LINA DE MOSCOU - Conto Clássico Cruel - Felício Terra
LINA DE MOSCOU
Felício Terra1
— Que idade, que religião, que nome?—interrogou o juiz, amarrotando com a mão peluda a denúncia, único documento exigido para autorizar a condenação à morte…
— Trinta anos, judia, Lina Petrowski — respondeu a acusada, com voz monótona, quase sem mover os lábios, numa atitude de abandono, fito o olhar nas algemas.
Era uma mulher ainda formosa, em cujo rosto empalidecido havia a desgraça cunhado vigorosamente os seus estigmas. Adivinha-se na orla rubra pálpebras o rastro da insônia e na contração da boca descorada a história de alguma velha dor.
Assassinara, numa noite só, quatro soldados, que dormiam, e no momento de ser presa fora surpreendida a beijar um punhal, com fervor de alucinada, talvez com requintes de carniceria.
— Confessa o crime que lhe imputam?
—Perfeitamente; confesso. Matei-os: quatro, apenas. Dormiam. Fui devagarinho, pé ante pé, sem o mínimo ruído, sustando a respiração, e apunhalei-os, sem lhes dar tempo para um gemido, com esse punhal que aí está sobre a mesa. Durante seis anos o meu querido companheiro esteve inativo; mas, quando lhe pedi socorro — oh! —, feria como um raio bem-vindo...
E, de um salto, debruçou-se sobre a arma, beijou-a e voltou ao seu lugar e à mesma atitude de abandono.
O juiz encarou-a. Os lábios da infeliz tremiam, como se o frio do aço houvesse provocado estranhas crispações de gozo.
—Fale — intimou o juiz. — Diga o motivo que a incitou ao crime.
—Falar? Não é preciso. Basta-me espremer o coração, no qual recalquei, por seis anos excessivamente longos, o inefável estímulo de vingança. Mande tirar-me o coração do peito, esprema-o e saberá.
—A justiça não quer frases. Fale, repito…
—Bem; falarei. Foi em Moscou, em 1899. O grão-duque Sérgio2 iniciara seu miserável governo de torturas, espalhando por toda a parte lágrimas e vergonhas. Tem notícia disso? Talvez não. A moral dos escravos nem sempre é igual à dos livres, e no céu da Rússia não há estrelas, há manchas. O Sr. juiz é uma delas: serve ao despotismo, o que quer dizer que serve ao inferno. Abdicou a dignidade humana em proveito da sociedade do estômago! Enfim: eu creio na predestinação… O juiz é um predestinado e devo-lhe causar horror...
— Proíbo-lhe a divagação. Se insistir, mandarei açoitá-la…
— Foi em Moscou, em 1899. O grão-duque, protetor dos orfanatos, ocupava-se principalmente de desonrar as educandas. Uma delas, vítima do sátiro imperial, contou ao irmão, tenente das guardas, a sua imensurável desdita. O moço correu a palácio, desafiou o príncipe a um duelo de morte, mas… o cobarde recusou bater-se e enviou para a Sibéria o vingador da desonrada! Os príncipes de sangue não se batem; infamam-se.
“Nessa mesma época, Sérgio decretou a expulsão dos judeus. Meu pai fugiu e eu fiquei, em companhia de minha mãe paralítica. Estávamos inscritas no ignóbil registro... “
— Que registro?
— O das meretrizes. Mas, peço perdão. Minha mãe era uma santa e eu era uma virgem…
O juiz ergueu-se de súbito, como se vira surgir, impávido, diante de seus olhos, o especto da amargura e, com os cabelos hirtos e a boca escancarada, tartamudeou:
—Não entendo! Juro por Deus que não entendo.
—Ai! O Sr. juiz tem alma?… Que surpresa! Eu me explico. O decreto do grão-duque dispunha que os judeus seriam expulsos; mas que as judias seriam toleradas em Moscou, sob a condição de se inscreverem no registro das meretrizes… Compreende agora? Para não deixar minha mãe, inscrevi-me.
“Não saía de casa quase nunca. As mulheres eram agarradas e conduzidas ao primeiro posto policial… para o exame médico… Um dia fui à farmácia buscar remédio para minha mãe… Prenderam-me… Oh! Que coisa cruel!… Levaram-me ao posto e fui brutalmente examinada. Minha virgindade parecia uma revolta. Levaram-me à presença do grão-duque! Ele próprio, o sicário, examinou-me também. Estava desmaiada. Quando recuperei os sentidos, ouvi a voz cabritante do grão-duque:
“— Levem-na ao posto policial e ordenem a cada um dos soldados que torne efetiva a disposição do decreto.”
O juiz aproximou-se da desventurada e, insensivelmente, tentava despedaçar as algemas com as unhas
—Cheguei, tiritando de pavor, ao posto policial. A ordem de Sérgio, acolhida com aplausos, devia ser cumprida… Perdi, novamente, a consciência. Não sei quanto de tempo durou o martírio. Não sei. Deus não quis que eu morresse. Para quê? Para vingar-me vingando-o. Ao voltar a mim, tinha o corpo crivado de dores e de imundícies… Dentro de mim, um vazio… Estava sem alma. De pé, bêbados pela embriaguez da luxuria e da torpeza, quatro soldados.
“— Chamo-me Ivan Keroff, minha bela.
“— Eu sou Miguel Turgueff, meu amor…
“— Estanislau Krye, meu coração…
“— Pedro, Sturm, meu passarinho…
“Desvairada, as pernas trôpegas e mortificada, inundada de cólera e asco, voei à casa: minha mãe tinha morrido…”
—Queres fugir, filha?—inquire o juiz, rangendo os dentes e com as pupilas enormemente dilatadas, como as de agonizante.
—Não — exclama Lina Petrowski —; quero morrer. Vesti minha pobre mãe com as suas melhores roupas, fiz-lhe o funeral, acompanhei-a ao cemitério e depois de o coveiro terminar a sua obra de eterno apagamento, caí de bruços sobre a terra frouxa da sepultura, colei a boca ao chão amigo e falei demoradamente para dentro do esquife. Proferi o juramento de vingança…
— Queres fugir, mártir? — perguntou ainda o juiz, roçando os lábios febris nas mãos geladas da assassina.
— Não. Quero morrer só. Reuni as últimas moedas, comprei um punhal e comecei a minha dolorosa vida de sombra errante nas imediações do palácio do grão-duque.
“Ninguém me olhava. Tingia o rosto com lodo, dormia ao relento, no verão, como no inverno, com medo de adoecer, com medo de morrer, pedindo esmola aos pobres, evitando os soldados, fugindo da luz, à espera do grão-duque… unicamente à espera de Sérgio.
“Cinco anos, mais de cinco anos assim, com um vulcão no peito e o punhal junto ao coração…
“Uma vez, ouvi um estrondo inaudito. Saí do meu esconderijo, aterrada, pressentindo que a minha vingança escapava... A bomba de Kalaieff justiçara o algoz da minha existência... Era a vingança de Kalaieff3 que se exercia, mas não era a minha vingança, oh! não.... Da sua sepultura longínqua, minha mãe clamava... Do seu desterro ignorado, meu pai me mandava acenos incompreensíveis… Do catre do posto policial, minha virgindade ensanguentada soluçava... Tive a visão fantástica do fim do mundo! As migalhas do corpo de Sérgio salpicavam o asfalto da praça publica, e a minha imaginação convulsa divisava, numa fenda negra do solo, o demônio imergir, levando ao colo, com carinhos extremos, a alma do grão-duque... De repente, como um dobre de finados, tiniram dentro de meu crânio quatro nomes malditos... Não lhe poderei dizer como foi... Tenho uma lembrança vaga de que andei fazendo perguntas... Prenderam-me. Estive oito meses a apodrecer num cárcere escuro e molhado, mas não adoeci; apesar da ruminação exaustiva dos ímpetos de vingança, deslocados, por vontade da sorte, do mandante para os seus bandidos… Por fim, enxotaram os mendigos das prisões. A fuzilaria dos cossacos, que trovoava nas ruas, aliviaria o tesouro imperial do ônus de alimentar os presos. Saí com o meu punhal. Nunca me revistaram, por milagre.
“Na porta da prisão, um soldado articulou meu nome… Voltei-me rapidamente e reconheci um dos quatro.
“— Como te chamas?
“—Estanislau Kryé. Vem comigo. Temos sentido tua falta. Os companheiros também têm saudades… “
—E foste? —indagou o juiz, ansioso.
—Fui. No mesmo posto. Estavam os quatro. Prestei-me a tudo, com a condição de que me ocultassem durante a noite, porque tinha medo da fuzilaria... Prometeram. Fechei os olhos e senti o punhal palpitar, junto à minha carne, com um intenso júbilo de paraíso... Minha sensibilidade evaporada não me deixava a consciência do meu corpo. Não sei, não sei... Prestei-me a tudo e, quando a noite desceu, fingi que adormecia. Os quatro, esses dormiam profundamente… Logo, ao principio do sono deles, tentei erguer-me. Pedro Sturn ressonou mais alto. Tive susto de despertá-los e recaí na sonolência simulada. Por fim, levantei-me, e o meu querido punhal remeteu para a companhia de Sérgio os quatro mandatários do inferno. É triste, não é? Agora preciso morrer. Sabe porquê? Por que, para cúmulo da miséria, tenho medo de… ser mãe!
O juiz inteiriçou o corpo, distendeu os músculos, num largo espreguiçamento felino, tomou o punhal de Lina, deu um grito de desespero e correu, delirante, pelo corredor afora…
— Quero matar o grão-duque… Quero reabilitar a dignidade humana… Quero vingar o infortúnio da Rússia.
E brandia o punhal com a fronte gotejando suor, os cabelos hirtos, a boca cheia de escuma… Estava louco.
Fonte: “Almanach do Paraná para 1908”/PR, Annibal Rocha & Companhia Editores, 1907.
Notas:
1Pseudônimo de Nuno de Andrade (c. 1851 – 1922).
2Sérgio Alexandrovich Romanov (1857 – 1905), filho do czar Alexandre II da Rússia e tio do czar Nicolau II.
3Ou Kalyayev (Ivan) (1877 – 1905), poeta russo e membro do Partido Socialista Revolucionário Russo, assassino de Sérgio Alexandrovich Romanov, mediante a explosão de uma bomba.
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