CONTO DOS TRÊS BEIJOS - Conto Clássico Fantástico - Padre Manuel Bernardes

CONTO DOS TRÊS BEIJOS

Padre Manuel Bernardes

(1644 – 1710)



É digno de admiração o caso que traz o padre Martim Del Río1, onde se vê como, por cobiça de ouro, deu um homem ósculos no demônio, e esteve a pique de ir ao inferno.

No ano de Cristo de mil quinhentos e vinte, em Basileia, cidade principal de Alemanha, para a parte da antiga Augusta dos Rauracos, de cujas minas cresceu depois a mesma Basileia, há uma gruta ou caverna subterrânea onde, não sei por que modo, entrou certo homem simples, alfaiate de ofício, e caminhou pelo interior dela maior espaço do que outros curiosos até então tinham andado, e depois contava estupendas cousas que ali vira.

Levando na mão aceso um círio bento, foi ardendo, acompanhado somente da sua simplicidade, até chegar a uma porta de ferro; depois da qual entrou em várias abóbadas, e de uma e outra veio a sair a uns jardins e hortas ameníssimas, no meio das quais estava uma aula2 magnificamente ornada. Entretanto, nesta viu uma donzela formosíssima com os cabelos soltos, e na cabeça coroa de ouro; mas, da cintura para baixo, perdida a figura humana, acabava em horrenda e escamosa serpente.

Esta, pegando-lhe pela mão, o levou a um grande guarda-roupa, ou armário de ferro, sobre a qual estavam de bruços dois ferocíssimos rafeiros3, que, com seus terríveis ladridos, afugentavam a quem se chegava. Porém, a donzela, com ação de quem os ameaçava, os fez calar. E logo tirando do pescoço um molho de chaves que trazia, abriu com uma delas aquele escritório, e tirou grande quantidade de varias moedas de ouro antigas, de ouro e prata, e também de cobre, das quais deu não poucas ao tal homem, que ele depois mostrava.

E começou depois a contar-lhe, com grande sentimento, como ela, sendo filha de reis, e mui estimada por seu alto sangue e singulares prendas de discrição e formosura, depois, por certas cousas, fora antigamente transformada naquele meio monstro que via, à força de conjuros e imprecações da arte magica; e que sabia, segundo a fórmula do encantamento, que nenhum outro remédio havia para tornar à sua primeira figura, senão o de receber três ósculos de algum mancebo também virgem; porque, feita esta circunstancia e diligência, se desposaria com o seu libertador, dando-lhe em dote o grande tesouro que naquele lugar estava escondido, e destinado para aquele ditoso, que por este modo a desencantasse. Então o homem, instigado da cobiça, chegou a dar-lhe um ósculo, e o monstro, neste passo, pelo demasiado contentamento, dizia ele, que sentia por avizinhar-se a sua liberdade, fez tão horrendas visagens, que temeu o despedaçasse. E, todavia, serenando-se outra vez o monstro, se atreveu a dar-lhe segundo ósculo; mas como viu maiores mostras de furor e fealdade, não quis dar o terceiro ósculo.

Até aqui o relator da história não dizendo se contara também este homem o modo da sua saída. Somente diz que fora levado de outros amigos a uma casa de Baco e Vênus4; e depois nunca mais pudera atinar com a entrada da gruta. Bem convence este prodigioso caso o nosso proposto assunto, de que a humana cobiça chegou a tal excesso, que até no mesmo inferno busca ouro.


NOTAS:

1Martin Anton del Río (1551 – 1608), teólogo jesuíta holandês.

2Palácio.

3Cães sem raça definida.

4Prostíbulo.

 

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