MAU SANGUE - Conto Clássico Sobrenatrual - Coelho Neto
MAU SANGUE
Coelho Neto
(1864 – 1934)
Foi um reboliço, um leva-leva entre os caboclos arranchados sob o alpendre do negócio, quando Chico Redomão, saltando do pangaré, esbaforido, alagado em suor, com a cabeça ardendo da soalheira brava, disse, atirando uma relhada a um dos grossos moirões de cabiúna:
—Hoje o dia começou mal. Estou arranjado!
—Mode quê? — perguntaram.
—Topei com o diabo do Penador.
Houve alvoroço e a caboclada, em tumulto, apinhando-se em volta do peão, indagou alarmada:
—Onde, homem de Deus?
—Debaixo do umbuzeiro, dormindo. E o danado do tinhoso junto dele, rente.
—E você, criatura?
—Uai! Fechei o corpo com o sinal da cruz, juntei o pangaré nos quartos e passei de largo numa arrancada doida. Ele vem vindo por aí. É que jã fez coisa.
Capitão Libânio, o do negocio, perguntou do fundo, no seu vozeirão que estrondava:
—Que é, gente?
—É o Penador que vem tocado.
—Quem?
—O Penador.
—Tá louco! — exclamou Libânio em tom sarcástico. — Por aqui mesmo é que ele não passa.
— Espera um instantinho…
— Garanto que ele aqui não passa.
E inflamou-se, saiu ao alpendre, d’olhos esbugalhados, arregaçando as mangas da camisa de riscadinho. Era um homenzarrão alto e grosso, guedelhudo, d'olhos sanguíneos e sempre chispando áscuas de fúria; cara larga, balofa, cor de tijolo, marcada em piques e laivos de varíola. Reluzia de suor e, num ríctus que lhe arrebitava o lábio superior, os dentes apareciam, grandes e amarelos. Fechou os punhos e, altaneiro entre os caboclos, arquejando de ódio, esbravejou:
—Se aquele mofino é homem, se tem coragem no peito que bote o pé aqui na minha porta. Diabos me levem se eu não estourar ele c'um tiro.
—Coisa ruim! — resmungou, com um muxoxo rascante, um rapazola macilento, que passava e repassava a faca alisando sobre a coxa compridas palhas de milho. Um velho, de melenas arrepiadas, bolsa de couro ao flanco, que cachimbava a um canto, adiantou-se arrastando as alpercatas e, batendo com o cachimbo na palma da mão calosa, perguntou em tom sossegado:
—Vosmecê também tem queixa desse infeliz, seu capitão?
Libânio voltou-se d'ímpeto e, carregando o cenho, os olhos a fagulharem, crispado e rouco, com as veias túrgidas latejando, depois de encarar no velho, atirou um murro no peito, bramindo:
— Eu!? — e avançou um passo. — Se eu tenho queixas desse caipora? E quem não tem? Terra qu’esse maldito pisa nem bênção de tanto salva; fonte em que ele bota a boca, seca.
Uma cabrocha esgrouviada rebolou nos molambos em que jazia; e na estrada fulgurante, e, ao sol, atesando o braço, sacolejando o corpo desconforme, exclamou rancoroso, travando as palavras entre os dentes que rilhavam:
—Juro por esta luz que está me alumiando que se aquele excomungado tiver o arrojo de chegar aqui não dá mais um passo para diante. Não dá! —afirmou com uma patada à terra dura e seca de onde subiu uma poeira fina. E rugiu:
—Tão certo como ser hoje segunda-feira das almas, como ele! Como com a minha comedeira de dois canos que está lá dentro. Que venha, se é capaz! S’eu tenho queixa!… É boa!
Aos bufos, tornou ao alpendre devagar, remoendo a fúria, e, fitando o olhar sinistro no velho imperturbável, insistiu:
—Tenho queixa, sim. Tenho, como todo o mundo!
—Mas queixa de quê, seu capitão?
Libânio ficou um momento como aturdido, em verdadeiro espanto. Por fim, atirando os braços deu as costas ao interlocutor:
—Ora!
E, violento, afogueado:
—Você parece que nasceu ontem, pai. Quem sabe!? Já viram? Parece que nasceu ontem.
—Estou rondando os setenta, capitão.
—E não conhece o penador?
—Só d'ouvir nomear.
— Ah! Só d’ouvir nomear? Pois tudo que se diz dele é verdade.
A cabrocha resmoneou macambúzia:
—E muita coisa não se conta porque não se tabe. Roça seca da manhã pra noite, foi o sol, o sol é que leva a culpa. Animal morre no campo, é peste. Qual peste, qual nada! Quem quiser procure os passos do Penador e há de achar. Criança está no colo da mãe brincando, de repente revira os olhos, estremece e antes de receber a bênção, morre. Doença… E doença anda assim? É o sangue do Penador. Ate a sombra desse maldito faz mal.
—Está ouvindo? —regougou Libânio.
O velho acenou de cabeça, sempre incrédulo. Libânio irritado, a sorrir como ofendido na honra, bradou aos caboclos:
— É verdade ou não é, gente?
—Uai! Verdade pura.
—Olhe, Redomão sabe a história deste diabo. Pergunte.
Todos os olhos voltaram-se para o peão, que saía do negócio conferindo um troco.
—Redomão!
— Que é de lá, gente?
— Vem contar a história do Penador.
— Uai! Então ainda é preciso contar isso? Quem não sabe?
E o peão, alentado e airoso curiboca, riscando a terra com a larga roseta da chilena, adiantou-se vagarosamente, risonho. Parou, relanceou um olhar alegre em volta, perguntado em tom chocarreiro.:
—Quem é aí que não conhece a história do Penador?
—Este camarada — explicou Libânio, mostrando o velho, sempre impassível. Redomão casquinou um risinho. Jogou o corpo numa guinada e, de cabeça baixa, enrolando o cigarro, falou ao velho:
—Ainda que mal pergunte: vosmecê não é daqui?
—Não sou.
—Está se vendo.
— Estou aqui de passagem. Vou pra Bom Jesus.
— Vai no bom tempo.
Acendeu o cigarro e, sentando-se no poial, o curiboca começou:
— Pois então escute lá a história do Penador e depois, se achar do que rir, ria á sua vontade.
Os caboclos atropelaram-se aos empurrões, formando roda, uns de cócoras, firmados nas pontas dos pés, outros estirados de flanco, o busto soerguido sobre o cotovelo. O velho encostou-se a um dos esteios, sempre fumando, com um riso escarninho estampado no rosto.
Longe rinchava um carro de bois com estridente e monótono soído; anuns piavam nas moitas próximas e, ao sol cáustico, que fazia rebrilhar a estrada, moscas esvoaçavam tontas. Redomão pôs-se a falar:
—Ali assim, por detrás daquele cerrinho, e o sítio de nhô Barreiros, o Frutal. Vosmecê conhece? O velho afirmou:
—Hen-hen!
—Terra que vale ouro! Pois foi ali mesmo que começou a trabalhar o mau sangue do Penador. O dono daquele sítio era um moço bom como ele só, nhô Pires, casado com a moça mais bonita destas paragens, nhá Lina. Cabelo era ali! Nunca vi igual, nunca mais hei de ver. E tanto tinha de bonita como de boa. Foi um choro de fazer pena por esses ranchos quando ela morreu, coitada!
A cabrocha acrescentou em tom plangente:
—Ainda hoje se chora.
—Ainda hoje! — E os caboclos confirmaram em acenos compadecidos.
—Nhô Pires — era ele, a mulher e um filhinho, louro que nem inglês —, querendo aproveitar a terra, foi à Vila Velha e ajustou camaradas, gente destorcida pro serviço. Penador veio no bando. O nome dele é Serafim. Moço, boa cara, boas maneiras e vivo na enxada que era um gosto. Foi logo ganhando a estima dos patrões e merecia, isso merecia. Não havia outro como ele para roçar um mato, para cavar um aceiro, para derrubar uma arvore. Braço valente! Nhô Pires não cabia em si de contente. Vosmecê lembra, capitão? Só falava do sítio, da sua gente, das plantações, da colheita e já pensava em comprar mais terras para emendar com as dele, quando, uma manhã, nhá Lina acordou gemendo e gemido foi esse que, de tardinha, seu vigário estava entrando no sitio com o Santíssimo, e, no abrir da lua, a alma da moça subia para o céu, com os anjos. O que foi essa morte nem eu sei contar. A casa ficou fechada e nhô Pires, escaveirado, chorava que nem criança. Saía de noite pelos caminhos, aí beirar o cemitério; e a gente ouvia o choro dele, triste, triste de cortar o coração mais duro. Nem bem havia passado de um mês quando o pequeno caiu com febre.
—Êh sangue! —rosnaram com terror. Redomão olhou cm volta e prosseguiu:
—Nhô Pires fez tudo: mandou longe buscar um doutor, mas qual! A criança ia acabando devagarinho. Que remédio? Penador estava no sítio cavando e, de noite, com pena, ia ficar com nhô Pires perto do curumim. Lé foi! Que dor, minha Mãe do céu. Nhô Pires, coitado!... Enfim... Ficou só e o Penador na terra, trabalhando, e o sangue do Penador fazendo ingratidão. Nhô Pires não podia adivinhar. O tempo correu levando a tristeza e o moço, coitado!, entrou no trabalho com a sua gente. Era desde o amanhecer até as Ave Marias um malhar de ferro numa toada, todo o mundo vergando a espinha, suando no duro e a terra... pra trás! Nhô Pires semeava, o sol matava a semente; tornava e semear, a chuva varria tudo. Vosmecê já viu a terra adoecer? Pois adoece que nem gente. O Frutal ficou em petição de miséria. A vida de nhô Pires desandava, desandava mesmo e tanto ele sofreu, tanto perdeu que, uma manhã, sem fazer conta do prejuízo, vendeu o sitio a nhô Barreiros. Foi depois do negocio que nhá Malvina — Deus lhe fale n’alma! — disse a razão da desgraça. Nhá Malvina conhecia gente de mau sangue pelo azedume do suor e foi ponto passar uma vez por perto de Penador para ver que ele era dos tais. O mal estava feito. Nhô Pires montou a cavalo e desapareceu e, até hoje, ninguém sabe dele. Nhô Barreiros tomou conta do sitio, despediu o Penador e, sem despesa maior, em pouco tempo botou aquilo que nem um brinco. Penador ganhou o mundo, trabalhando onde topava que fazer. Mas era ponto pôr a mão numa coisa, fosse o que fosse, era aquela certeza. Serviu nas obras da ponte nova e aconteceu o que aconteceu. Entrou no campeiro no Monte Alegre e deu uma peste no gado que foi mesmo um despropósito. Ganhou fama! Hoje não há quem não conheça o Penador, ninguém quer saber dele, nem de graça. A gente tem pena, mas que ha de fazer? Se ele, de noite, com fome, entra numa roça e furta uma espiga de milho, o milharal amanhece praguejado.
Libânio adiantou-se e, estendendo o braço na direção do cerro, disse:
— Olhe, ali havia uma fonte, a água melhor deste lugar, o danado bebeu… Que é dela? Ficaram as pedras por muito favor. Pior que raio!
—E como vive essa criatura? — perguntou o velho.
—Sei lá! — exclamou Libânio, com ódio.
A cabrocha explicou, sempre amazorrada:
—É o cachorro.
— Que cachorro?
— Um tinhoso que anda sempre com ele. E ele que dá tudo.
—O cachorro?
— Cachorro… O diabo é que é.
O velho sorriu.
—Vosmecê não acredita? — bradou Redomão. — Pois olhe, ele está pertinho daqui, debaixo do umbuzeiro. Se vosmecê quer ver sua vida virar duma vez, vá ter com ele, lá.
Nesse momento uma voz de criança bradou da estrada:
— Olha o Penador!
Outras vozes cresceram:
—Mofino! Penador!
Os caboclos levantaram-se em alvoroço, alarmados; saltaram à estrada. O velho seguiu-os. Libânio correu ao negócio e voltou empunhando uma garrucha de dois canos.
O sol ardia. As árvores imóveis, muito lustrosas, cintilavam. Dos capins amolecidos subia um cheiro quente de silvas queimadas e a estrada amarela, poenta, estendia-se por entre o macegal.
Um homem esfarrapado, descalço, barba farta e inculta, um velho chapéu de palha enterrado na cabeça, com um cão no rastro, vinha vindo lentamente, vergado como a um grande peso. Por vezes cambaleava e a sua sombra tremia ao sol. O velho olhava, com a mão em pala, e a cabrocha, que tirava um rosário do seio, repassava as contas, murmurando exorcismos.
—É ele!
—É.
Houve um silêncio de hesitação. O homem avançava numa nuvem de poeira fina e luminosa como um halo. De instante a instante parava, virando, revirando a cabeça como à procura de alguma coisa. O cão metia-se nos matos, farejando, saía à estrada, sempre de focinho baixo, em farisco aqui, ali. De repente Libânio adiantou-se com arrogância, empunhando a garrucha engatilhada:
—Volta! Volta! Pra trás, Penador, senão vai bala!
—Volta, desgraçado! — intimaram os caboclos.
O homem estacou, esteve a olhar, sem o mais leve movimento, hirto ao sol.
—Volta! Não teima — insistiu Libânio.
Ele fez um gesto e, rebuscando o saco que trazia às costas, puxou-o à frente, tirou uma cuia, tomou-a a mãos ambas, acenou com ela á boca, derreando a cabeça em menção de beber e, com toda a força que lhe restava, arquejou:
—Água!
—Vai beber no inferno, seu sangue ruim — respondeu o capitão.
O velho murmurou, comovido:
—Isso é falta de caridade, gente.
—Uai! —chesqueou Redomão — Vosmecê está com pena? Apois… por que não vai lá?
O velho deu d'ombros e, enchendo o cachimbo, tornou vagarosamente ao alpendre, resmungando.
—Ah, você não volta! — rugiu Libânio.
Um tiro atroou, rolou no silêncio do descampado. O velho precipitou-se na estrada e ainda pôde ver o infeliz que fugia a correr, com o saco a saltar-lhe às costas, sempre seguido do cão. E os caboclos riam às gargalhadas, sapateando no pó.
—Este foi só mod’assustar — disse Libânio —, mas se ele teimasse o outro ia mesmo, duro. Pra longe, sangue danado!
Regressaram todos ao alpendre e o velho, em resposta à troça que lhe fizeram, engrolou meio desapontado:
—Eu não digo que não acredite, mas uma sede d'água não se nega a ninguém, um inimigo que seja.
—Uai! E vosmecê não estava aí? Como não foi levar?
—Não vê? — exclamou um da roda. —Falar é uma coisa. Esse é dos tais que empurram a gente pro fogo e ficam agachados no mato mordendo cartuchos.
O velho meneou com a cabeça sorrindo e, acendendo o cachimbo, recolheu-se, de novo, ao seu canto, junto ao poial. Redomão, sempre alegre, atirou-lhe uma palmada ao ombro.
— É assim mesmo, compadre! Deixa lá! Seguro morreu de velho. De tolo é que você não tem nada.
E, ajustando ao queixo a barbeta do chapéu, saiu do alpendre.
—Bom, gente, a prosa está boa, mas o serviço está me chamando. Até amanhã!
Foi ao telheiro, puxou o pangaré pelo cabresto, montou-o dum salto e, picando-o rijo, sacudiu o braço num adeus geral. O cavalo arrancou em galope arrojado.
Uma nuvem de poeira levantou-se na estrada, houve um desabrido ladrar de cães e, de novo, o silêncio caiu na reverberação entorpecida e estuante do sol.
Fonte: “O Malho”/RJ, edição de julho de 1940 e “Fo-Fon”/RJ, edição de 21 de setembro de 1946.
Ilustrações: Calmon Barreto (1909 – 1994).
Comentários
Postar um comentário