NA PRAIA - Conto Clássico de Horror - Abel Juruá
NA PRAIA
Abel Juruá1
—Até que, finalmente, conseguimos estar juntos! — disse João Crisóstomo a Maurício Ney.
— Os cinco anos que estive fora fizeram esquecer-nos um do outro! Por quê? Nem eu mesmo sei! E não fosse o encontro fortuito desta tarde, levaríamos talvez o resto da existência sem nos tornarmos a ver…
— Abençoemos, pois, o acaso que nos colocou frente a frente! — respondeu Ney com afabilidade. E os dois amigos, depois de se abraçarem mais uma vez, deitaram-se comodamente na areia. Estavam em Copacabana, em frente ao mar solto, bravio, espumante, e, depois de permanecerem alguns instantes na contemplação daquela maravilha sem igual, puseram-se a recordar as deliciosas horas do passado, e os seus olhos sorriam, num emocionado afeto.
—Recordas-te da minha vizinha Letícia, aquela mocetona de tez rosada e fisionomia atraente, que te fazia olhares doces de cima do terraço? — perguntou Maurício. — Morreu, meu caro, morreu em seis meses de uma tuberculose galopante. Não a puderam salvar, coitadita! Dizem que se deixou morrer por amar um homem casado. Aquela minha rua —prosseguiu ele, sorrindo — foi um trecho predestinado pelo amor, nas suas delícias e nas suas tragédias. Tudo vivia ali fascinado por ele, e fascinado por ele morria! Só numa semana, suicidaram-se duas moças desgostosas de amar sem serem amadas; em minha casa, mesmo, várias pessoas lhe sentiram a profundidade do aguilhão.
Esta última frase foi pronunciada de modo tão desolado, que Crisóstomo levantou a cabeça para encará-lo numa atenção admirada. Maurício prosseguiu melancolicamente:
—É o que te digo, meu velho; minha irmã saiu de casa para se casar com um oficial de marinha, contra a vontade de meus pais, e nunca mais a vimos; meu primo Jaime — lembras-te dele?—, depois de três anos de união com a Mariazinha, que todos estimávamos tanto, abandonou-a sem razão, por uma caixeirinha linda, e “má como um anjo decaído”… Eu mesmo…
—Tu mesmo?
—Sim, eu mesmo não me livrei das garras do querubim maldito, e apaixonei-me por uma estudante de medicina russa, Tatiana Mechikoff, ardente, talentosa, que teve a mais inesperada e trágica das mortes.
—Oh!
—Meus pais reprovavam o meu enlace com uma moça que consideravam excêntrica e desequilibrada, mas a minha paixão louca por ela não admitia ponderações nem conselhos, e, apesar de toda a oposição que me faziam, declarei que só a morte nos separaria. Asim que foi!… Seis meses após o nosso noivado, ela morreu queimada, ondulando o cabelo, num pequeno fogareiro de espírito2, e eu caí de cama com uma febre cerebral que me prostrou num quase marasmo durante dois longos e malditos meses.
Quando entrei em convalescença, levantei-me atordoado, esquisito, com ódio à humanidade, culpando-a por ter-me feito sofrer aqueles desgostos, só mais tarde conseguindo, a custo, terminar os estudos de Direito. Já se passaram anos e ainda hoje sinto um frêmito de horror quando me lembro disto tudo e dela!
—E nunca pensaste mais em casar?
Maurício demorou um pouco a sua resposta:
— Há seis meses encontrei uma moça que me impressionou pelo seu espírito e pela sua simpatia. Além disso, tem eu corpo escultural: é alta, bem modelada, tranças fartas e negras, com uma expressão de esfinge egípcia, que se dignou dar-me o seu amor.
—Ficaste noivo?
—Sim… — tornou ele, hesitando.
Notando-lhe a expressão taciturna do semblante, Crisóstomo perguntou com muita vivacidade:
—Não te sentes feliz?
— Sim e não — confessou Maurício, querendo ser sincero. — Sim, porque tenho por ela um amor tão poderoso como tinha por Tatiana, e não, porque supersticioso, e por sentir que qualquer coisa de anormal me sucederá.
—Que absurdo!
Maurício repetiu com força:
—Tenho; porque a imagem de Tatiana me persegue continuamente, fazendo-me pensar nela sempre, vendo em tudo a sua influência, sentindo sempre a sua presença e o seu domínio.
—Loucura!
—Loucura, sim, mas infelizmente um fato.
—O que te leva a julgar dessa maneira extravagante?
Maurício estendeu-se melhor na areia, e, colocando o chapéu mole debaixo da cabeça:
—Tatiana tinha por mim um amor doido, fantástico, como só o sentem as russas, quando amam a sério. Ali não havia dissimulações nem disfarces, e, apesar da antipatia feroz de minha família, manifestada em atos violentos contra mim e contra ela, Tatiana vinha buscar-me para passear, trazia-me até à porta de casa, telefonava sem cessar, acompanhava-me à escola, ao teatro, aos bailes, a toda a parte, enfim!
Mas esse amor era dominador, autoritário, apoderando-se de todos os minutos de minha existência, sem me deixar quase meditar nem refletir. E, quando estava na cama, gritando sob os sofrimentos medonhos das queimaduras, disse-me, segurando as minhas mãos trementes nas suas palmas febris:
—Depois de eu morrer, não penses nunca em casar, porque, se o fizeres, eu te virei buscar antes disso. Tu és meu, e só meu. Pertences-me para a vida e para a morte.
“Desde essa ocasião, meu caro Crisóstomo, tremo de terror quando me lembro daquela cena horrível e daquelas palavras pronunciadas por uns lábios em chagas, lábios ardentes que eu beijara tantas vezes apaixonadamente.”
— São infantilidades pueris! — disse Crisóstomo. —Não te deves preocupar com um fato que somente significa o sentimento egoísta que ela te dedicava.
—É possível; mas tenho a impressão estranha que, entre mim e minha noiva atual, interpõe-se sempre a sombra indignada de Tatiana. Muitas vezes, mesmo quando estou docemente encantado pela sua conversa espirituosa, sinto como um frêmito a nosso lado, um suspiro, uma presença qualquer que ninguém vê, a não ser eu, surgindo entre nós dois, vigiando-nos, acompanhando-nos; tornando o meu amor de repente humilde e cabisbaixo como um réu.
—Impressão nervosa — disse Crisóstomo, complacente. — Tens o espírito fraco e impressionável. Se isso se desse comigo, eu reagiria energicamente.
—Chega a este ponto — prosseguiu Maurício, abrindo olhos de espanto. — Uma tarde, puxei minha noiva para beijá-la, quando me pareceu — que insensatez! — distinguir a imagem sobrenatural de Tatiana, a puxar-me para trás, separar-me da outra, para evitar o contato dos meus lábios com aquela pele veludosa e empalidecida como uma flor de edelvais. Até hoje não consegui beijá-la; há sempre um vago terror a suspender o meu gesto e tolher o meu ímpeto apaixonado. Se assim continuar, enlouquecerei.
Maurício calou-se, tornando a deitar-se na areia, tão fina, tão branca como um imenso leito de plumas macias. Crisóstomo deitou-se também, pensativo.
Por todos os lados, havia pequenos grupos de moças e de rapazes, tagarelando e rindo, despreocupadamente, e todo esse rumor alegre, todas aquelas toaletes claras e vivas, aqui e ali, esparsas como canteiros floridos, davam à imensa e maravilhosa praia um sopro intenso de vida, que animava a alma dos mais melancólicos.
No poente, levemente tinto de roxo claro, estendia-se uma esteira aérea e luminosa, e outras esteiras mais claras, mais diáfanas, mais rosadas, iam-se alargando ao longe, pelo horizonte fora…
As montanhas, sob o manto imaterial de ma neblina tenuíssima, imateriabilizavam-se, afinando-se, esvaindo os seus contornos e a sua rigidez, e os dois rapazes, em silêncio, sismavam, sismavam…
Depois de uma demorada pausa, Crisóstomo perguntou:
— E tua noiva de hoje conhece os detalhes desse noivado trágico? Sabe o que se está passando, e o que estás padecendo?
Maurício bocejou sonolento.
— Não; tenho pudor de lho revelar. Talvez o meu estado de nervos exagere estes fatos, mas, o que é real é que estou doente, não tendo prazer em viver... A vida apresenta-se-me como uma perigosa montanha que eu tivesse de galgar, e que só o seu trajeto, os seus caminhos cheios de pedras e de precipícios me fizessem hesitar em transpô-la.
“O cansaço faz-me esmorecer diante das dificuldades.
“Tudo me fatiga e impede o desenvolvimento da minha vontade. Creio que devo passar alguns meses num sanatório…”
Na frente deles, o mar bramia com fúria, levantando-se em corcovos de espumarada. Ao longe, parecia calmo, todo azul, todo cintilante, mas essa calma era traiçoeira, pois, perto da terra, o seu ruído tornava-se colérico, vingativo, quase ameaçador… E o céu, agora com laivos de um rosado mais brando, parecia querer apaziguá-lo com a sua atitude de serenidade amorosa.
Maurício, com os nervos abalados pela narrativa que fizera, sentiu as pálpebras cerrarem-se aos poucos, vagarosamente…
Então aquelas ondas, que se atiravam enraivecidas de encontro à orla tranquila da areia, foram-se alteando, avolumando, num tropel veemente e fogoso, dando saltos terríveis, abrindo as bocas disformes, frementes de espuma em contorções convulsas como um esquadrão de amazonas descabeladas. Assim, continuaram rugindo medonhas, descompostas, sem freio, sem lei, nem nada que as retivesse.
No meio delas, entre um séquito de ninfas marinhas, com os compridos cabelos, soltos pelas espáduas, apareceu, como arcanjo da vingança, uma formosa mulher nua, apenas coberta por algas imensas. Maurício fitou-a assombrado, reconhecendo Tatiana, a sua ex-noiva russa, que, aproximando-se dele, lhe ofereceu os braços brancos, frios como serpentes e voluptuosos como as próprias ondas…
Depois, arrancou-o da praia e carregou-o depressa, com uma volúpia insaciável de vampiro, para o meio do mar, bem longe da terra, entre monstros marinhos e sereias tentadoras. Aí as ondas embrulharam-no rapidamente, cobriram-no todo, enquanto Tatiana, com beijos desvairados e os grandes olhos perversamente felizes, lhe murmurava baixo, sequiosa de amor:
“Não te preveni que te viria buscar, antes do te casamento? És meu, só meu, para a vida e para a morte" — e, sem o deixar desprender-se do seu abraço afogou-se com ele, bem longe, no meie do oceano, bravio e insondável.
A angústia de Maurício foi imensa; só depois de um esforço sobre-humano, pôde lançar um grito de socorro. Então abriu os olhos apavorados, vendo Crisóstomo a seu lado, sacudindo-o com força.
—Acorda! Rapaz, que é isso?
—Foi um sonho! — respondeu ele, aniquilado. — E que sonho, santo Deus!
—Acorda por uma vez — continuou o outro. — Estás fraco; vem jantar, comigo.
E ajudando-o a erguer-se, deu-lhe o braço afetuosamente, levando-o em direção de casa
Fontes: “O Paiz”/RJ, edição de 22 de março de 1925; “Jornal de Theatro & Sport”/RJ, edição de 28 de março de 1925.
Notas:
1Pseudônimo de Iracema Guimarães Vilella (1875 – 1941).
2Fogareiro alimentado por álcool.
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