ASSOMBRAÇÃO - Narrativa Humorística de Mistério - Raul Pederneiras

 ASSOMBRAÇÃO

Raul Pederneiras

(1874 – 1953)


A companhia teatral em excursão fizera alto em Santo Antônio do Rio Acima, lugar longínquo, onde, para custeio da continuação da viagem, daria um espetáculo. Os artistas alojaram-se num casarão soturno que, na manhã seguinte, seria transformado em teatro. Fatigados da viagem, quase todos se recolheram aos cômodos, ficando apenas, em palestra na sala principal, uns cinco rapazes, entre os quais se contava o João Barbosa. Uma única vela aclarava o ambiente e, nessa noite, de prosa em prosa, a conversa resvalou para o terreno do sobrenatural.

Barbosa, descansado numa cadeira de viagem, ouvia os episódios que os colegas narravam, com calma e seguro de que estava a ouvir fantasias ou contos da carochinha. Interrogado sobre o assunto, o ator declarou que não acreditava em tais baboseiras, ainda que fossem testemunhadas por escrito com firmas reconhecidas por tabelião público juramentado.

—E se eu te disser que estamos num lugar mal-assombrado? — observou um dos colegas.

—Podes dizer. Acreditar é que é difícil.

—Está bem. Não acreditas. Não discutamos nem falemos mais nisso.

Com o adiantado da hora veio a sonolência, alguns cabeceavam entre bocejos prosando com esforço. João Barbosa, mais resistente, ainda fumava o seu cigarro a trautear um trecho de música em surdina.

Cruzou a perna direita, abandonando o chinelo respectivo... e, com grande surpresa, viu o chinelo seguir vagaroso para a porta do corredor, onde desapareceu. De um salto levantou-se, foi ao corredor deserto e lá deu com o chinelo encostado à parede. Examinou-o detidamente e nada viu de estranho no traste. Calçou-o e voltou para o seu lugar na sala.





Cruzou a perna esquerda e, ainda mais surpreso, viu o chinelo respectivo marchar vagaroso para a porta do corredor. João Barbosa olhava para o chinelo itinerante e olhava para os colegas que se mostravam igualmente surpresos. Ergueu-se de novo e foi buscar o chinelo, aproximou-o da vela acesa, examinou-o detalhadamente, sem encontrar coisa alguma de extraordinário!





Ligeiramente impressionado, foi para o quarto e deitou-se, depois de examinar os cantos e fechar porta e janela. Mal começava a pregar olho, um grande estrondo, de ferragens que caem, foi ouvido fora da casa; o artista correu à janela, abriu-a e ao clarão do luar nada viu de estranho. Fechou tudo de novo e, na cama, quando o sono se manifestava, outro ruído estranho despertou-o. À sua frente, um vulto esbranquiçado abria os braços e fazia ouvir uns rugidos cavernosos.





João Barbosa não tratou de indagar da razão dessa visita intempestiva, lançou mão do revólver que estava sob o travesseiro, e fez a arma disparar contra o vulto misterioso. Segundo tiro ia ser engatilhado, quando o vulto, com a voz mais natural deste mundo, gritou:





— Sou eu! Sou eu! Não atires mais!

Alarmada a casa, vieram os companheiros armados de cacetes e velas. O fantasma era um colega, que preparara toda a cena e quase iria para o outro mundo se continuasse.

Esclarecida a “assombração”, João Barbosa teve a explicação dos chinelos ambulantes. Um fio de retrós preto em cada um deles ia até ao quarto do autor da partida, que o arrancava rápido, antes da inspeção no escuro. João Barbosa desde essa noite nunca mais viu “assombração” e os companheiros trataram de tirar tais partidas de seu vasto repertório, por não terem decidida vocação para tragédias…


Fonte: “Revista da Semana”/RJ, edição de 21 de setembro de 1929.

Ilustração de Raul Pederneiras. 

 

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