso me deu, aos olhos de toda a gente o aspecto de um marido violento, brutal, que a maltratava. Mas eu lhe juro que essa lenda foi criada por Mary, talvez propositadamente, para me colocar mal, talvez por simples excesso de nervos. Quantas vezes, no fim de uma cena em que apenas ela tinha me dito as coisas mais cruéis e insultantes e eu tudo havia tolerado, para não exasperá-la ainda mais, Mary caíra em acessos de pranto; com gritos, gemidos, contorcendo o corpo e bradando maldições temíveis. Os que a ouviram nessas ocasiões serão capazes de jurar, talvez, que eu lhe batia. As vezes, irritado também por essa duplicidade, que chegava a supor voluntária, eu a interpelava furioso, exigindo que dissesse, diante dos criados, que era o que lhe tinha feito. Implacável, irredutível, Mary calava-se com uma expressão de resignação e temor, que era mais eloquente do que todas as acusações.
Aí está como se formou, a meu respeito, a fama de perverso, grosseiro; e alguns jornais têm tecido, em torno disso, comentários infamantes. Se eu não tivesse passado aquela tarde e parte da noite em um lugar público, diante de várias pessoas, seria acusado de tê-la assassinado. Então acusam a pobre Grace, tão inocente como eu…
O homem enérgico transparecia na vibração mal contida de sua voz, no ódio que contraía suas mãos vigorosas. Mas eu e Holmes tínhamos a impressão de que ele era sincero e só nos dizia a verdade com respeito a Mary Gibson. Meu amigo refletiu um instante, depois perguntou com a mesma voz fria, impessoal, que eu bem lhe conhecia e que denunciava intenso trabalho cerebral.
—E miss Dunbar?
—Vou lhe falar com inteira franqueza. Conheci-a por que mandei pôr um anúncio, pedindo uma professora para dois meninos de sete e oito anos. Meu procurador anunciou em seu nome, recebeu várias pretendentes e escolheu Grace Dunbar pelas informações que sobre ela obteve, sem que eu intervisse em coisa nenhuma.
“Depois, como fiscalizo atentamente a educação de meus filhos, notei que miss Grace Dunbar é uma criatura perfeita; culta, com vocação notável para educadora. Em poucos dias, meus garotos começaram adorá-la e sua presença teve sobre eles a melhor das influências.
“Mas Grace é também bonita e, como eu, naturalmente, tratava-a com cortesia, não foi preciso mais. Mary começou a maltratá-la, crivando-a de observações humilhantes, fazendo-lhe grosserias constantes. Desejoso de conservá-la junto de meus filhos, fiz o possível para remediar essa situação; deixei de falar com miss Dunbar, evitei até sua presença, ausentando-me o mais que podia ou passando dias inteiros em meu gabinete, onde ela não ia, nunca. Nada adiantei. Um dia, de repente, sem mais nem menos, só por que as crianças se referiram com simpatia à sua professora, Mary bateu-lhes e exigiu que eu a substituísse. Era de mais. Protestei, tentei fazer-lhe ver que isso era uma exigência absurda e que nossos filhos é que iam ficar prejudicados por esse capricho.
“Note-se que, ao mesmo tempo em que dizia essas coisas, eu tinha consciência de sua inutilidade. Mas com imensa surpresa para mim, Mary calou-se e não insistiu na expulsão de Grace. Ficou, porém, pensativa, durante o resto do dia, num silêncio de mau agouro. No dia seguinte, pela primeira vez, vendo-me na biblioteca, miss Dunbar veio a mim e disse-me que os meninos lhe tinham contado a cena da véspera e que ela não queria ficar ali nem mais um instante contra a vontade de minha esposa. Tranquilizei-a, dizendo que Mary era nervosa, irritadiça, que dissera aquilo sem pensar, mas reconhecera seu erro, tanto que não insistira. E, para evitar comentários, afastei-me logo. Soube depois que, a partir desse dia, Mary mudou por completo; cessou de perseguir miss Dunbar. Ao contrário, começou a estreitar relações com ela; assistindo às lições das crianças, convidando-a para acompanhá-la em seus passeios pelo parque e pelos arredores…”
—E o senhor não voltou a falar a sós com miss Dunbar?
O Sr. Gibson replicou vivamente:
—Nunca lhe falei a sós, a não ser no dia em que ela entrou na biblioteca, como lhe disse; e, nesse dia, só trocamos as palavras, que lhe repeti. A cena não chegou a durar dois minutos. Compreenda… Por coisa nenhuma deste mundo queria excitar a cólera de Mary e arriscar aquela pobre moça, tão digna, tão respeitável a uma cena de escândalo, que poderia deixá-la malvista, com o nome comprometido.
Repito: tudo naquele homem parecia sincero. Havia lágrimas em seus olhos…
—Mas, então — perguntou lentamente Sherlock Holmes —, como explica a morte de sua esposa e o encontro do revólver, escondido no guarda-roupa da jovem professora?
—Não sei — disse o milionário, apertando as mãos nervosamente. — Tenho refletido muito e cheguei a seguinte conclusão: desde o dia em que passou a tratar bem miss Dunbar, minha mulher mudou também no modo como me tratava. Não me fez mais cenas de violência, mas vivia absorta, como quem tem uma ideia fixa. Estou convencido de que ela não perdera sua desconfiança nem seu ódio por mim e, principalmente, por miss Dungar. Passara a se fingir sua amiga para melhor espioná-la. Naquela tarde, pensara em matá-la ou simplesmente; em ameaçá-la, intimando-a a se afastar de nossa casa. Grace tentou arrancar-lhe o revólver; este disparou e Mary caiu morta. Apavorada, Grace voltou para seu quarto e impensadamente escondeu a arma.
—Perdão, Sr. Gibson, essa hipótese não está em acordo com o que me disse sobre o caráter de miss Dunbar. Além disso, como explicar o bilhete, que ela escreveu, pedindo a sua esposa que fosse à ponte de Thor, naquela hora?
—Sim, tem razão. Tudo isso é terrível misterioso.
*
No dia seguinte, fomos a Winchester para estudar o caso no local e Sherlock Holmes começou por obter uma informação importante e inesperada. O sargento Coventry, chefe da polícia local, não tinha dúvidas sobre a culpabilidade da jovem professora, por várias razões e, principalmente, por que averiguara que a arma do crime pertencia ao Sr. Gibson.
— Ah! Sim, senhor. O criado de quaro do norte-americano reconheceu-o formalmente. Disse-me até que era um par de revólveres iguais. Ele sempre os vira em um estojo, na gaveta da primeira estante, na biblioteca.
Sherlock foi ao castelo e interrogou o criado. Ele levou-o à gaveta indicada e mostrou-lhe o estojo, onde havia, de fato, alvéolos para dois revólveres, cada qual com o cano virado para um lado. Mas esse estojo estava vazio.
—Ouça — disse meu amigo. — Está bem certo de que foi um dos revólveres dessa caixa que encontraram no guarda-roupa da professora?
—Certíssimo. Ela, coitadinha, diz que não sabe como pôde ele aparecer lá, que não foi ela quem o escondeu ali. E eu confesso que nunca a julguei capaz de uni crime tamanho. Uma moça, que parecia tão boa... Mas que o revolver é um dos que estava aqui, lá isso é, sem nenhuma duvida.
—E o outro?
—O outro? Não sei não, senhor... Procurei-o por toda a casa, sem encontrá-lo. O patrão diz que não o tirou daqui.
—Quando viu esse estojo pela última vez?
—Uns dois ou três dias antes do crime. O patrão faz questão de limpeza minuciosa em tudo quanto é dele, principalmente livros e armas. Pelo menos uma vez por mês, eu limpava as gavetas por dentro, abria o estojo e passava uma camurça nos dois revólveres.
—Veja se consegue determinar o dia exato.
—Foi… no sábado; portanto, dois dias antes, na antevéspera do crime.
—Eu já imaginava uma coisa semelhante — disse Sherlock Holmes, enigmaticamente. — Bem, creio que nada mais temos a fazer aqui. Vamos à ponte.
O sargento acompanhou-nos e forneceu a meu amigo outros detalhes. O tiro fora disparado de muito perto, a queima roupa. O corpo estava caído, de costas, na entrada da ponte. Sherlock Holmes observou os arredores com atenção e, de súbito, tirando do bolso uma lente, curvou-se para uma pequena mancha branca que se via num bloco de granito escurecido pelo tempo, no rebordo da ponte. Bateu com a ponteira da bengala junto dessa mancha, procurando fazer outra igual. Não o conseguiu.
—Isso deve ter sido feito por uma pancada extremamente violenta — disse ele, visivelmente satisfeito. —Vamos voltar a Londres. Só me resta ouvir miss Dunhar.
No trem, perguntei-lhe:
—Você já resolveu o problema?
—Creio que sim. O desaparecimento de um dos revólveres e o fato do outro ter aparecido no guarda-roupa da professora. Não acha isso estranho? Imagine uma mulher bastante cruel e fria para resolver e preparar o assassinato de outra. E se dá o trabalho de lhe marcar, por escrito, um encontro no lugar em que ia matá-la. Depois, para cúmulo, tendo um rio a dois passos, vai esconder a arma do crime em seu quarto… isto é, no lugar em que certamente a polícia começaria por dar uma busca.
—Naturalmente, perdeu a cabeça…
—Não, Watson. Uma criatura capaz de preparar um crime em tais condições, não se descuida de preparar também a eliminação dos vestígios. Mas, se não foi ela, quem escondeu o revólver em seu guarda-roupa? Alguém que queria comprometê-la. Esse alguém só pode ter sido o próprio autor do crime. Tenho, portanto, uma pista segura.
*
O nome ilustre de meu amigo facilitou todas as providências e, no mesmo dia, foi lhe permitido falar com miss Dunbar em presença de seu advogado, que começou por dizer à linda acusada:
—Até agora, tenho lhe pedido que não repita a ninguém o que me contou, porque, a mim mesmo, suas revelações pareceram inverosímeis, e preferi esperar o resultado do inquérito; mas ao Sr. Holmes pode dizer tudo.
Assim encorajada, miss Dunbar, murmurou:
—Tudo isso me parece um sonho, um pesadelo… O senhor já deve saber que eu me mantinha em casa do Sr. Gibson por várias razões: primeiro, por necessidade. Sabe Deus quanto me custou arranjar este emprego, quanta miséria suportei antes de consegui-lo. Ali era bem paga, tinha um quarto confortável. Em seguida, por que me afeiçoara a meus pequeninos alunos. Tão boas crianças, inteligentes, de uma meiguice encantadora; em terceiro, porque o Sr. Gibson me pediu que ficasse e confesso que esse senhor, como as crianças, me inspirava profunda piedade… Ah! Não é bastante ser rico para ser feliz… Quanto ao mais, sinto-me alucinada, não compreendo…
—Diga-me: conhecia o revólver que foi encontrado em seu quarto?
—Nunca o tinha visto. Juro.
—Alguém o escondeu ali para lançar as suspeitas sobre seu nome...
—Provavelmente. Eu passava a maior parte do dia na sala de estudo, com os meninos. E nunca fechava meu quarto.
—E a carta? O bilhete encontrado no seio do vestido de Mrs. Gibson?
—Isso é o mais espantoso… É inacreditável… Mesmo o senhor, não sei se acreditará. Mrs. Gibson, que, a princípio, me maltratava sem disfarçar sua aversão por mim, passou, de um dia para outro, a se mostrar amável, confiante; mas eu sentia que ela mantinha essa atitude com esforço, que continuava a me odiar. No dia do crime, poucas horas antes, Mrs. Gibson me procurou em meu quarto, quando eu estava fazendo toalete para o jantar e disse-me:
“‘ —Encontrei uma carta assinada com seu nome; já sei que se trata de uma intriga, uma infâmia para comprometê-la em meu conceito; mas preciso de provas para confundir o falsário. Faça-me o favor de copiar essa carta para que eu possa comparar sua letra com a dela’.
“Eu sempre me sentia intimidada diante daquela mulher. Ela me dizia isso no tom autoritário e seco, que lhe era habitual, e colocava diante de mim, sobre a mesa, uma folha de papel muito ordinário com algumas linhas escritas e outra folha em branco, tirada do caderno onde os meninos faziam seus rascunhos.
“Eu, louca que fui, sentei-me e copiei:
“Esteja junto à ponte de Thor às oito e meia.
Grace".
—Magnífico! — exclamou Sherlock Holmes.
—Como? — perguntou o advogado, surpreendido.
—Sim, era essa a prova que me faltava. Amanhã cedo voltaremos a Winchester e eu lhe explicarei tudo. Convoque o inspetor da Scotland Yard encarregado desse inquérito. Mas diga-me, senhorita, por que foi, naquela hora, à ponte de Thor?
—É muito simples. Depois de jantar, Mrs. Gibson me disse:
“—Vamos surpreender e confundir o miserável falsário. Venha comigo"'.
“Segurou-me por uma das mãos e levou-me pelo parque. Eu tremia de inquietação, de medo. Que pretenderia aquela mulher fazer comigo? Cheguei a pensar que ia me assassinar. Mas não. Chegando à ponte, ela se transformou por completo. Desgrenhada, com as feições transtornadas pelo ódio, acusou-me das coisas mais espantosas, de ser eu a causa de sua infelicidade, de sua morte; e acrescentou que eu lhe pagaria tudo, que sua vingança seria terrível… A princípio, paralisada pela surpresa e o terror, eu a ouvi; depois, recobrei o ânimo, fugi para o castelo, correndo e fui me fechar em meu quarto, decidida a partir no dia seguinte”.
*
Além do inspetor de Scotland Yard, reunimo-nos, diante da ponte de Thor, o sargento Coventry, o advogado, meu amigo e eu. Sherlock pedira-me que levasse um revólver. Embora sem compreender a utilidade dessa arma, eu atendera a seu pedido. Meu amigo, trouxera dez metros de uma corda delgada e um martelo de proporções respeitáveis. Amarrou em uma extremidade da corda o martelo e, na outra, meu revólver. Feito isso, atirou o martelo por cima da amurada e depois de vê-lo pendente sobre o rio, foi-se colocar justamente no lugar em que fora encontrado o corpo de Mrs. Gibson. —Atenção — disse ele. —
Levou o revólver à altura do peito e, subitamente largou-o. Arrastado pelo peso do martelo o revólver foi bater com força na borda da amurada e, ressaltando daí, caiu igualmente no rio.
—Vejam! — disse Sherlock. — Há, agora, na amurada, uma segunda marca perfeitamente igual à primeira, que tanto me intrigou ontem; marca que foi também causada por um revólver e em condições idênticas. Sargento, note bem o logar onde caiu o revólver de meu amigo. Mande dragar o rio ali e encontrará a outra arma, aquela com que Mrs. Gibson praticou um suicídio com habilidade infernal, para que miss Dunbar fosse julgada sua assassina. Mrs. Gibson preparou tudo com a inteligência peculiar aos desequilibrados, os que vivem sob o peso de uma monomania; mas exagerou, acumulando demasiadas provas contra aquela que perseguia com seu ódio. Quando soube que havia dois revólveres iguais, compreendi a marca feita na amurada da ponte… Mas ainda havia em meu cérebro apenas uma hipótese. Todas minhas dúvidas ficaram dissipadas depois quando miss Dunbar me explicou que fora a própria Mrs. Gibson quem, por assim dizer, a obrigara a escrever a comprometedora carta. Amargurada, sem esperança de reconquistar seu marido, essa mulher resolvera matar-se, sacrificando a própria vida com a esperança de que, com isso, levaria Grace Dunbar à morte ainda mais cruel e aviltante no cadafalso.
Fonte: “Excelsior”/RJ, 15 de novembro de 1942.
Ilustrações: Albert Gilbert (1854 – 1934).
Comentários
Postar um comentário