A BUENA DICHA - Conto Clássico de Terror - Eugène Fourrier

A BUENA DICHA

Eugène Fourrier

(c. 1840 —1903)

Tradução de autor desconhecido do séc. XX


À idade de doze anos, Lahurec nada tinha de formoso. Entretanto, sua mãe acreditava que ele era a mais admirada criatura da comarca.

A boa mulher vivia perto de Saint-Briene, em uma cabana situada nas imediações do mar. Era viúva, porquanto seu marido havia morrido ao regressar da pesca em Terra Nova.

Vivia afundada na pobreza, mantendo-se miseravelmente da venda de mariscos que recolhia na praia. Seu filho a ajudava em sua tarefa com proveito, na medida de suas forças.

Uma noite de inverno, bateu à porta da cabana uma cigana. A viúva, apesar de sua pobreza, a acolheu generosamente e deu-lhe parte de sua modesta ceia.

A cigana, reconhecida, lhe disse, antes de partir:

—Para demonstrar-te a minha gratidão pela tua generosa hospitalidade, vou dizer a buena-dicha de teu filho. Sei ler o futuro nos astros e nas mãos.

Ato contínuo, segurou a destra do menino e, depois de tê-la examinado atentamente, exclamou

— Que fortuna a vossa! Eis aqui uma criatura a que estão reservadas as maiores honras. Será tratado com as mesmas distinções outorgadas às mais eminentes personalidades.

—É possível! — disse a mãe, persignando-se, presa de supersticioso temor.

—Cumprir-se-á minha profecia — concluiu a cigana ao retirar-se.

Aos treze anos, partiu o rapaz para a pesca do bacalhau, na barca de seu tio Irone. Em pouco tempo, era um habilíssimo pescador. E, quando teve que ir prestar serviço militar, o oceano não tinha segredos para ele.

Depois de haver abraçado sua mãe, se dirigiu ele a Cherburgo, onde foi incorporado a bordo do “Invencível”.

Acostumado a obedecer sem hesitar e sem responder, depressa ficou ao corrente das obrigações.

Os incidentes ocorridos, por aquela época, em Aname determinaram a expedição de Tonquim. O “Invencível” formou uma esquadra comandada pelo almirante Courbet.

As balas chinesas respeitaram a vida de Lahurec. Mas o desditoso jovem contraiu as febres do país e foi internado no hospital de Hanói. Apesar de seu rústico temperamento, esteve muito grave, e andou perto da morte.

Logo que entrou no período da convalescença, foi enviado à França, embarcando no “Annamita”, juntamente com elevado número de oficias e de soldados, igualmente atacados, como ele, pelas enfermidades contraídas no mortífero clima de Tonquim.

A travessia foi muito penosa e durante ela o estado de Lahurec se agravou de modo extraordinário. E o infeliz morreu entre Adem e Toulon. Ao mesmo tempo, exalava o último suspiro o almirante, marquês de Kerjenic, vítima do mesmo mal.

Os dois cadáveres foram metidos cada qual em um saco e estendidos no camarote mortuário, um ao lado do outro.

Ao cair da noite, amarrou-se uma pedra ao saco que continha os restos mortais do marinheiro e, diante da capelão de bordo, que rezou as preces de encomendação, foi o saco atirado ao mar. Em vista da pouca distância que separara “Annamita” de Toulon, o cadáver do almirante foi colocado em um ataúde provisório para ser entregue à sua família e inumado com todas as honras devida à sua elevada posição.

Era já conhecida em Toulon a morte do almirante quando o “Annamita” entrou naquele porto. Todas as embarcações tinham as suas bandeiras hasteadas a meio pau, e as tropas de infantaria da Marinha estavam formadas em uniforme de gala. Depois de serem tributadas as honras militares ao cadáver, formou-se um cortejo, em duas filas, que se pôs em marcha.

O almirante foi conduzido à estação, para daí ser trasladado, em trem especial, a Saint-Briene. À frente, ia o clero, seguido da banda de música da esquadra, que tocava uma marcha fúnebre, e do esquife, levado nos ombros de oito marinheiros.

Fechavam o acompanhamento os representantes oficiais, o prefeito marítimo, dois almirantes, vários generais e todas as autoridades civis e militares da localidade.

Dois parentes do morto tinham vindo receber o cadáver, que foi acompanhado por alguns oficiais e um dos ajudantes de ordens do falecido almirante.

Em Sain-Briene, estiveram expostos os despojos, durante dois dias, no castelo dos Kerjenic, cujo vestíbulo fora transformado em câmara ardente. A família preparou uns funerais dignos do marquês. Saint-Briene possui grande número de confrarias religiosas, cuja origem remota à Idade Média, e que conservavam os costumes e as tradições da época. Todas elas foram convidadas a comparecer aos funerais, que se celebraram com uma pompa. Uma banda de música tocava. Seguravam nas alças do caixão personalidades locais. As ruas estavam repletas de gente, que tinha acorrido da capital e das cercanias.

Entre a concorrência, figurava a mãe de Lahunec, que chorava e rezava, ao pensar em seu pobre filho, que dormia o seu derradeiro sono no fundo do mar.

O cortejo se dirigiu para a igreja, onde se celebrou o ofício fúnebre com extraordinária solenidade. O bispo de Saint-Briene subiu ao púlpito e pronunciou a oração fúnebre do almirante, marquês de Kerjenic, último deste nome.

O prelado esteve muito eloquente. Falou das Cruzadas. Referiu-se às vitórias militares dos Kerjenic e lamentou o tremendo infortúnio da mãe do marquês, que, com aquela prematura morte, sofria, também, a desdita de ver completamente extinta a sua raça.

O discurso do bispo arrancou abundantes lágrimas a todos os ouvintes. O cortejo se pôs novamente em marcha e se dirigiu para o cemitério, onde o cadáver devia ser inumado no panteão da família.

Antes de baixar o corpo à sepultura, quis a mãe contemplar pela última vez o rosto de seu filho adorado. E o caixão foi aberto, para satisfação da inconsolável velhinha.

Esta, à vista do cadáver, soltou um grito horrível, um grito de terror.

—Este não é meu filho! — exclamou.

Aproximaram-se os parentes e recuaram também, aterrorizados.

O caixão continha o cadáver de um outro homem. Moço, de má catadura, com as mãos enegrecidas e cobertas de alcatrão.

Não era, efetivamente, o marquês.

O ajudante de ordens almirante acercou-se, por sua vez, e, igualmente cheio de assombro, exclamou:

—Enganaram-se em alto-mar, quando jogaram à água o saco. Este é o cadáver de Lahuec!


Fonte: “Selecta”/RJ, edição de 15 de agosto de 1925.


 

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