AS TRÊS CABEÇAS DO POÇO - Conto Clássico Fantástico - Flora Annie Steel

AS TRÊS CABEÇAS DO POÇO

Flora Annie Steel

(1847 – 1929)

Tradução de Paulo Soriano


Havia em Colchester um rei valente, forte, sábio, famoso como um bom governante.

Mas, em meio à sua glória, a sua querida rainha morreu, deixando-lhe uma filha que se fazia mulher. Esta donzela era famosa em todo o mundo por sua beleza, bondade e graça. Ora, coisas estranhas acontecem, e o rei de Colchester, tendo ouvido falar de uma senhora que tinha imensas riquezas, quis desposá-la, embora a pretendida fosse velha, feia, de nariz adunco e mal-humorada; e tinha uma filha tão feia quanto a mãe. Ninguém soube explicar a razão, mas, apenas algumas semanas após a morte da sua querida rainha, o rei trouxe esta repugnante noiva à corte e casou-se com ela com grande pompa e festividades. A primeira providência da megera foi empeçonhar a mente do rei contra sua própria filha — que era linda, gentil e graciosa — por quem, naturalmente, a rainha a filha feias nutriam uma terrível uma inveja.

Quando a jovem princesa descobriu que seu próprio pai se voltara contra ela, cansou-se da vida na corte e ansiou por fugir àquela situação. Certo dia, tendo encontrado o rei sozinho no jardim, ajoelhou-se diante dele e lhe implorou a que lhe desse alguma ajuda e a deixasse sair pelo mundo em busca de fortuna. O rei concordou com isso e disse à sua consorte que preparasse a garota para a sua aventura de maneira adequada. Mas a invejosa só lhe deu um saco de lona com pão ázimo e queijo duro, além de uma pequena garrafa de cerveja.

Embora aquele fosse um lamentável dote para a filha de um rei, a princesa era orgulhosa demais para reclamar. Ela, então, pegou o que lhe davam, agradeceu e partiu em sua jornada por bosques e florestas, por rios e lagos, por montanhas e vales.

Por fim, chegou a uma caverna em cuja entrada, numa pedra, estava sentado um homem velho, muito velho, de barba branca.

Bom dia, bela donzela! — disse ele. — Para onde vai com tanta pressa?

Reverendo pai — responde ela —, sigo em busca de minha fortuna.

E o que você tem como dote, bela donzela — disse ele —, na sua bolsa e na sua garrafa?

Pão e queijo e cerveja, pai — disse ela, sorrindo. — O senhor gostaria de participar de algum deles?

De todo o coração — ele respondeu.

E quando tirou as provisões, o velho comeu-as quase todas. Mais uma vez, porém, ela não se queixou. Disse-lhe, apenas, que comesse o que precisasse, já que ele lhe era bem-vindo.

Ora, quando ele terminou, agradeceu muitíssimo à donzela.

Por sua beleza, bondade e graça, tome esta varinha — disse. — Em seu caminho, você encontrará uma sebe — espessa e espinhosa — que lhe parecerá intransponível. Mas bata-lhe três vezes com esta varinha, dizendo a cada vez: “Por favor, sebe, deixe-me passar” e isso lhe abrirá um caminho. Então, quando chegar a um poço, sente-se à beira dele; não se surpreenda com nada que possa ver; mas, tudo o que lhe pedirem para fazer, faça!

Dizendo isso, o velho entrou na caverna e ela retomou o seu caminho.

Passado algum tempo, chegou a uma sebe alta, espessa e espinhosa; todavia, quando bateu três vezes com a varinha, dizendo: ‘Por favor, sebe, deixe-me passar’, abriu-se-lhe um amplo caminho. Então a jovem chegou ao poço, à beira do qual se sentou.

Assim que o fez, uma cabeça dourada, destituída de corpo, afluiu à água, cantando enquanto chegava à superfície:



"Lave-me, penteie-me, ponha-me num banco para secar

E suave e lindamente observar os transeuntes.”



Certamente — disse ela, puxando seu pente prateado.

Então, colocando a cabeça no colo, pôs-se a pentear os cabelos dourados. Depois de fazê-lo, ergueu suavemente a cabeça dourada e a pôs sobre um banco de prímula para secar. Tendo feito isso, outra cabeça dourada apareceu, cantando enquanto vinha:



Lave-me, penteie-me, ponha-me num banco para secar

E suave e lindamente observar os transeuntes.”



Certamente — disse ela.

E, depois de pentear os cabelos dourados, pôs a cabeça dourada suavemente no banco de prímula, ao lado da primeira.

Então surgiu uma terceira cabeça no poço e disse a mesma coisa:



Lave-me, penteie-me, ponha-me num banco para secar

E suave e lindamente observar os transeuntes.”



De todo o coração — disse ela graciosamente e, depois de pôr a cabeça no colo e pentear seus cabelos dourados com seu pente prateado, lá estavam as três cabeças douradas enfileiradas no banco de prímulas.

A moça sentou-se para descansar e olhou para as cabeças, que eram tão belas e singulares. E, enquanto descansava, comeu e bebeu alegremente a escassa porção de pão ázimo, queijo duro e cerveja que o velho havia deixado para ela; pois, embora fosse filha de um rei, era orgulhosa demais para reclamar.

Então a primeira cabeça disse:

Irmãs, o que haveremos de desejar para esta donzela que tem sido tão gentil conosco? Eu desejo que ela seja tão bonita que há de encantar todos que encontrar.

Eu — disse a segunda cabeça —, desejo-lhe uma voz que excederá a do rouxinol em doçura.

E eu — disse a terceira cabeça — desejo-lhe que tenha a ventura de se casar com o maior dos monarcas reinantes.

Obrigada de todo o coração — diz ela. — Não acham, contudo, que seria adequado pô-las de volta no poço antes de retomar o meu caminho? Lembrem-se de são de ouro e que os transeuntes podem furtá-las.

As cabeças concordaram. Ela, então, as colocou de volta. E quando as cabeças douradas agradeceram por sua gentil intenção e se despediram, a princesa seguiu viagem.

Ora, ela não viajara muito antes de chegar a uma floresta onde o rei daquele país caçava com seus nobres; e quando a alegre comitiva, a cavalo, passou pela clareira, ela recuou para evitá-los. Mas o rei, bastante surpreso com a sua beleza, a avistou e parou seu cavalo.

Bela donzela — disse ele, — quem é você e para onde vai pela floresta sozinha?

Sou filha do rei de Colchester e sigo em busca de fortuna — diz ela, e sua voz era mais doce que a do rouxinol.

Impressionado com a jovem a ponto de sentir que não lhe seria possível viver sem ela, o rei saltou do cavalo e, caindo de joelhos, implorou para que ela se casasse com ele sem demora.

E ele implorou e suplicou com tanta ênfase que ela finalmente consentiu. Assim, com toda gentileza, montou-a na garupa de seu cavalo e, ordenando que os caçadores o seguissem, regressou ao seu palácio, onde decorreram as festividades de casamento com toda a pompa e alegria possíveis.

Então, ordenando a saída da carruagem real, o feliz casal partiu, em visita nupcial, ao rei de Colchester. E é possível imaginar a surpresa e a alegria com que, após uma ausência tão curta, o povo de Colchester viu sua amada, bela, gentil e graciosa princesa retornar, toda adornada com ouro, em uma carruagem, como a noiva do rei mais poderoso do mundo.

Os sinos ressoavam, bandeiras tremulavam, tambores tocavam, o povo gritava e tudo era alegria, exceto para a rainha horrorosa e sua filha feia, que estavam prestes a explodir de inveja e malícia; pois, note-se bem, a donzela desprezada estava agora acima de ambas e ia à frente delas em todas as cerimoniais da corte.

Finda a visita, tendo o jovem rei e sua noiva voltado ao seu país, para viverem uma eterna felicidade, a princesa feia e mal-humorada disse à sua mãe, a rainha feia:

Também irei pelo mundo em busca de minha fortuna. Se aquela garota monótona, com seus modos mesquinhos, conseguiu tanta coisa, o que eu não poderei conseguir?

Então a sua mãe concordou e forneceu-lhe vestidos de seda e peles, e deu-lhe como provisões açúcar, amêndoas e doces de todos os tipos, além de um grande jarro de saco de Málaga. No total, um dote real adequado.

Munida disto, ela partiu, seguindo o mesmo caminho de sua meia-irmã. Logo encontrou o velho de barba branca, que estava sentado numa pedra à entrada de uma caverna.

Bom diz — diz ele. — Para onde vai com tanta pressa?

O que tem você com isto? — ela respondeu rudemente.

E o que você tem como dote na bolsa e na garrafa? — ele perguntou baixinho.

Coisas boas com as quais você não será incomodado — ela respondeu atrevidamente.

Você não vai oferecer nada a um velho homem? — ele perguntou.

Então ela riu.

Nem uma mordidinha, à guisa jantar, para que não engasgue, embora tal desfecho não me pareça deveras importante — respondeu ela, balançando negativamente a cabeça.

Então, a má sorte a acompanhará — vaticinou o velho, enquanto se levantava e entrava na caverna.

Então ela seguiu seu o caminho. Tempos depois, chegou à sebe espessa e espinhosa. E, vendo uma brecha, tentou passar; mas, assim que estava no meio da sebe, os espinhos se fecharam em torno de si, de modo que ela ficou completamente arranhada e dilacerada antes de conseguir o caminho. Depois, com o sangue escorrendo, ela foi até o poço e, vendo água, sentou-se à beirada para lavar-se. Mas, assim que mergulhou as mãos, afluiu à superfície uma cabeça dourada, que cantava:



Lave-me, penteie-me, ponha-me num banco para secar

E suave e lindamente observar os transeuntes.”



Algo improvável — diz ela. — Vou me lavar.

E, tendo disto isto, desferiu-lhe uma tão forte pancada que a cabeça dourada afundou.

De pronto, uma segunda cabeça surgiu, cantando enquanto afluía:



Lave-me, penteie-me, ponha-me num banco para secar

E suave e lindamente observar os transeuntes.”



Eu não! — zombou. — Vou lavar as mãos e o rosto e jantar.

Então ela desferiu, com a garrafa, um crudelíssimo golpe na segunda cabeça, submergindo-a.

Mas quando as cabeças voltaram à superfície, encharcadas e pingando, a terceira cabeça também apareceu, cantando enquanto vinha à superfície:



Lave-me, penteie-me, ponha-me num banco para secar

E suave e lindamente observar os transeuntes.”



A essa altura, a princesa feia já estava limpa e, sentada no banco de prímulas, tinha a boca cheia de açúcar e amêndoas.

Eu não… — disse ela tão bem quanto pôde — sou lavadeira nem cabeleireira. Então, levem isso para lavar e pentear.

Dizendo isto, e esvaziando o saco de Málaga, atirou a garrafa vazia às três cabeças.

Mas, desta vez, elas não afundaram. Entreolharam-se e disseram:

Como vamos agourar essa garota rude por causa de sua falta de educação?

Então a primeira cabeça disse:

Agouro que à sua feiura se acrescentem manchas em seu rosto.

E a segunda cabeça disse:

Agouro que fique rouca como um corvo e fale como se estivesse com a boca cheia.

Então, a terceira cabeça disse:

E eu agouro que fique feliz em se casar com um sapateiro.

Então as três cabeças afundaram no poço e não foram mais vistas; a princesa feia seguiu seu caminho.

Mas, vejam só! Quando ela chegava a uma cidade, as crianças fugiam de seu rosto feio e manchado, gritando de medo, e, quando ela tentava contar-lhes que era filha do rei de Colchester, sua voz estridia como a de uma grande codorna. Sua voz era rouca como a de um corvo, e as pessoas não conseguiam entender uma palavra do que ela dizia, porque ela falava como se estivesse com a boca cheia!

Ora, na cidade, havia um sapateiro que, não há muito tempo, havia consertado os sapatos de um pobre e velho eremita; e este último, não tendo dinheiro, pagou o trabalho com um unguento maravilhoso, que curaria manchas no rosto, e, ademais, com um medicamento que eliminaria qualquer rouquidão.

Então, vendo a princesa miserável e feia em grande sofrimento, ele foi até ela e deu-lhe algumas gotas de sua garrafa; e então, compreendendo, por seu traje rico e sua fala mais clara, que ela era de fato filha de um rei, disse-lhe astuciosamente que, se ela o aceitasse como esposo, ele se encarregaria de curá-la.

Qualquer coisa! Qualquer coisa! — soluçou a miserável princesa.

Então eles se casaram, e o sapateiro partiu imediatamente com sua noiva para visitar o rei de Colchester. Mas os sinos e os tambores não tocaram e as pessoas, em vez de gritar alegremente, desataram a gargalhar diante do sapateiro vestido de couro e de sua esposa vestida de sedas e cetins.

Quanto à rainha feia, esta ficou tão enfurecida e desapontada que enlouqueceu e se enforcou de raiva. Ao que o rei, muito satisfeito por se livrar dela tão cedo, deu cem libras ao sapateiro e ordenou-lhe que cuidasse de seus negócios com sua noiva feia. E isto ele recebeu com grande satisfação, pois cem libras significam muito para um pobre sapateiro. Então eles foram para uma remota região do reino e viveram infelizes por muitos anos, ele remendando sapatos e ela fiando a linha para ele.


Ilustração de Arthur Rackham (1867 – 1939).





 

Comentários