QUEM? — Conto Clássico Trágico - Henri Lavedan

QUEM?

Henri Lavedan

(1859 – 1940)

Tradução de autor anônimo do início do séc. XX


O conde Jeppi tinha o hábito de, todas as tardes, depois de jantar, sair e passear a pé, durante uma ou duas horas à beira-mar, fumando charuto. Possuidor de um nome ilustre e de uma fortuna enorme, aparentado com as mais antigas famílias do patriciado romano, o conde tinha feito um casamento de amor. Tinha casado havia cinco anos com a filha do príncipe Civela — bela e plácida como um Rafael, loira e imponente como um Ticiano.

Espirituoso, elegante, belo, amando e sendo amado, o conde Jeppi não podia deixar de ser completamente feliz. E o era.

Durante oito meses, de novembro a junho, residia em Florença, a cidade dos palácios e dos prazeres Na época dos grandes calores, vinha instalar-se em Casamicciola, num chalé todo coberto de trepadeiras, construído nas fraldas da montanha do lado do mar, entre a água azul e o céu azul, um refúgio feito para ler Manzoni e para amar. Ele vivia ali durante o verão, gozando com sua mulher a solidão do tête-à-tête, bebendo o amor em grandes goles, embriagando-se de luz, como um filho privilegiado da vida.

Nos últimos dias de julho, numa noite asfixiante, o conde, segundo o seu costume, alguns instantes depois de se ter levantado da mesa, beijou sua mulher e saiu.

Deviam ser oito horas. O ar estava morno e pesado. Nenhuma aragem agitava as folhas das figueiras e das laranjeiras imóveis, brancas de pó. O mar, de um azul opaco e profundo, estendia-se ao longe, imóvel como uma imensa poça de azeite, e o céu saturado de calor era de um azul intenso e tão implacável que parecia cor de lousa. Ao longo das ruas tortuosas, os camponeses, sentados na soleira das suas portas, bebiam vinhos de Sicília em odres cheios, e grupos de lindas raparigas, morenas como bronzes florentinos, riam às gargalhadas, atirando-se flores menos vermelhas que o coral dos seus lábios. Pequenos com olhos de azeviche, descalços, conduziam rebanhos de cabras muito brancas e, muito tempo depois de terem passado, ainda se ouvia o som das campainhas que levavam penduradas ao pescoço.

Este espetáculo encantador, sempre o mesmo e sempre novo, não enfastiava nunca o conde. Ele atingiu o fundo da encosta e chegou rapidamente junto do mar, ao cais, la marine, como lhe chama a gente do lugar.

Tinha caído a noite, esplêndida, e as estrelas pareciam, uma a uma, como olhos de ouro sobre terra prestes a adormecer

De repente, num segundo, em menos tempo que a duração de um relâmpago, a terra tremeu, como que abalada pela marcha de exércitos invisíveis, de batalhões de gigantes! O mar, alterado e revolto, entrechocou as suas ondas, o céu cobriu-se de nuvens negras, uma aragem sulfurosa, um vento de fornalha soprava a destruição, e, em plenas trevas, sem poder fazer um gesto, soltar um grito, o conde aterrado, recomendando a sua alma a Deus naquele minuto supremo de lucidez que precede sempre a morte fulminante, caiu de bruços.

A primeira coisa que o conde Jeppi viu, quando voltou a si, foi uma estrela que o olhava, depois duas, depois três, e todo o belo cortejo de luzes silenciosas. Ficou instantes imóvel, sem saber o que lhe tinha acontecido, depois levantou-se cambaleando, deu alguns passos; não estava ferido. Que se tinha passado? Que formidável poder o tinha assim deixado sem forças?

O mar amoroso banhava a praia com as suas ondas de prata, o céu estava puro como o olhar de uma noiva, soprava uma doce brisa... tudo estava calmo! Entretanto, coisa estranha, ele não reconhecia mais o lugar onde se achava, o horizonte parecia-lhe mais igual e mais plano do que antes...

De repente, compreendeu! Compreendeu tudo, a horrorosa verdade… O tremor de terra!

Como uma lâmina de faca que penetra em pleno coração, a imagem de sua mulher sepultada debaixo das ruínas veio-lhe introduzir dolorosamente no mais profundo do seu ser. Partiu correndo na direção da sua casa.

— Está morta? Moribunda… ou viva ainda?

Ela estava talvez esmagada, o seu corpo encantador achatado, preso entre duas paredes... Que horror! Como se sofre nesses momentos!

Chegaria ele a tempo? E o conde levantava os punhos para o céu, enquanto que pesadas lágrimas lhe caíam dos olhos... Não se dava ao trabalho de as enxugar. Caminhava, tropeçando a cada passo em pedras e grandes pedaços de madeira, pousando os pés em coisas negras que se mexiam gemendo. O ar era cortado por gritos terríveis, gritos de animais feridos, gritos de criança, muito agudos, berros de mulher, roucos e prolongados, que se ouviam bem longe e, depois, pouco a pouco, diminuíam, perdiam a força e extinguiam-se em soluços. Eram chamados desesperados nas trevas — “Pai! Mãe! Filho! — invocações à misericórdia divina : “Jesus! Maria Santíssima!”, e de cada pedra, de cada destroço saía um gemido.

O conde cruzava com sombras, titubeando como gente embriagada, andando às apalpadelas, com os braços estendidos para a frente, ou sentadas, sem movimento, como estátuas da Desolação, e outras, embalando sobre os joelhos enormes, corpos oscilantes que não respondiam mais. Mulheres, desgrenhadas, dançavam, levantando as saias, loucas… e parecia estar-se realmente no Inferno de Dante!

Com suor frio nas fontes, gelado de horror, o infeliz Jeppi passava por cima dos cadáveres, atravessando as ruínas, e o único pensamento que batia no seu cérebro, como o badalo de um sino, era este: “Chegarei a tempo?”

Na esquina de uma rua, saindo de debaixo de um montão de traves, viu ele, ao luar, um braço de mulher, um braço nu, preso numa grade. A mão branca, cheia de anéis, agitava-se como um caranguejo. Os gritos da desgraçada, amortecidos, abafados, não se ouviam, mas aqueles dedos crispados chamavam e aquela mão sacudida no espaço gritava: “Socorro!”

O conde poderia tê-la salvo. Olhou para o outro lado e passou adiante. Não tinha tempo.

Depois de ter feito e refeito o mesmo caminho mais de vinte vezes, depois de ter vagueado durante uma hora, chegou, enfim, diante do que tinha sido a sua casa. Que espetáculo! O encantador chalé, o chalé dos beijos e das flores, não era mais do que um montão de destroços fumegantes. Uma única parede tinha ficado em pé e, bem no alto, numa gaiola dourada, pendurada ainda no seu prego, arrulhava uma rola predileta da condessa. E era comovente esse pobre animalzinho, tão débil, suspenso entre o céu e a terra na sua delicada moradia, essa rola milagrosa que ali estava como que para provar que o Deus que, com o seu terrível e misterioso poder, desmoronou em um segundo as cidades até os seus alicerces, pode igualmente, se lhe aprouver, salvar a vida a uma pomba.

Vendo essas enormes pedras amontoadas umas sobre as outras, o conde sentiu-se fraco como uma criança. Ela estava então ali debaixo, a sua querida e adorada mulher? Onde? Em que lugar? Ainda que estivesse morta, era preciso encontrá-la, custasse o que custasse. Quem sabe? Talvez o seu cadáver estivesse sofrendo! E, depois, ele queria tornar a vê-la uma ultima vez. Devagar, com precauções infinitas, com passadas cautelosas, agarrando às saliências, arriscou-se por entre as ruínas da sua casa. Hesitava antes de pôr o pé em qualquer parte, como se receasse pisar membros queridos.

De repente, pareceu-lhe ouvir… Ouviu uma voz longínqua, mas tão afastada que parecia um sopro, um suspiro que o vento leva.

Parou.

Era uma voz subterrânea, uma voz de mulher… da sua! Ele, agora, reconhecia-a. O que ela dizia, ele não poderia precisar, mas era bem a sua voz acariciadora que o chamava do fundo de horrível escuridão onde ela se supunha eternamente sepultada.

—Hei de salvá-la! —dizia o conde. — E começou a trabalhar.

Escalavrando os joelhos, suando lágrimas, chorando sangue, as mãos em pedaços e as unhas arrancadas, durante uma hora levantou pedras com fúria. Ora era cascalho, ora era entulho onde se enterravam em vão as suas mãos crispadas, e a caliça em pó filtrava entre os seus dedos como água corrente. Ora eram blocos pesados que lhe custavam a mover e que recaíam, apertando-lhe as mãos nas suas pinças de ferro.

A voz longínqua guiava-o sempre. Tornava-se mesmo um pouco mais distinta. Quando, de repente, não a ouviu mais. Então o desespero fê-lo fazer prodígios.

Levantava blocos de pedra, que atirava para longe, arrancava vigas eriçadas de pregos. Aos pontapés, metendo os ombros, levado por um rasgo de energia feroz e exasperada, fez rapidamente um trabalho de gigante, e ia cair, de cansaço e inação, quando se deu um desmoronamento que o atirou para junto de um buraco que se escancarava, negro e misterioso. Abaixando, debruçado para dentro desse buraco sinuoso, estendendo o braço e às apalpadelas, procurou nas trevas. Encontrou qualquer coisa mole e fria. Apesar do horror que o fazia estremecer, teve a coragem de apalpar com as suas mãos tremulas aquelas carnes já geladas.

Percebeu primeiro uma boca aberta, uns olhos fechados, uma testa lisa e, depois, de repente, os seus dedos enterravam-se numa massa encrespada e sedosa, que ele reconheceu imediatamente, eram bem os seus magníficos cabelos! Só pelo tato revia ele claramente a sua cor. Acariciando na escuridão aquelas tranças que ele tantas vezes tinha penteado, disse em voz baixa:

—Meu amor… Se não estás morta, fala-me!

Só o silêncio lhe respondeu. “Visto que está morta — pensou —, é preciso que eu a tire desta sepultura estreita demais!”

Pegando nela, ao acaso, pelos ombros, começou a puxá-la para si. Três vezes a levantou, três vezes teve de largá-la.

Ela parecia-lhe terrivelmente pesada, como se um peso enorme estivesse amarrado aos seus pés.

Por fim, reunindo todas as suas forças, conseguiu com um só movimento tirar para fora da abertura uma massa que não ousou ver logo e que deitou perto dele, sobre as pedras. Mas, apenas voltou os olhos para aquele lado, soltou um grito cruel, um grito de louco, um destes gritos em que a alma pode bruscamente quebrar a sua cadeia e ir-se embora.

A sua mulher morta, com os cabelos soltos, um sorriso estático nos lábios, tinha nos braços um homem… um homem seminu… Ela o tinha apertado contra si, as mãos passadas atrás das suas costas e solidamente junta. E ele tinha um braço passado em volta da cintura deia, enquanto que, com a sua mão esquerda, pendente, apertava uma rosa branca que ainda não estava murcha.

O conde tinha caído de joelhos. Num segundo, mediu toda a extensão da sua vergonha. Os anos de amor e de alegria, viu-os ele subitamente esclarecidos, na sua cruel realidade, enxovalhados, manchados com o seu castigo de palavras mentirosas e de beijos enganadores, e sentiu-se desfalecer ao sentir assim em pleno rosto a bofetada do adultério.

Calmo, aproximou-se e debruçou-se para ver os traços daquele que tinha recebido o ultimo suspiro e a última declaração de amor da esposa falsa, mas recuou cheio de repugnância: a cabeça do homem, esmagada, quase separada do tronco, não era mais do que um amontoado de carne sangrenta e empastada. Assim, a Vida tinha protegido os seus secretos e criminosos amores, e eis que a Morte parecia ainda favorecê-los, não entregando ao marido ultrajado senão o cadáver mutilado, desfigurado, do amante!

Ele olhou de novo, procurando um indício, um sinal que pudesse fazer brotar das trevas um nome, o nome ambicionado pelo seu ciúme, pelo seu ódio! Não encontrou nada. As mãos, brancas, não tinham anéis. O corpo, esbelto e elegante, parecia de um homem ainda moço Quase nu, exibia-se com um soberbo impudor na atitude voluptuosa em que a morte o tinha prostrado. Era um cadáver impenetrável, decidido a guardar o seu segredo.

O conde interrogou os lábios imoveis de sua mulher, que tantas vezes deviam ter deixado passar o nome do amante; ficaram mudos. Numa orgulhosa oração entrecortada de blasfêmias, intimou Deus a dizer-lhe imediatamente esse nome detestado; Deus não respondeu. Só, do alto da sua parede, a rola arrulhou na sua gaiola dourada.

Se o pássaro de amor fosse falar… Ele devia saber! O conde esperou, a rola calou-se.

Então, depois de ter passado as mãos pela fronte com gestos automáticos, o conde abaixou-se, pôs um joelho sobre o corpo de sua mulher e, mantendo-a assim, quis separá-las dessas carnes de homem, dessas carnes nas quais o Amor e a Morte a tinham crucificado. Foi longo e difícil. Tanto valia tentar desatar serpentes ou arrancar as heras que se agarram com voluptuosidade ao tronco dos velhos carvalhos! Enfim, os braços inteiriçados cederam de um lado e do outro, os membros estalando, distenderam-se, e o marido ultrajado, pondo termo a esse odioso abraço, retomou vitoriosamente o corpo da sua mulher ao cadáver do amante que ainda lho disputava.

Depois, sentou-se entre esses dois seres, como um carrasco, e esperou o dia.

Ao romper da aurora, com a ajuda de alguns camponeses, enterrou sua mulher à sombra de uma pequena figueira num jardim que ficava próximo. O resto do dia percorreu a ilha, fazendo parar os soldados, os operários, toda a gente que encontrava e levando-os diante do cadáver, de horrível aspecto, de um homem cuja cabeça estava esmagada. Ele dava mostras da mais profunda dor. Julgava — dizia ele — ter encontrado ali o corpo de um amigo querido, mas não estava absolutamente certo que fosse ele, e prometia vinte mil escudos a quem pudesse dizer lhe com exatidão o nome do morto.

Apesar da enormidade dessa quantia, ninguém pôde constatar a identidade do cadáver.

O conde mandou-o enterrar separadamente, à sua custa, num canto do cemitério de Casamicciola.

Desde então, procura sem descanso esse nome, esse nome que ele está condenado a nunca saber, menos ciumento do homem — que em vida lhe tinha roubado o coração de sua mulher — do que do cadáver misterioso que tão insolitamente o enganou.


Fonte: “Fon-Fon”/RJ, edição de 16 de maio de 1914.

 

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