A PORTA NA PAREDE - Conto Clássico Fantástico - H. G. Wells
A PORTA NA PAREDE
H. G. Wells
(1866 – 1946)
Tradução de autor anônimo do séc. XX
I
Numa noite de confidências, há menos de três meses, Lionel Wallace contou-me a sua história da Porta na Parede. E, naquele momento, pensei que, tanto quanto lhe concernia, era uma história verdadeira. Contou-me com uma tal simplicidade que nada podia fazer a não ser acreditá-lo. Mas, na manhã seguinte, no meu apartamento, levantei-me numa atmosfera diferente. E, enquanto jazia na cama, recapitulando o que me dissera, despido do encanto da sua voz grave e lenta, ausente da luz pálida que focalizava a mesa, da atmosfera sombria que nos envolvia, a ele e a mim, e das agradáveis coisas brilhantes, a sobremesa, os copos e a toalha do jantar que tínhamos partilhado, tornando-os naquele momento um pequeno mundo luminoso inteiramente separado das nossas realidades quotidianas, achei tudo francamente incrível.
— Ele mistificou-me! — disse eu, e acrescentei: — Como o fez bem!… Não é exatamente a coisa que eu esperava benfeita da parte dele, entre todas.
Depois, quando me sentei na cama e sorvi o chá, encontrei-me procurando explicar o cunho de realidade que me intrigara em suas reminiscências impossíveis, supondo que tinham de alguma forma sugerido, apresentado, transmitido — mal sei que termo usar — experiências que, de outro modo, seriam impossíveis de contar.
Bem, não vou recorrer agora a essa explicação. Tive minhas dúvidas supervenientes. Acredito, como acreditei enquanto o ouvia, que Wallace empregou o melhor de sua habilidade, despindo para mim a verdade do seu sigilo. Mas se ele próprio viu, ou pensou ter visto, se ele próprio era possuidor de um privilégio inestimável ou vítima de um sonho fantástico, não posso ter a pretensão de adivinhar. Mesmo os fatos relativos à sua morte, que terminaram para sempre com minhas dúvidas, não trouxeram luz àquilo. Este ponto o leitor deverá julgar por si mesmo. Esquece-me agora que comentário ocasional ou crítica por mim feita induziu um homem tão reticente a confiar em mim. Estava, creio eu, defendendo-se contra uma imputação de indolência e incerteza que eu lhe fizera, relativamente a um grande movimento público, no qual me desapontara. Mas ele empinou-se de repente.
—Tenho — disse — uma preocupação… — Sei — prosseguiu, depois de uma pausa — que tenho sido negligente. O caso é que não se trata de fantasmas ou aparições, mas… é uma estranha coisa para se contar, Redmond; sou perseguido. Sou perseguido por alguma coisa que tira a luz das coisas, que me enche de ânsias…
Fez uma pausa, detido por aquela reserva inglesa que tantas vezes sobrevém quando vamos falar de coisas comoventes, solenes ou maravilhosas.
—Você esteve em Saint Althelstan todo o tempo — disse e, por um instante, aquilo me pareceu inteiramente sem propósito. — Bem… — fez uma nova pausa.
E então, a princípio muito claudicante, depois com mais facilidade, começou a contar-me o que estava escondido na sua vida, a lembrança persecutória de uma beleza e de uma felicidade que lhe enchia o coração de ânsias insaciáveis, que fazia todo interesse, e o espetáculo da vida mundana parecerem-lhe estúpidos, tediosos e inúteis.
Agora que tenho a indicação de tudo, as coisas parecem visivelmente escritas no rosto dele. Tenho uma fotografia na qual aquele olhar de isolamento foi apreendido e intensificado. Faz-me lembrar uma coisa que, certa vez, disse dele uma mulher, uma mulher que muito o amou.
—De repente — disse ela —, o interesse abandona-o. Ele esquece-nos. Pouco se importa com quem esteja sob o seu próprio nariz...
Todavia, o interesse não o abandonava sempre e, quando fixava a atenção numa coisa, Wallace conseguia ser um homem de grandes êxitos. Sua carreira, na verdade, está cheia de sucessos. Deixou-me para trás ao longo tempo; elevou-se acima de minha cabeça e delineou no mundo uma figura que nunca pude, de forma alguma, delinear. Faltava-lhe ainda um ano para chegar aos quarenta e dizem, agora, que teria permanecido no cargo, e muito provavelmente entrado para novo gabinete, se estivesse vivo. No colégio, sempre me venceu sem esforços — como se fosse por natureza. Estivemos juntos no colégio de Saint Althelstan, em West Kensigton, durante quase todo o nosso período escolar. Entrou no colégio como meu colega de turma, mas elevou-se muito acima de mim uma chama de saber e num brilhante desempenho. No entretanto, creio que, em média, fiz uma bela carreira. E foi no colégio que, pela primeira vez, ouvi falar na Porta na Parede, de que deveria ouvir falar pela segunda vez trinta dias antes de sua morte.
Para ele, pelo menos, a Porta na Parede era uma porta real, conduzindo através de uma parede real a realidades imortais. Disso estou agora perfeitamente seguro. E aquilo entrou na sua vida muito cedo, quando era um menino de cinco a seis anos. Lembro-me como, ao fazer-me sua confissão, com lenta gravidade investigava e calculava a data precisa.
—Havia — disse ele — uma trepadeira vermelha da Virgínia, de um vermelho claro e uniforme, brilhando ao sol como âmbar claro contra a parede branca. Aquilo me impressionou de alguma forma, ainda que eu não me lembre exatamente como, e havia ali folhas de castanheiro da Índia sobre a calçada limpa, de fora da porta verde. Eram manchadas de verde ou de amarelo, você sabe, não marrom, nem sujas, de modo que deviam ser recém-caídas. Isto quer dizer outubro. Procuro as folhas de castanheiro da Índia todos os anos e devo saber.
Se estou certo neste ponto, deveria ter cerca de cinco anos e quatro meses.
Era um meninozinho precoce. Aprendera a falar anormalmente cedo. Foi são de espírito e “antiquado”, como diziam, a ponto de lhe permitirem uma soma de iniciativa que a maioria das crianças mal consegue aos sete ou oito anos. Sua mãe morrera quando tinha dois anos e ele ficara sob os autoritários conselhos e a escassa vigilância de uma governante. Seu pai, um advogado austero e preocupado, dispensava-lhe pouca atenção, dele esperando grandes coisas. Com toda a sua agudeza, suponho que achasse a vida estúpida e cinzenta. E um dia pôs-se a vagabundear.
Não podia recordar-se particularmente do descuido que lhe permitiu evadir-se, nem o caminho tomado por entre as estradas de West Kensigton. Tudo isso desaparecera em meio às falhas incuráveis da memória. Mas a parede branca e a porta verde permaneceram completamente nítidas.
Tanto quanto podia lembrar-se da experiência infantil, sentira, à primeira vista daquela porta, uma emoção particular, uma atração, um desejo de alcançá-la, abri-la e entrar. E, ao mesmo tempo, tivera a mais clara certeza que seria imprudente ou errado — não o sabia ao certo — ceder à atração. Insistiu sobre isso como uma coisa curiosa que soubesse, desde o princípio — salvo se a memória lhe tivesse pregado a mais estranha das partidas —, que a porta estava destrancada e que poderia entrar como havia decidido.
Parece-me estar vendo a figura daquele meninozinho, seduzido e resistindo. E tornava-se também claro em sua inteligência, embora nunca fosse explicado por que deveria ser assim, que seu pai ficaria muito zangado se ele entrasse por aquela porta.
Wallace descreveu todos esses momentos de hesitação com a maior particularidade possível. Caminhou direto para além da porta, com as mãos nos bolsos e fazendo uma tentativa infantil de assobiar. Vagueou ao longo do fim da parede. Recordou ter visto uma série de lojas sujas e humildes, particularmente a de um picheleiro e decorador, com uma desordem poeirenta de cachimbos de barro, folhas de chumbo, novelos de cadarços, livros de amostras de papel para parede e vasos esmaltados. Ficou ali, pretendendo estar examinando aquelas coisas e cobiçando, querendo apaixonadamente a porta verde.
Teve, então — contou-me —, um frêmito emotivo. Deu uma corrida para a porta, a fim de não ser detido pela hesitação outra vez. Atravessou a porta verde bruscamente, com as mãos estendidas, e deixou-a bater atrás de si. E assim, num momento, penetrou no jardim que o perseguiu por toda a vida. Era muito difícil para Wallace dar-me a sensação integral que lhe inspirara aquele jardim no qual havia entrado.
Existia no seu ar qualquer coisa que alegrava, que transmitia um sentimento de leveza, bons sucessos e bem-estar. Existia na sua vista qualquer coisa que tornava nítidas todas as suas cores, claras, perfeitas subtilmente luminosas. No momento em que se entrava nele, ficava-se intensamente satisfeito — como só em raros momentos e quando se é jovem e prazenteiro se pode ficar neste mundo. Tudo ali era maravilhoso...
Wallace ficou cismando antes de continuar a contar-me.
—Você vê — disse ele, com a inflexão duvidosa de um homem que vacila frente a coisas incríveis —, havia lá duas grandes panteras… Sim, panteras pintadas. E eu não estava com medo. Havia um caminho amplo e longo, guarnecido pelos dois lados com flores em canteiros de beiradas marmóreas, e as duas grandes feras aveludadas estavam brincando ali com uma bola. Uma delas ergueu a cabeça e veio em minha direção um tanto curiosa, ao que parecia. Veio diretamente a mim, roçou a orelha macia e redonda contra a mãozinha que eu lhe oferecia e rosnou. Digo-lhe que o jardim era encantado. Sei-o. O tamanho? Oh, estendia-se para longe, para os lados, assim e assim. Creio que havia colinas ao longe. Sabe Deus para onde se fora West Kensigton tão bruscamente. E, de alguma forma, era tal e qual como vir para casa. Você sabe, no momento exato em que a porta cerrou-se atrás de mim, esqueci a estrada com suas folhas de castanheiro caídas, seus cabriolés e carroças dos lojistas, esqueci a espécie de atração universal pela disciplina e a obediência em casa, esqueci todos os receios e hesitações, esqueci a prudência, esqueci todas as realidades familiares desta vida. Tornei-me num instante um menino jovial e admiravelmente feliz num outro mundo. Outro mundo, de uma qualidade diferente, luz mais penetrante, mais suave, mais quente, com uma alegria transparente difusa pelo ar e feixes de nuvens tocadas pelo sol no azul do seu firmamento. E, à minha frente, estendia-se aquele caminho amplo e comprido, convidativo, com leitos ausentes de ervas daninhas nas margens, rico de flores descuidadas, e aquelas duas grandes panteras. Coloquei minhas pequeninas mãos sabre o macio pelo delas, e acariciei-lhes as orelhas redondas e os sensíveis ângulos de sob as mesmas, e brinquei com elas, e foi como se me estivessem dando boas vindas em casa. Havia em mim uma aguda sensação de regresso ao lar e quando, poucos momento depois, uma crescida menina, bela, surgiu no caminho, vindo ao meu encontro, sorridente e me dizendo — então? —, erguendo-me, beijando-me, pondo-me no solo e conduzindo-me pela mão, não houve assombro em mim, mas apenas uma impressão deliciosa de justiça, de estar sendo lembrado de coisas felizes que de alguma forma estranha haviam sido descuidadas. Havia, lembro-me, largos degraus vermelhos que surgiam à vista entre pontas de “delphinium” e por eles chegamos a uma grande avenida entre velhas árvores que projetavam sombras escuras. Ao longo dessa avenida, sabe, entre as gretas vermelhas dos troncos idosos, havia bancos de mármore, estatuária e pombos brancos, amigos, muito mansos. Minha amiga conduziu-me ao longo daquela fresca avenida, olhando para mim — recordo-me de seus traços agradáveis, do queixo finamente modelado e do rosto doce e gentil —, fazendo-me perguntas numa voz mansa e agradável, contando-me coisas que sei prazenteiras, embora não seja capaz de relembrá-las... Logo, um macaco capuchinho, muito limpo, de peliça castanho-avermelhada e olhos gentis cor de avelã, desceu de uma árvore em direção a nós, correu ao meu lado, olhando-me e arreganhando os dentes num sorriso, e depois saltou para o meu ombro. Assim, nós dois continuamos o nosso caminho na maior felicidade.
Fez uma pausa.
— Continue — disse eu.
—Lembro-me de pequeninas coisas. Passamos por um velho extasiado entre louros, lembro-me disso, e por um lugar que os papagaios alegravam, e atravessamos uma colunata sombria, extensa, chegando a um palácio fresco e espaçoso, cheio de fontes agradáveis, cheio de coisas maravilhosas, cheio de qualidade e da promessa dos desejos do coração. E havia ali muitas coisas e muita gente, alguns parecendo ainda claramente ressaltados e alguns indefinidos; mas todas essas pessoas eram gentis e lindas. De algum modo — não sei como —, era-me transmitido que todos seriam bons amigos para mim, estariam contentes de me terem ali, enchendo-me de alegria com seus gestos, com o toque de suas mãos, com a acolhida e o amor dos seus olhos. Sim…
Ficou em êxtase algum tempo.
—Achei ali companheiros de brinquedos. Isto significava muito para mim, porque eu era um meninozinho solitário. Jogavam deliciosos jogos num pátio coberto de relva onde havia um relógio de sol cheio de flores. E amavam-se enquanto jogavam... Mas — é singular — há uma brecha na minha memória. Não me lembro dos jogos que jogávamos. Nunca me lembrei. Posteriormente, como uma criança, perdi longas horas tentando, em lágrimas mesmo, recordar a forma daquela felicidade. Queria brincar de tudo outra vez — no meu quarto — sozinho. Não! Tudo que recordo é a felicidade e dois coleguinhas queridos que estiveram mais perto de mim... Então, pouco tempo depois, uma escura e sombria mulher, de rosto grave, pálido, olhos sonhadores, uma sombria mulher vestindo um manto comprido e macio de púrpura pálida, carregando um livro, acenou-me e levou-me a seu lado para uma galeria sobre um vestíbulo, embora meus companheiros relutassem em deixar-me e cessassem todos os brinquedos, ficando a olhar-me enquanto ela conduzia-me para longe.
“—Volte! — gritaram. Volte, logo!
“Olhei para o seu rosto, mas ela não lhes prestou nenhuma atenção. Sua face era muito suave e solene. Levou-me a um assento da galeria e fiquei ao seu lado, pronto para ler no livro enquanto o abria sobre os joelhos. As páginas caíram, abertas. Mostrou-mas e as fitei, maravilhado, pois nas folhas vivas do livro vi-me a mim mesmo: era uma história a meu respeito, e nela continham-se todas as coisas comigo acontecidas desdes o meu nascimento... Foi maravilhoso, porque as páginas daquele livro não eram figuras, compreende, mas realidades.”
Wallace, gravemente, fez uma pausa. Olhou-me em dúvida.
— Continue — disse eu. — Compreendo perfeitamente.
—Eram realidades… Sim, devem ter sido; pessoas moviam-se e coisas saíam e entravam nelas, minha querida mãe, que eu quase esquecera, depois meu pai, austero e rígido, os criados, a “nursery”, todas as coisas familiares da casa. Enfim, a porta da frente e as ruas movimentadas, com tráfego de um lado para outro. Olhei e maravilhei-me, e olhei de novo para o rosto da mulher, meio duvidoso, virei as páginas, pulando isto e aquilo para ver mais daquele livro, mais e mais, e assim cheguei finalmente a mim mesmo rondando, hesitante, por fora da porta verde na extensa parede branca, e senti de novo o conflito e o medo.
—E depois? — exclamei.
— Eu teria virado a página, mas deteve-me a mão fria da grave mulher. Insisti, lutando mansamente com a mão dela, puxando-lhe os dedos com toda a minha força infantil e, quando cedeu e a página virou, abaixou-se como uma sombra sobre mim, beijando-me na fronte. Mas a página não mostrou o jardim encantado, nem as panteras, nem a menina que me conduzira pela mão, nem os companheiros que tinham relutado tanto em deixar-me. Mostrava uma comprida rua cinzenta em West Kensigton, naquela hora fria da tarde, antes das luzes se acenderem, e ali estava eu, uma figurinha miserável, soluçando alto, malgrado tudo que podia fazer para conter-me, e eu estava soluçando, porque não podia voltar aos meus queridos coleguinhas que me tinham gritado “volte! volte, logo!”. Eu estava ali. Isso não era uma página do livro, mas áspera realidade; aquele lugar encantado e a mão impeditiva, daquela mãe solene, em cujos joelhos eu estivera, tinham-se ido — para onde?
Fez uma nova pausa, permanecendo por algum tempo a fitar o fogo.
—Ah! A desgraça daquele retorno! — murmurou.
—Então? — disse eu, depois de um minuto ou dois.
—Pobre miseravelzino eu era!... Trazido de volta a este mundo cinzento! Quando compreendi de tudo o que acontecera, entreguei-me ao desespero desgovernado. A vergonha, a humilhação daquele pranto em público, a minha desgraçada volta à casa ainda permanecem comigo. Revejo o idoso cavalheiro de olhar benevolente e óculos de ouro que parou e falou comigo, protegendo-me primeiro com seu guarda-chuva. “Pobre rapaz — disse ele. — Você então está perdido?”. Eu, um menino londrino de cinco anos e tanto! E ele teve necessariamente de chamar um policial moço e gentil, de reunir uma multidão em torno de mim, e assim marcharam-me para casa. Soluçante, conspícuo e atemorizado, fui do jardim encantado para os degraus da casa de meu pai. Aí está a melhor forma como posso recordar minha visão daquele jardim — o jardim que ainda me persegue. Naturalmente, nada posso transmitir daquela indescritível qualidade de realidade translúcida, aquela “diferença” das coisas comuns da experiência que pendia de tudo ali; mas aquilo... Aquilo foi o que aconteceu. Se foi um sonho, estou certo de ter sido um sonho diurno e ao mesmo tempo extraordinário... Hum!... Naturalmente, seguiu-se um terrível interrogatório de minha tia, meu pai, a ama, a governanta — todo mundo. Tentei contar-lhes, e meu pai deu-me a minha primeira sova por estar dizendo mentiras. Quando, posteriormente, procurei contar à minha tia, ela puniu-me de novo pela minha feia persistência. Depois, como disse, todo mundo ficou proibido de prestar-me atenção, de escutar uma palavra a respeito. Até meus livros de falas foram-me tirados por algum tempo, devido a que eu estava muito “imaginativo”. Sim, eles fizeram isso! Meu pai pertencia à escola antiga... E minha história foi repelida sobre mim mesmo. Segredei-a para o meu travesseiro — travesseiro que meus lábios sussurrantes achavam frequentemente salgado e úmido de lágrimas infantis. Acrescentava sempre às minhas orações oficiais e menos fervorosas este pedido do coração emanado: “Queira Deus possa eu sonhar com o jardim! Oh! Leve-me de volta ao meu jardim! Leve-me de volta ao meu jardim”. Sonhei repetidas vezes com o jardim. Talvez tenha lhe acrescentado alguma coisa, talvez tenha-o modificado; não sei... Tudo isso, você compreende, é uma tentativa de reconstruir com lembranças fragmentárias uma experiência muito precoce. Entre essa e as outras recordações consecutivas de minha meninice há um abismo. Tempo houve em que me pareceu impossível voltar a falar nesse vislumbre maravilhoso.
Fiz uma pergunta óbvia.
—Não — respondeu. — Não me lembro de ter jamais procurado, naqueles anos distantes, meu caminho de volta para o jardim. Isso, agora, parece-me singular, mas creio que, muito provavelmente, iniciou-se uma severa vigilância dos meus movimentos para evitar que eu me extraviasse. Não, não foi antes da ter conhecido você que tentei penetrar de novo no jardim. E creio que houve um período — incrível como pareça agora — em que esqueci de todo o jardim, quando tinha meus oito ou nove anos. pode ter sido. Lembra-se de mim como um garoto em Saint Althelstan?
—Muito!
—Eu não mostrava quaisquer sinais, naqueles dias, de ter um sonho secreto, mostrava?
II
Olhou-me com um súbito sorriso.
— Você algum dia brincou comigo de “north-west passage”?... Não, naturalmente, você não esteve no meu caminho! Era o tipo do jogo — prosseguiu — que toda criança imaginativa joga o dia inteiro. A ideia era a descoberta da “north-west passage” para o colégio. O caminho do colégio era bastante plano, e a brincadeira consistia em encontrar algum caminho que não fosse plano, partindo dez minutos mais cedo nalguma a direção pouco promissora e dando muitas voltas através de ruas inacostumadas até chegar à meta. E um dia, achei-me emaranhado entre algumas ruas um tanto baixas no outro lado de Campden Hill. Comecei a pensar que, pela primeira vez, o jogo estava contra mim e que eu chegaria tarde ao colégio. Tentei desesperadamente uma rua que parecia um “cul-de-sac” e encontrei-a no fim uma passagem. Corri para ela com renovada esperança. “Tenho de fazê-lo” — disse eu, e passei uma fileira de lojinhas desalinhadas que me eram inexplicavelmente familiares e — veja! —lá estavam minha extensa parede branca e a porta verde que levava ao jardim encantado! A coisa incidiu bruscamente sobre mim. Então, afinal de contas, aquele jardim — aquele jardim maravilhoso — não era um sonho!
Fez uma pausa.
— Creio que minha segunda experiência com a porta verde delimita o universo de diferenças que existem entre a vida ocupada de um colegial e o ócio infinito de uma criança. De qualquer modo, nesta segunda vez, não pensei, por um só momento, em ir e atravessá-la diretamente. Veja você... Por um motivo — minha cabeça estava cheia com a ideia de chegar ao colégio na hora certa — firme em não quebrar minha habitual pontualidade. Devo ter sentido pelo menos “um” pequeno desejo de tentar a porta... Sim. Devo ter sentido... Mas parece-me ter sentido a atração da porta mais como outro obstáculo à minha determinação dominadora de ir para o colégio. Estava imensamente interessado nessa descoberta que fizera, naturalmente — fui andando com a cabeça cheia dela —, mas fui andando. A porta não me deteve. Passei-a às pressas, puxei, com esforço, meu relógio, verificando que ainda tinha dez minutos de sobra e, então, fui descendo a colina para ambientes familiares. Cheguei ao colégio, sem fôlego é verdade, e molhado de suor, mas em tempo. Posso lembrar-me de ter pendurado o casaco e o chapéu... Passei pertinho dela e deixei-a para trás. Estranho, hein?
Olhou-me pensativamente.
—Naturalmente, não pensei, então, que ela deixaria de estar sempre ali. Colegiais têm imaginação limitada. Creio ter pensado ser uma coisa terrivelmente boa tê-la ali, saber meu caminho de volta para ela: mas havia o colégio a arrastar-me. Imagino que estivesse bastante desatento e distraído aquela manhã, recordando tudo o que podia sobre as pessoas maravilhosas, pessoas que deveria rever dentro em pouco. Bastante singularmente, não tinha dúvida que elas ficariam contentes em ver-me... Sim, devo ter pensado no jardim, aquela manhã, apenas como um belo tipo de lugar que se pode frequentar nos interlúdios de uma carreira escolástica extenuante. De qualquer forma, não fui naquele dia. O dia seguinte foi meio feriado e isso deve ter pesado sobre mim. Talvez, também, meu estado de inatenção tenha trazido imposições sobre mim e restringido a margem de tempo necessária para o “détour”. Não sei. Sei apenas que, entrementes, o jardim encantado ocupava tanto meu cérebro que não o pude guardar para mim mesmo. Contei — qual era o seu nome? — a um rapaz que parecia um furão e que costumávamos chamar de Squiff.
—O jovem Hopkins — disse eu.
— Era Hopkins. Não gostei de ter contado a ele. Sentia que, de alguma forma, era contra as regras contar-lhe, mas contei. Ele fazia comigo parte do caminho para casa; era falador e, se não falássemos sobre o jardim encantado, teríamos falado sobre alguma outra coisa: era-me intolerável pensar em outro assunto qualquer. Revelei meu segredo. Bem, ele contou-o. No dia seguinte, no recreio, achei-me cercado por meia dúzia de meninos, dos maiores, meio arreliantes e completamente curiosos para ouvir mais sobre o jardim encantado. Estava, ali, aquele grande Fawcett — lembra-se dele? — e Carnaby e Morley Reynolds. Você não estava lá por acaso? Não. Creio que me lembraria se estivesse… Um menino é uma criatura de estranhos sentimentos. Eu estava, creio realmente, malgrado meu autodesgosto, um pouco lisonjeado de ter a atenção daqueles rapazes grandes. Relembro, particularmente, um momento de prazer causado pelo elogio de Cranshaw — lembra-se do Cranshaw maior, filho do compositor Cranshaw? — que disse ser a melhor mentira que jamais ouvira. Mas havia, ao mesmo tempo, uma efetiva e dolorosa sensação de vergonha por ter contado o que eu sentia ser, na verdade, um segredo sagrado. Aquele bestial Fawcett disse uma gracinha sobre a menina de verde…
A voz de Wallace baixou com a lembrança viva daquela vergonha.
—Pretendi não ouvir — disse ele. — Bem, então Carnaby, subitamente, chamou-me de jovem mentiroso e discutiu comigo quando eu disse que a coisa era verdadeira. Eu disse que sabia como achar a porta; que poderia conduzi-los, todos, até lá, em dez minutos. Carnaby tornou-se afrontosamente virtuoso e disse que eu tinha de fazê-lo — sustentar minha palavra ou aguentar. Alguma vez você teve o seu braço torcido por Carnaby? Então, talvez compreenda como aconteceu comigo. Jurei que minha história era verdadeira. Não havia ninguém no colégio então para salvar um camarada de Carnaby, embora Cranshaw dissesse uma palavra ou duas. Carnaby ganhara o jogo. Tornei-me excitado e de orelhas vermelhas e um pouco atemorizado. Portei-me, absolutamente, como um sujeitinho tolo e o resultado de tudo foi que, em vez de partir sozinho para o meu jardim encantado, mostrei, dali a pouco, o caminho — maçãs vermelhas, orelhas quentes, olhos vivos e minha alma ardendo miséria e vergonha — a um grupo de seis colegiais caçoístas, curiosos e ameaçadores. Nunca encontramos a porta na parede.
—Quer dizer…
—Quero dizer que não pude encontrá-la. Tê-la-ia encontrado, se pudesse. E, posteriormente, quando consegui ir sozinho, não pude encontrá-la. Nunca a encontrei. Parece-me, agora, ter estado sempre procurando por ela através dos meus dias escolares, mas nunca cheguei a ela, nunca.
—Os rapazes… tornaram-se desagradáveis?
—Bestialmente… Carnaby organizou um conselho para julgar-me, por mentira maliciosa. Lembro-me de como rastejei para casa e subi para esconder os vestígios de choro. Quando chorei, porém, até pegar no sono, não foi por causa de Carnaby, mas pelo jardim, pela maravilhosa tarde que eu tinha esperado, pela mulher doce e amiga, pelos companheiros que estavam esperando e pelo jogo que eu desejara aprender de novo, aquele belo jogo esquecido… Acreditei firmemente que, se não tivesse contado… Tive maus momentos depois daquilo — chorando à noite e devaneando durante o dia. Por dois trimestres, afrouxei e tive más notas. Está lembrado? Claro que está! Foi “você” — sua vitória sobre mim nas matemáticas — que me trouxe de novo para o estudo.
III
Por algum tempo, meu amigo fitou silenciosamente o rubro coração do fogo. Disse depois:
—Nunca mais vi de novo, até meus dezessete anos. Assaltou-, pela terceira vez, quando me dirigia para Paddington, no meu caminho de Oxford e da formatura. Tive apenas uma visão momentânea. Estava reclinado sabre o avental do meu coche, fumando um cigarro e, sem dúvida, acreditando-me sem fim, como homem do mundo e, subitamente, lá estava a porta, a parede, a sensação querida de coisas inesquecíveis e que ainda se pode conseguir. Fui tomado de surpresa para deter o coche, antes que tivéssemos bem passado e dobrado uma esquina. Tive, então, um mau momento, um duplo e divergente momento de minha vontade; bati de leve na portinhola do tejadilho do coche e abaixei o braço para puxar o relógio.
“—Sim, senhor! — disse o cocheiro vivamente.
“—Hum… bem… não é nada. Engano meu! — gritei. — Não temos muito tempo. Continue!
E ele continuou…
“Recebi meu diploma e, na noite seguinte a em que ocorreu aquilo, sentei-me junto ao fogo no meu quartinho de cima, no meu gabinete, na casa de meu pai, com seus elogios e seus conselhos sãos retinindo em meus ouvidos, e fumava meu cachimbo favorito — o formidável cavalo de batalha da adolescência —, pensando naquela porta na extensa parede branca. Se eu tivesse parado, pensei, teria perdido meu diploma, teria perdido Oxford, dissipado toda a bela carreira à minha frente! Começo a ver melhor as coisas. Caí numa meditação profunda, mas não duvidei que minha carreira fosse coisa merecedora de sacrifícios. Aqueles amigos queridos e aquela atmosfera clara pareciam-me muito doces, muito belos, mas remotos. Meu interesse fixava-se, agora, sobre o mundo. Vi outra porta abrir-se: a porta da minha carreira.
Fitou o fogo novamente. A luz vermelha projetou-lhe no rosto uma força determinada por apenas um momento vacilante e, depois, desvaneceu-se.
—Bem — disse ele e suspirou —, servi a esta carreira. Realizei muito trabalho, muito trabalho árduo. Mas sonhei mil sonhos com o jardim encantado e vi sua porta ou, pelo menos, vislumbrei-a quatro vezes. Por algum tempo, este mundo era tão interessante e vivo, parecia tão cheio de significação e oportunidade, que o encanto semiapagado do jardim era, comparativamente, pacífico e remoto. Quem deseja acariciar panteras, indo jantar com belas mulheres e homens evidentes? Vim para Londres, de Oxford, um homem que muito prometia, que eu tinha feito algum coisa para resgatar. Alguma coisa — e, todavia, houve desapontamentos... Estive duas vezes apaixonado — não vou deter-me nisso —, mas, de uma feita, quando ia para alguém que, sabia-o, duvidava que eu fosse, aventurei-me por um curto atalho, através de um caminho pouco frequentado, perto de Earl Court, e aconteceu, assim, dar-me com a parede branca e a familiar porta verde. “Estranho” — disse a mim mesmo —, “mas pensei que este lugar fosse em Campden Hilll! É o lugar que eu nunca pude encontrar, de forma alguma — como conta Stonehenge —, o local daquele meu extravagante sonho diurno”. E eu continuei, resolvido no meu propósito. Não havia apelação para mim naquela tarde. Tive apenas um impulso momentâneo de tentar a porta, três degraus, quando muito, eram precisos, embora estivesse certo, no meu coração, que ela se abriria para mim, e, então, pensei que agir assim poderia atrasar-me no caminho para aquele encontro, no qual minha honra estava envolvida. Posteriormente, lamentei minha pontualidade — poderia, pelo menos, ter espreitado para dentro e acenado com a mão para aquelas panteras —, mas eu já sabia bastante, por esse tempo, para não procurar outra vez, tardiamente, aquilo que não podia sei encontrado, procurando. Sim, aquela vez fez-me ficar muito triste... Anos de árduo trabalho depois disso e nunca uma visão da porta. Só, recentemente, é que ela voltou a mim. Com ela, veio uma sensação, como se alguma fina mancha tivesse se espalhado sobre o meu mundo. Comecei a pensar nela, como uma coisa pesarosa e amarga, que eu nunca deveria rever aquela porta. Talvez eu estivesse sofrendo um pouco de excesso de trabalho, talvez fosse por ter ouvido falar na sensibilidade dos quarenta anos. Não sei. Mas, certamente, a viva claridade, que torna fácil o esforço, saíra, recentemente, das coisas, e isso, precisamente, num tempo — com todos esses novos desenvolvimentos políticos — quando eu deveria estar trabalhando. Estranho, não é? Mas começo a achar a vida trabalhosa, e seus prêmios, quando me aproximo deles, baratos. Comecei, há pouco tempo, a desejar o jardim, terrivelmente. Sim — e eu vi três vezes...
—O jardim?
—Não, a porta! E não entrei!
Inclinou-se para mim, sobre a mesa, com uma dor imensa na voz, quando falou.
— Por três vezes, tive a minha oportunidade — três vezes! Se jamais aquela porta se oferecer a mim de novo, jurei-o, entrarei, fora desta poeira e deste calor, fora desta cintilação seca de vaidade, fora destas futilidades trabalhosas. Entrarei para não voltar nunca. Desta vez, hei de ficar… Jurei-o e, quando veio o tempo — “não entrei”. Três vezes, em ano, passei por aquela porta e deixei de entrar. Três vezes, no ano passado. A primeira vez foi na noite da momentânea divisão dos “Tenant's Redemption Bill”, na qual o governo foi salvo pela maioria de três. Lembra-se? Ninguém do nosso lado — talvez muito poucos do lado oposto — esperava o fim naquela noite. Então o debate ruiu como cascas de ovo. Eu e Hotchkiss estávamos jantando com o primo dele, em Brentford; estávamos ambos sem par e fomos chamados pelo telefone, e partimos, num instante, no carro do primo dele. Mal chegamos em tempo e, no caminho, passamos pela minha parede e a porta — lívida ao luar.
“—Meu Deus! — exclamei.
“—O quê?— disse Hotchkiss.
“—Nada — respondi, e o instante passou. —Fiz um grande sacrifício — disse ao “whip” quando entrei.
“—Todos o fizeram — replicou ele e saiu correndo. Não vejo como poderia ter agido de outra forma. E o próximo ensejo foi quando me precipitava para a cabeceira de meu pai, para dizer o meu adeus ao velho austero. Também, então, os direitos da vida eram imperativos. Mas, da terceira vez, foi diferente: aconteceu há uma semana. Enche-me de ardente remorso recordá-lo. Foi com Gurker e Ralphs — não é segredo agora, você sabe, que eu tive minha conversa com Gurker. Tínhamos jantado no Frobisher e a conversa tornara-se íntima entre nós. A questão do meu lugar no ministério reconstruído jazia, sempre, nos limites da discussão. Sim, sim. Está tudo assentado. Não precisava falar a respeito agora, mas não há razão para guardar um segredo de você... Sim — obrigado! obrigado! Mas, deixe-me contar-lhe a minha história. Então, naquela noite, as coisas estavam muito mais no ar. Minha posição era delicada. Estava vivamente ansioso por obter alguma palavra definitiva de Gurker, mas embaraçava-me a presença de Ralphs. Estava usando o melhor poder do meu cérebro para manter aquela conversa leve e descuidosa, não muito obviamente, dirigida ao ponto que me concernia. Tinha de fazê-lo. O comportamento de Ralphs, a partir daí, mais do que justificou minha precaução... Ralphs. sabia eu, deixar-nos-ia depois da Kensington High Street e, então, eu poderia surpreender Gurker com uma franqueza repentina. Tem-se, algumas vezes, que recorrer a esses pequenos artifícios... E, então, aconteceu que, na margem do meu campo de visão, tomei sentido, mais uma vez, da parede branca, da porta verde à nossa frente, ao longo do caminho. Passamos por ela, conversando. Passei por ela. Posso ainda ver a sombra do perfil marcante de Gurker, sua cartola inclinada para frente, sobre o nariz pronunciado, as muitas dobras do seu pescoço enrodilhado, andando entre minha sombra e a de Ralphs, quando passamos vagueando. Passei acerca de vinte polegadas da porta. Se digo boa noite a eles, e entro, perguntei-me a mim mesmo, o que acontecerá? E eu estava vibrando por aquela palavra com Gurker. Não pude responder àquela pergunta no emaranhado dos meus outros problemas. Vão supor-me louco, pensei. E, imagine se eu me desvanecer agora! ‘Espantoso desaparecimento de um político proeminente!’. Aquilo pesou em mim. Mil vaidadezinhas humanas, incompreensíveis, pesaram em mim naquela crise”.
Voltou-se para mim, então, com um sorriso desgostoso e, falando mansamente, disse:
—Aqui estou eu! — repetiu ele. — E minha oportunidade me deixou. Três vezes, em um ano, a porta foi-me oferecida — a porta que leva à paz, à delícia, à beleza além do sonho, à bondade que nenhum homem na terra pode experimentar — e eu rejeitei-a, Redmond, e ela se foi…
—Como o sabe?
—Sei. Deixaram-me agora a procurá-la, aos deveres que me amparam tão fortemente quanto chegam os meus momentos. Você diz que eu tenho sucesso — essa coisa vulgar, casquilha, enfadonha, invejada. Tenho-o. Tinha uma noz na grande mão — se isso fosse o meu sucesso! — disse ele — e partiu-a, e mostrou-ma para que a visse. Deixe-me dizer-lhe alguma coisa, Redmond. Esta perda está me destruindo. Durante dois meses, durante, já agora, cerca de dez semanas, não fiz nenhum trabalho, exceto os deveres mais urgentes e necessários. Minha alma está cheia de arrependimentos implacáveis. De noite, quando é menos provável que eu seja reconhecido — saio. Erro. Sim. Imagino o que o povo pensaria se soubesse disso. Um ministro do gabinete, o cabeça responsável pelo mais vital dos departamentos, errando sozinho, aflito, algumas vezes lamentando-se, quase audivelmente, por uma porta, por um jardim!
IV
Posso ver, agora, sua face muito pálida e o fogo pouco familiar que entrou nos seus olhos. Vejo-o muito vividamente esta noite. Sento-me, relembrando suas palavras, seus tons e a última "Westminster Gazette" jaz ainda no meu sofá, contendo a notícia de sua morte. No almoço, hoje, o clube estava ocupado com sua morte. Não falamos de outra coisa.
Acharam seu corpo, ontem de manhã muito cedo, numa profunda escavação, perto de East Kensington Station. São uma ou duas covas feitas em conexão com um prolongamento da via férrea que se dirige para o sul. Acham-se protegidas da intromissão do público por um muro, feito na estrada principal, em que uma pequena porta foi aberta para conveniência dos trabalhadores que moram naquela direção. A porta foi deixada aberta por causa de um desentendimento entre dois capatazes e, através dela, foi que ele passou. Minha cabeça está obscurecida por enigmas e perguntas. Parecia que ele fizera a pé todo o caminho da câmara, àquela noite — andara a pé para casa, frequentemente, durante a última sessão —, e é assim que imagino sua figura sombria, vindo ao longo das ruas tardas e vazias, enrodilhado, atento. Teriam então as pálidas luzes elétricas, próximas à estação, estabelecido, enganosamente, nos ásperos pranchões, uma semelhança com branco? Teria aquela fatal porta escancarada, despertado nele alguma recordação? Havia, ali, afinal de contas, uma porta verde na parede?
Não sei. Contei-lhes a história e ele contou-a a mim. Momentos há em que acredito não ter sido Wallace mais do que vítima da coincidência entre uma rara, mas não sem precedentes, espécie de alucinação e uma armadilha, mas isso, na verdade, não é minha crença mais profunda. Podem pensar que sou supersticioso, se quiserem, e tolo; na verdade, porém, estou mais do que convencido de que ele tinha um dom anormal e um sentido, alguma coisa — não sei o quê — que, sob a forma de porta e parede, oferecia-lhe uma passagem, um caminho secreto e particular de fuga para um outro diverso mundo, mais maravilhoso ao mesmo tempo. Em todo caso, dirão, isso o traiu no fim. Mas tê-lo-á traído? Toca-se, aí, no mistério mais íntimo desses sonhadores, desse visionários e imaginativos. Vemos nosso mundo belo e comum e a cova… Do nosso ponto de vista, à luz diurna, ele caminhou da segurança para a escuridão, o perigo, a morte. Mas terá ele visto assim as coisas?
Fonte: “Policial em Revista”/RJ, edição de abril de 1952.
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