O HORROR - Conto Clássico de Terror - Antonio Monteavaro
O HORROR
Antonio Monteavaro
(1876 – 1914)
Tradução de J. J. de Sá1
—Acredita, meu bom irmão, é horrível… Não tem outro nome: horrível! Não supus nunca que o martírio se pudesse revestir de tão misteriosas e aterradoras formas. De noite, não há maneira de eu poder dormir, e para poder conciliar de dia o sono, preciso ter alguém perto de mim, a quem possa interrogar, para que sossegue… Se isto durar um mês mais, darei um tiro nos miolos.
Depois de exteriorizar os seus receios, Angelo Corbello levou, com mão trêmula, aos lábios, uma forte dose de bromureto de potássio, e ficou por um instante como que abismado numa visão íntima. Era um moço de fraca contextura e fisionomia inquieta, móvel, que dois olhos sombrios, dois olhos de carbúnculo animavam, intensamente afundados nas violáceas arcadas superciliares. Um pequeno bigode louro, caído para as comissuras, lhe sombreava o lábio superior em constante tremura.
—Parece mentira, Angelo, que, sabendo tu serem os nervos a causa desse mal, não possas dominá-los — respondeu Ardaniz, estroina obstinado e um grande coração, como sói acontecer com quase todos os estroinas, cuja saúde de ferro desafia os maiores excessos.
—E pensas que eu não intento fazer isso?… Mas, sem remédio, acredita… Esta enfermidade não pode deixar de vir de muito longe, de algum avô alcoólatra, de parentes degenerados, uma herança fatal que me corre pelo raquítico corpo, minado por um sistema nervoso, mórbido… Já leste “O medo”, de Maupassant? Pois isto é pior, porque aqui não se trata de alucinação visual, mas auditiva, uma voz humana perto de ti, sempre à tua espreita nas trevas, a dizer-te coisas abomináveis, em voz baixa, como que a insultar-te em segredo, para que só tu a possas ouvir. Às vezes, a voz vem do quarto contíguo; outras, penetra pelo buraco da fechadura da porta; e não cessa, Ardaniz, não cessa nunca, por mais que saibas que ninguém te está falando. Ah! Tudo tenho feito, com todas as forças de meu espírito, se assim se pode dizer, para provocar a autossugestão e vencer, desse modo, o inimigo que se me alojou no cérebro e malignamente o rói.
Passou a mão pelos olhos e, estremecendo, desatou a rir de modo fúnebre.
—Olha! Cá está ela! — acrescentou, sem deixar de rir. —Sabes como se manifesta? É assim… Numa gargalhada demorada que acompanha o soar longínquo de sino, dobrando a finados pela minha morte.
Ardaniz olhava-o absorto. Não compreendia aquilo. Essa aflição, essa angústia sem causa, enfermiça, produto de um delírio a frio, irritava-o.
— Continua a gargalhada, e continuará por algum tempo mais! — disse Angelo Corbello. — Mas não me dá grande cuidado: é de dia, e de dia pouco me assusta. Só de noite, bom irmão, é que me martiriza ao extremo… Quando ela explode, ou quando eu luto por evitá-la, a fim de não experimentar o horroroso que se segue... Há dias tive um pensamento... Eu tremo até de pensar em alguma coisa... Aquela foi uma ideia que quase me levou a matar-me. Imagina! Eu pensei isto…. Disse assim comigo: felizmente, sei que isto não é mais que uma alucinação que, mais dia menos dia, há de se dissipar com um regímen calmante; mas que seria de mim, meu Deus, se se juntassem as duas alucinações, a visual e a auditiva? Imagina, Ardoniz… Eu ser acordado, de súbito, pela voz infamante, e, ao abrir os olhos, ver inclinado, sobre o meu rosto, outro rosto diabólico!... Tive medo... Tive medo, quando pensei isso, de que a suposição me sugestionasse... Ah! Não! Não! Que não se juntem, que não coincidam, que não se justaponham nunca as duas alucinações!
“O demônio parece que ouviu os meus pensamentos e esperou que eu adormecesse... De repente, disse-me: ‘Cá estou eu!’. Abri os olhos com essa angústia cardíaca que a presença do perseguidor me produz sempre, e... vi... sim... vi o monstro que me falava. Com um despedaçador lamento e uma raiva demente, atirei-me a ele. Ou, antes, atirei-me sobre o vácuo... Era um fantasma, nada mais... Depois... acendi a lampada.. . e fiquei, mais ou menos um quarto de hora a ofegar, dominado pelo espanto. Que horror, Ardaniz! Que horror!”.
O outro não sabia o que havia de dizer. Sofrendo do contágio de um vago terror que emanava da fisionomia convulsionada de Angelo, não atinava com a maneira de o consolar.
—Bem, bem… Vamos… Sossega… Não seria bom tomar mais um pouco de bromureto?
—Tens razão, sim. Os nervos são uma coisa esquisita. A própria conversação os excita e os faz ficar tensos como as cordas de um violino.
Repetiu, então, a dose e, pouco a pouco, foi recuperando o seu aspecto normal.
—Já estou bem — disse ele. Sou outro homem. A vida, agora, parece-me bela, e tenho a impressão de que a obsessão não se repetirá, de que não voltará nunca mais. Queres saber uma coisa? Acho que mesmo as duas alucinações juntas se podem combater com um pouco de serenidade, porque a ilusão não é completa. Mas, se se apresentasse uma outra, simultaneamente, a do tato, por exemplo, isto é, se se sentisse a impressão de um corpo físico, ao mesmo tempo que se ouvisse e se visse, então, eu… Voto ao inferno, Ardaniz! De novo tenho medo… medo disso… não se me vá cravar no cérebro tal ideia!
— Ora, Angelo, tu mesmo és o teu verdugo. Vem daí, pula da cama, e vamos distrair-nos... fazer uma farra... O melhor remédio para o teu mal é o de te divertires.
E foi cumprido o programa à risca, ponto por ponto.
De volta à casa, ele se deitou, depois de haver tomado duas cápsulas do calmante seu predileto, e não tardou em adormecer. O horror, entretanto, estava à espreita.
De repente, uma voz sussurrante o despertou, com o seu velho e conhecido tom. Sobressaltado e lívido, viu perto de si a figura sinistra das suas alucinações, e, antes que pudesse fazer qualquer gesto, sentiu umas mãos frias e gelatinosas que se pousavam suavemente no seu semblante.
*
Ao dia seguinte, a vizinhança encontrou o cadáver de Angelo Corbello, violentamente contorcido sobre a cama em desordem, e o mísero rosto amarelento refletia tal espanto que a sua máscara fazia pensar nas torturas dos condenados dantescos.
Fonte: “Primeira”/RJ, edição de 25 de outubro de 1927.
Nota:
1 Pseudônimo de Alcântara Machado (1901 – 1935).
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