O DESTINO - Conto Clássico de Horror - Alfonso Hernández-Catá
O DESTINO
Alfonso Hernández-Catá
(1885 – 1940)
Tradução de autor anônimo do séc. XX
A conversação havia amolecido como sempre sucede quando se expõem ideias abstratas ante um auditório heterogêneo. Ainda mais: a conversação foi uma série de diálogos em torno do livre-arbítrio, que concluíram polarizando no juiz e no cônego, os dois faladores mais apaixonados da roda. As senhoras bocejavam resignadamente, e alguns pareciam esperar a menor palavra frívola para se apegarem a ela e multiplicá-la. Foi então que o Dr. Rovira interveio:
—Eu não me atrevo a perder tempo em explanar teorias novas — disse. — Assim como São Marcos pretendeu tratar todas as coisas por palavras, eu gosto de tratá-las por anedotas; e creio, por tendência profissional, que todas essas questões de índole filosófica se hão de resolver algum dia, porém resolvidas de um modo científico, graças a múltiplas experiências, a inumeráveis tentativas. Vontades do temperamento, direções transmitidas pela força misteriosa e caprichosa da hereditariedade, orientações engendradas pela máquina orgânica a funcionar melhor ou pior, encerram em si grande parte desse livre arbítrio, que nos faz, muitas vezes, na vida e na morte, seres bons ou maus. Porém, há, também, em nosso destino, alguma coisa independente do nosso Eu, alguma coisa que nos arrasta a uma vontade inesperada, poderosa e irônica, quando não cruel. E chama-se a sorte, boa estrela, providência, casualidade ou Deus — se Deus procede, segundo a Bíblia, e o filosofo Leibnitz nega, por desígnios particulares —, essa potência é quem estabelece sobretudo a relação do tempo necessário para que a fortuna ou a desventura ocasionadas pela tendencia dos seres se realize.
—Vai o senhor defraudar o crédito de curiosidade, que abrimos, com outra conferência ou outro sermão? — disse uma das senhoras. — Isso não vale.
O doutor sorriu, parou um instante para olhar os grandes olhos escuros, que se moviam como pérolas negras em pingentes, e respondeu:
—Esse crédito aberto a meu favor, depois de uma palestra tão… transcendente, constitui, e já por si, quase um argumento para demonstrar a injustiça dos destinos. Enfim, procurarei merecê-lo mostrando-lhe a ficha oferecida; serei sóbrio para compensá-los da lentidão do preâmbulo. A anedota se reduz a um conto, às vezes terno e, outras, terrível. Mas, como em todos os contos, pode-se aplicar sua significação ideológica segundo o sentimento e a inteligência de quem o analisa. Eis o que aconteceu:
Há alguns anos, no balneário do Guardamar, chamou-me a atenção um grupo composto de uma senhora e um cavalheiro, que levavam pela mão uma criança que andava mal. O contraste das indubitáveis linhas de dor, impressas nas fisionomias, com a alegria da praia, com os prazerosos gritos dos banhistas, com a tibiez do ambiente, foi, sem dúvida, o que me levou a perguntar por eles. Um veranista sentou-se junto a mim, debaixo da sombra imensa que caía sobre o ouro úmido da areia, um polígono de sombra, e contou-me a história:
— Casados havia já alguns anos, o cavalheiro e a senhora se necessitavam, para nada lhes faltar, de um filho. Ricos, com generosidade e prazeres finos, desses que explicam a riqueza, tinham também, para amainar as tréguas, entre os dias exaltados de paixão, a riqueza moral de um mútuo respeito, a afeição profunda e quase assexual, única base capaz de sustentar, sem perigo, as uniões duradouras. A esperança de um filho era a ideia constante dos dois.
A necessidade de dar ao amor uma nova forma, para que ela pudesse, passada a brasa do carinho, ficar purificada pela falta total do egoísmo. E como se a providência lhes quisesse dar na maturidade o fruto, o menino veio quando ambos desejavam, pois estavam na quadra florida da vida, em que todos os prazeres do mundo parecem feitos para deleitar os nossos sentimentos, e na qual possuímos tal plenitude vital, que nossos olhos abrangem os limites mais importantes do mundo.
Foi, pois, quase no outono de suas existências, na primavera de um ano, que aquele amor frutificou num ser rosado, choroso, lindo e cheio de obscuros destinos. Os dois esposos, muitas vezes, se dobraram sobre ele, nesse gesto em que tão bem se expressam um carinho infinito e uma incerteza infinita. As mãos femininas, tão ávidas de maternidade, que aos vinte e sete anos voltavam a brincar com bonecas, cuidavam com esmero do filho, guiavam seus primeiros passos, apontavam-lhe os primeiros traços das coisas belas e úteis. O mundo tomou para os dois um sentimento mais estreito, porém mais intenso. A todos os momentos rivalizavam para dar aquele ser, essência de suas vidas, os alimentos necessários para a matéria e para a alma. Ele ensinou-o a ler; ela o ensinou a manter o corpo esbelto e limpo. Ele se ufanou a pensar em sua riqueza, em trabalhar para dar ao filho o exemplo de lei dos homens. Ela afinou sua ternura e ensinou-lhe a satisfação de fazer o bem e o milagre de converter o trabalho em recreio. Não era possível vê-los sem admirá-los, sem tomá-los, depois, para modelo. Se se falava de seres felizes, apontavam-nos:
— São ditosos e merecem sê-los.
Até os desconhecidos voltavam-se prazerosamente para vê-los passar. Constituíam uma lição viva e risonha uma meta de moral. E, à medida que crescia, o menino se ia parecendo com o que havia de melhor em ambos. Este é o lado inefável da história, o inverso da medalha. Agora vejam o reverso.
Um dia, o menino amanheceu doente. Sorriem? Veio o sarampo, a difteria, a meningite terrível, intervindo? Fazem mal em antecipar-se. Não foi nenhuma dessas enfermidades que matam as crianças. A sorte devia seguir radiantes para eles, sem descer para o plano inclinado das desditas, das noites em claro, junto à cama, de alma suspensa do olhar do médico para decifrar o diagnóstico impenetrável. O menino amanhecera, unicamente, com os olhos congestionados: porém, o carinho paterno teve sobressaltos. A caudal de intranquilidade caiu sobre os seus corações e, no entanto, era um simples acidente pueril, que um pouco d'água boricada curaria. Em seguida, levaram o menino ao oculista. Até aqui, ninguém sentiu o fundo anedótico de minha narração; não é verdade? É inadequada para servir de alegoria a uma conversação sobre o azar, sobre o destino, sobre o digitus Dei1. Nada notaram que justifique meu preâmbulo. E, todavia, finge-se agora, pois num segundo se ilumina a vida dos protagonistas; num momento, quando há de terrivelmente absurdo ou de lógica também terrível, o arcano do destino se ilumina. Resolvem levar o filho a um especialista e escolhem entre os mais célebres. Inclinados sobre a lista, transformada em oráculo, vão percorrendo nomes: no fim, parecem hesitar entre dois. Um deles é o de um velho médico, cheio de experiência e propenso a não dar importância às coisas; o outro, mais moço, tinha fama de áspero, de extravagante, porém fazia curas surpreendentes. A dúvida durou um momento, como se a mesma mão os impelisse, e decidiram pelo último. Olharam-se?! Em uma numerosa lista foi eleito um só. Apenas, um dia antes, conheciam pouco mais que seu nome. O médico os ignorava por completo, e o médico também ignorava a existência do menino. São duas vidas que vão ter uns poucos momentos de convívio, seguindo depois sua trajetória, e olvidando-se a… Isso deve ser. Isso é em casos infinitos. Porém... A vontade, oculta sob as aparentes casualidades, não quer assim. Os pais escolhem uma hora e levam o filho, não ao consultório, mas à casa do medico, onde lhes dizem que este está ha vários dias doente e não recebe. Por que não descem as escadas e vão procurar o outro, o bom velho que não dá importância às coisas? Por que uma voz tutelar, não aconselha suas almas? “Não chameis. Não insistais! Parai ante o providencial obstáculo!”. Mistério angustioso. Mistério do destino. Eles insistem, rogam, logram afinal entrar e não se surpreendem de ver uma cara sisuda, nem da aspereza com que o médico leva o menino para uma sala próxima.
De súbito, ouvem um grito, um grito horrível, um desses gritos que penetram os ouvidos até as entranhas, e os dilatam e paralisam por momentos. E esse grito era de seu filho! Quando entram, o pobre ser nascido para a ventura estava exânime. Duas feridas brancas e roxas ocupavam o lugar de seus claros olhos azuis, que o médico acabava de apagar para sempre, com uma tesoura, num ataque de loucura incurável e furiosa, cuja primeira ação se manifestou naquele momento, precisamente naquele instante, nem antes nem depois.
Fontes: “Fon-Fon”/RJ, edição de 2 de janeiro de 1926.
Ilustração: Varela de Seijas (? – 1930).
Fizeram-se breves adaptações textuais.
Nota:
1Dedo de Deus.
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