O DOMINÓ VERMELHO - Conto Clássico de Terror - Caius Martius

O DOMINÓ VERMELHO

Caius Martius1


Aborrecido dos solavancos que levara pelas ruas, resolvi visitar um clube.

Eu estava fora de mim, num estado de semi-inconsciência.

Sentia-me embriagado, mas, creia o leitor, que não ingerira bebida espirituosa.

Depois que os médicos me declararam haverem constatado em mim uma dilatação da aorta, abstive-me de beber. Não que a morte me apavorasse, mas unicamente para satisfazer aos amigos.

A embriaguez que experimentava era, pois, oriunda dos lança-perfumes ou, talvez, do cheiro da carne que, nestes dias de Carnaval, se vende barato, de graça, quase, embora custe muito caro depois.

Penetrei no grande salão feericamente iluminado; sentia-se ali uma atmosfera de chumbo. Odor de flores com odor de corpo se misturavam, se fundiam, asfixiavam a quem vinha de fora.

Dançava-se; não se dançava, saltava-se, pulava-se — verdadeiro pandemônio. Vozes de falsete, risos discretos, jazz-bands por todos os cantos — uma alucinação.

Procurei um lugar onde a massa fosse menos compacta.

Descobri uma janela que dava para o pomar magnífico: poderia gozar um pouco de frescor da noite.

Lá fora, a loucura atingira ao auge. No clube, a loucura não era menor.

Aproximou-se de mim um dominó2 vermelho-escarlate. Do seu ombro esquerdo pendiam fitas amarelas berrantes.

Tocou-me de leve no peito e pediu-me o acompanhasse.

Era uma mulher. Diziam-me os seus olhos através da mascara: traíam-nos os contornos de plástica admirável.

Também eu estava mascarado; também eu envergava um dominó negro, negro como uma noite crepuscular.

Sem dizer palavra, ofereci-lhe o braço e deixamos aquele salão onde reinava a alegria, o delírio…

Ao contato daquela mãozinha microscópica que se me apoiava no ombro, experimentei uma sensação indescritível. Um calafrio agradável me percorreu todo o corpo. O meu sangue se transformara, de repente, em lavas. O peito arfava-me. Despertaram os instintos da carne. Só tinha um pensamento: gozar. Entregar-me a uma orgia digna dos tempos romanos.

Descidas as escadas, tomamos um automóvel. Não podia mais resistir. Mandei que o carro corresse, corresse vertiginosamente... qualquer direção. Enlacei aquele corpo esguio e voluptuoso. Vergara-se, quebrando-se, quase, à pressão formidável dos meus muculos. Só os lábios rubros se me apareciam descobertos. Sorvia beijos sobre beijos… A loucura pouco a pouco de mim se apoderava. Quis arrancar-lhe a máscara. Queria devorar de beijos o rosto belo e encantador que, certamente, se escondia sob o pano preto.

O dominó, com uma força sobre-humana, pegou-me os pulsos, subjugando-me.

— Quer saber quem sou eu? Está bem, far-lhe-ei a vontade.

E, enquanto com uma das mãos me sustinha manietado, com a outra ia retirando a máscara.

Apareceu-me, horripilante, um rosto horrendo, hediondo, que me fizera gelar o sangue nas veias.

—Ah! Ah! Quer saber quem sou? Sou o que resta das tuas ilusões.

Loucura, tudo loucura!

Eu estava doido. Coisas do Carnaval!


Fevereiro, 1927.


Notas:

1Pseudônimo de Cláudio de Mendonça (1888 – 1954).

2 Fantasia composta de máscara e manto com capuz.

 

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