A CARTA - Conto Clássico de Mistério e Horror - Peter MacMaerty

A CARTA

Peter MacMaerty

(Séc. XX)

Tradução de autor anônimo do séc. XX


A despeito da fé revelada até por alguns ilustres sábios, jamais cri, nem creio, nos fenômenos chamados de espiritismo. Sustento que tais fenômenos (quando não são devidos ao ardil) não passam de manifestações de forças puramente físicas, que nossos atuais meios de indagação científica ainda não puderam definir. No caso que vou narrar, não se destrói minha convicção; embora os adeptos do espiritismo possam encontrar nele uma confirmação de suas teorias, os adversários darão uma explicação mais aceitável e mais natural.


Há mais de dez anos que isto aconteceu. Eu vivia, então, no campo. E, no sossego de uma graciosa casinha, me dedicava, com carinho e calma, a certos estudos prediletos. Que diferença entre aquela e a vida agitada que levei depois!

Entre aquela maravilhosa riqueza de ar, de luz e de tranquilidade, não podia faltar o amor. Em uma clara manhã de abril, conheci Evelin Steel. Era uma jovem que não tinha ainda vinte anos, alta, delgada. Em seu rosto perfeitíssimo, sempre pálido, vivia o resplandor de seus olhos azuis. Seus cabelos eram longos e loiros. Vestia-se sempre de azul-claro, um azul tênue como o das sutilíssimas veias que lhe sulcavam a carne. O vê-la sempre suscitava em mim uma impressão de fragilidade. Julgava encontrar-me em frente a um ser psicofísico especial; e quando Evelina Steel falava, com aquela voz docemente estranha, quase como em sonhos, suas palavras brotavam, mais que de sua formosa boca, de suas pupilas, de sua fronte de marfim, de seus formosos cabelos, enfim, de toda a sua pessoa.

Como podia eu ter-me enamorado daquela jovem? Eu, que desejara sempre uma mulher vivace, inquieta, veemente, que me abraçasse com o fogo inextinguível de sua exuberante vitalidade, como tinha podido, repito, apaixonar-me por Evelin?

Dentro de pouco tempo, a paixão nos envolveu. Decorreram inolvidáveis dias na frescura do bosque, sonhando infinitas ternuras; talvez, entre nodosas plantas, entre o verde acentuado, dançassem as sílfides em meio da gritaria dos gnomos. Mil trompetas de prata acompanhariam, decerto, a fantástica dança. Faunos briosos, aboletados sobre ramos e muros, ensurdeceriam o ambiente com o som de suas zamponas1.

Por que, por que pensava eu nisto? Eram tão azuis as pupilas de Evelin Steel!


*


Um dia, sem que ninguém soubesse o motivo, Evelin suicidou-se. Encontraram-na pendurada numa árvore, a um canto do jardim. A longa trança de seus cabelos castanhos formava o mudo assassino.

Eu quis assistir ao seu sepultamento e compareci ao seu enterro, embora as pernas apenas me sustentassem. Quando ouvi o ruído da primeira pá de terra atirada sobre o branco ataúde, senti — estou certo —, senti um forte murro no ombro direito, e virei-me bruscamente. Atrás de mim, porém, não havia ninguém.

É impossível descrever meu pesar pelo suicídio da estimadíssima jovem. Durante vários dias, permaneci encerrado em minha casa, chorando, relendo as poucas cartas que ela me enviara nos raros dias que nos tínhamos visto.

“…Penso em nossa futura casinha. Entrará tanto sol pelas janelas, que iluminará nossa dourada paixão…”

“…Por que me queres tanto? Por que, quando me acariciam tuas mãos trêmulas, teus olhos se velam de pranto?…”

“…Esta noite não podia dormir. Os cabelos me incomodavam. Dir-se-ia que sobre o rosto eu tinha uma teia de aranha de luzentes fios. Dava-me impressão de que, sobre meu travesseiro, pousava outra cabeça. Parecia-me ter a meu lado uma boca cálida, demasiado cálida…”

Relia suas estranhas cartas, tão semelhantes a suas palavras. Depois, as reuni todas. Eram catorze. Atei-as e as pus em minha secretária, guardando-as religiosamente.

Havia chegado a noite. O céu estava tão cheio estrelas que parecia não poder sustentá-las. Da campina me chegava o incessante canto do grilo. Deitei-me vencido pela dor.


*

Chegou a madrugada. Do leito, eu divisava o jardim acariciado por uma luz perolada. Sobressaltei-me: uma figura sutil, envolta em gazes azuladas, caminhava levemente, sem rumor, por meu aposento. Aproximou-se da secretária, abriu uma das caixas, e eu vi, distintamente, duas mãos incrivelmente longas, envoltas em uma estranha luz azul dourada, revolverem as cartas de Evelin.

Sonhava, por acaso? Não, não sonhava! Não via, porventura, o jardim? Não percebia o enervante perfume da vegetação? Quis reagir: não pude.

Minha imobilidade dependia de uma inexplicável paralisia de vontade, ou, talvez, de uma repentina paralisia do corpo?

Eu via sempre aquela diáfana figura azul. Mas via-a perfeitamente, realmente? Meus olhos estavam abertos ou fechados? A figura desapareceu, mas eu continuava vendo a habitação, os móveis, o jardim…

Pouco depois, a porta se abriu. Entrou meu empregado com o café. Quis chamá-lo, fazer algum sinal; não pude. Ouvi que ele me chamava. Senti que me sacudia. Vi-o empalidecer e pedir socorro.

Por quê? Por que não podia mover-me? Veio o médico. No entanto, eu pensava que deviam jugar-me morto! Um terror indizível me invadiu quando vi o doutor sacudir-me a cabeça. Ah! Por Deus, não estou morto! Fiz um esforço sobre-humano para dar sinais de vida. Impossível! Experimentei um certo alívio quando o médico aproximou de meu braço uma seringa. Desde que não se tratasse de um diabólico preparado para evitar a rápida decomposição de meu corpo cadáver…

Muita gente entrou em meu aposento. Todos os olhares demonstravam doloroso espanto.

Notei que o medo me fazia levantar as pálpebras. Mas, então, como havia suspeitado, eu via com os olhos cerrados!

De repente, um grande cansaço me invadiu eu compreendi que me adormecia. Quando me despertaria? Onde? Pensei, aterrorizado, que talvez me despertasse na sepultura. Mas o médico não notava que meus cabelos se eriçavam? Não via que minha fronte estava coberta de suor frio?


*


Meu estado de catalepsia durou vários dias. Quando despertei, achava-me na sala de uma clínica.

A convalescença foi breve. Toda gente me olhava como se eu fosse um fenômeno e, embora haja tentado recuperar o meu caráter jovial, pude observar que se me aproximavam amedrontados.

Resolvi mudar de ares pelo menos por algum tempo. Essa era, também, a opinião do médico.

Resolvi pôr em minha maleta as preciosas cartas da inolvidável Evelina.

Toda uma deliciosa história de amor em quinze cartas azuis cheias de palavras boas e apaixonadas, que constituíam meu único tesouro. Agora, eu repassava mais uma vez aquelas páginas. Sobre saudade. Minhas mãos tremeram…

Uma, duas, três, quatro!…

Não, já eram catorze. Faltava uma. Aquela brave carta recordando um magnífico entardecer de junho.

“Uma luz entrava pelos postigos cerrados quando me disseste: Queres?”

Era a única missiva que teria podido manchar ante meus olhos profanos a pura recordação de Evelina. A única missiva que teria podido explicar o mistério do suicídio. Quem a roubara?


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O sugestivo e autêntico fato acima referido fora-me narrado pelo eminente doutor Rafael Derlize, sábio famoso por seu livro Guerra do Desconhecido.

Conhecendo a teoria de meu amigo, não pude, ao concluir ele a narração, deixar de fazer-lhe a seguinte observação:

—Mas esse é um fato inexplicável, um fato que, a despeito de sua ciência, o senhor não poderia definir, e que confirmaria melhor a tese dos espiritistas.

Derlize olhou-me um momento, sorrindo maliciosamente. Acariciou a barba e disse:

—Querido amigo, você se deixa facilmente impressionar! Os espíritos, creia-o, não se preocupam em roubar cartinhas perfumadas, embora estas comprometam sua póstuma reputação… No caso que referi, nota-se que o homem que sofreu a extraordinária visão, e o estado de catalepsia é, evidentemente, de um indivíduo física e psicologicamente anormal. Era um ser de cérebro normalmente são e até robusto. Ocorrida a morte de Evelin Steel, a deliciosa amiga, sofreu um sério desequilíbrio mental, chegando até a se fazer em parte responsável pela louca decisão de sua amada.

“Essa repentina e grave perturbação física pôs o organismo do homem nas condições mais propícias para sofrer a catalepsia e, ainda, o sonambulismo. Digo o sonambulismo porque é outro curioso fenômeno da esfera física, que comumente procede e acompanha a catalepsia. Aí está, pois, como aquele homem, durante o sono, caiu em estado de sonambulismo e, obcecado pela recordação da única missiva comprometedora, se levantou, procurou a perigosa folha e a destruiu… Depois, voltou ao leito e, sonhando, sofreu a estranha visão. Ao fenômeno de sonambulismo sucede outro muito mais grave: a catalepsia. É inútil acrescentar que de quanto ele fez durante o sonambulismo não terá nunca a menor recordação. Aquele homem, querido amigo, é um enfermo, um grave enfermo, candidato seguro ao manicômio!… — concluiu o doutor Derlize.


Fontes: “Fon-Fon”/RJ, edição de 2 de janeiro de 1926 e “A Pilhéria”/PE, edição de 6 de fevereiro de 1926.

Ilustração: Charles Fracis Horne (1870 – 1942).


Nota:

1Flautas de Pã.

 

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