NAVIO FANTASMA - Narrativa Clássica Verídica Sobrenatural - Walter Schout

NAVIO FANTASMA

Walter Schout

(Séc. XX)


A Taberna Azul era o ponto preferido pelos capitães de veleiros nas suas horas de folga. Eu e o velho John, meu cabo de guarda, quando estávamos na Inglaterra e podíamos desembarcar, gostávamos também de aparecer por lá. Seria talvez uma pontinha de saudade dos nossos primeiros tempos no mar…

Essas reuniões tornavam-se mais interessantes na época das corridas das galeras inglesas da frota do trigo, que interessavam a todos os veleiros do mundo. A justa preferida para as grandes provas era a dos mares da Austrália do Sul (Porto Vitória) aos da Inglaterra (Falmouth).

—Nada na vida mais me emociona do que uma dessas corridas — dizia-me certa vez, num dia de calma, soltando uma baforada do seu cachimbo de fina escuma, o capitão Ruben de Cloux. O capitão Cloux era o mais experimentado navegante à vela da Inglaterra, reconhecido assim o veterano dos capitães de longo curso da frota do trigo. Comandava então o Herzogin Cecile, governando-o ao sabor da sua vontade. A roda do leme nas suas mãos resistia a todos os ventos, vencia as dificuldades mais sérias dos mares em revolta, as procelas traiçoeiras e as rotas mais temidas.

Quando o conheci, tinha nervos de ferro o capitão, poderio absoluto de si mesmo, e gostava de brincar com a morte. Nunca falava com os outros veleiros que seguiam o mesmo roteiro do seu por meio dos sinais estabelecidos no código internacional dos navegadores, mas, sim, de viva voz. Mandava retesar as amarras, tomava mais de cheio o vento em todo o velame e, ganhando proa, passava tão rente ao costado da outra embarcação que, pelo porta-voz, gritava o que queria ao seu companheiro de viagem. John Grier, escritor e pintor célebre, testemunha dessas façanhas, contava que, de certa feita, o capitão Cloux alcançou o Archibald Russell, chegando tão perto do veleiro, em corrida a todo pano, que pôde jogar ao convés um pacote de correspondência!

As corridas anuais das galeras da frota do trigo são de sensação e tradicionais. Exigem elas dos homens que as tripulam, e de seus comandantes, o máximo da energia e da coragem, num recorde de resistência formidável, pois é preciso voar, em media, sobre as águas, mais de três meses, dias e noites, atravessando as zonas perigosas do cabo Horn, para, depois de dobrá-lo, alcançar a linha equatoriana e chegar, enfim, a Falmouth. Torna-se indispensável ganhar o caminho favorável à corrida, onde os ventos castigam muito, são mais frios, mas são fortes. Uns, ao largar Porto Vitória, procuram o sul da Tasmânia; outras, vão até avistar as ilhas Snares. Durante todo o tempo da corrida, navega-se sobre o mar encapelado pelo vento, com o convés banhado de proa à popa pelas vagas, numa vertigem alucinante. Ruben de Cloux aconselhava sempre aos navegadores que fizessem essas corridas atravessando o cabo Horn a 55.", onde, dizia, os ventos são muito firmes e certos, embora impiedosos e cortantes de gelo nos meses de inverno.

As narrativas das duras proezas do capitão Ruben de Cloux eram, por ele mesmo, relatadas nessas reuniões da “Taberna Azul”, pausadamente, em voz calma e forte, parecendo contar coisas vulgares da vida, a uma baforada de “Captan” e a um gole de uísque.

Numa chuvosa tarde de outubro, lá encontramos, também, Lloyd Baly, oficial reformado da marinha de guerra. Havia terminado importante comissão a que se obrigara e deveria partir em breve no desempenho de nova tarefa. Teria de dirigir-se a Nova Belford, ponto baleeiro em Massachusetts, empresado por uma associação de armadores. Ia tentar bom negócio e inspecionar um estranho caso. Em Nova Belford havia um navio fantasma!

A historia, em linhas gerais, contada pelo velho lobo do mar, encheu-nos de curiosidade, a John e a mim. Lloyd Baly precisava de homens de confiança para levar com ele, e nós nos entusiasmamos pela aventura. O seu convite foi, pois, recebido de coração aberto, e ele próprio encarregou-se de obter do almirantado a necessária permissão para nos ausentarmos da Inglaterra.

O navio malsinado fora um dos mais velozes veleiros que se conhecera em seu tempo, impecável nas belas linhas do casco traçado em famoso estaleiro da Escócia, rico de esplendores nas suas instalações, e deveria ser vendido, em hasta publica, naquele porto norte-americano. Lloyd Baly pensava adquiri-lo em boas condições, aproveitando-se da lenda que o envolvia, e, se isso conseguisse, passaria o barco à frota dos navios transportes do trigo da Inglaterra, e que constituiria forte ameaça nas futuras corridas do ano para todos os concorrentes. Anunciava-se tratar-se do detentor de um dos mais sérios recordes de corridas à vela, quando então se estreara nos mares da Índia, fazendo a sua primeira viagem entre Londres e Calcutá em sessenta e nove dias, façanha nunca alcançada por barco algum dos de sua classe.


*


O marujo é simples sempre e, por vezes, ingênuo, o seu cérebro trabalhando superstições que vêm de muito longe, atravessando séculos e milênios. Aquele que faz a linha das Índias é fértil, por excelência, nas mais absurdas crendices e se não se apavora com as borrascas tremendas do oceano: atemoriza-se com o sobrenatural, com o fantástico. Será isso reflexo do fetichismo dos povos com os quais se põe em contato nos portos que escala? Talvez…

Havia a bordo daquele navio — contava a lenda — a alma penada de um guerreiro, fantasma que aparecia em noites indeterminadas do ano, invisível aos que estivessem no barco. Nessas ocasiões, não se aproximavam, porém, outros navegantes do veleiro mal-assombrado, porque haveriam de ouvir os gemidos do guerreiro, vê-lo brandindo o seu gládio, com o coração ferido, a sangrar eternamente. Sem o querer, seriam arrastados até junto da galera e, então, fatal se tornaria a morte por asfixia, no estrangulamento pelas mãos enormes do fantasma pregadas à garganta do incauto ou intemerato.

Um velho africano de Algoa, que se vangloriava de ter sido o primeiro dos tripulantes do barco, havia contado a história, que a maruja repetia, de que esse mesmo fantasma salvara a galera, aguentando as suas amarras, ao desencadear-se medonho furacão de NO na grande baía da África Austral. Garraram, então, cerca de vinte veleiros, que se perderam despedaçados nas costas bravias. Os furacões, as violentas tempestades de NO, são, realmente, pavorosas nesses mares africanos, onde Algoa, na Colônia do Cabo, é o único refúgio. E ficou célebre na historia do mar um ciclone que varreu a África Austral, onde naufragou toda a frota veleira ancorada em suas águas, com exceção apenas de dois ou três barcos.

A lenda não nos fazia temer. Por que não dizer, porém, que mais nos aguçava a curiosidade de conhecer tudo de perto e nos cientificarmos de sua origem? Ao chegarmos a Nova Belford, visitamos a galera e foi fácil identificá-la. O navio, uma perfeita construção dos armadores da Escócia, tivera a princípio o nome do grande general romano, do século V antes de Cristo, Coriolanus. Havia esse barco escapado incólume da catástrofe de Algoa e guardava ainda intactos os seus luxuosos ornamentos, mármores, tapeçarias, os salões magníficos onde se viam formosos vitroaux reproduzindo quadros célebres de Gulsean e cenas pastorais da Escócia. De Caio Mareio Coriolanus, que lhe dera o nome e nele aparecera em admirável obra de arte, nada mais possuía o navio, nem no nome, nem na imagem monumental representando o guerreiro. Estava desprovido da sua figura de proa e chamava-se “Lina”.

Quem sabe, surgira a lenda da assombração da galera depois dela ter sido retirada a famosa estátua do guerreiro? A narrativa dos feitos de Coriolanus, sua vida e morte, de que nos fala Shakespeare, deram margem, aliás, a que mais tarde se fizessem edições populares da tragédia, comuns nas cabines dos marinheiros ingleses.

Não seriam essas as origens da lenda?

Quando voltamos a Falmouth, Lloyd Baly dava conta da sua missão. A galera havia sido entregue a um alto lance de certo armador português, muito embora a sua história de assombração. O capitão Ruben de Cloux, ao saber do fracasso das negociações, não encobriu o seu júbilo. E foi a primeira vez que eu o vi temer a concorrência de alguém. O braço forte de Lloyd Baly, no leme de um barco da classe do Coriolanus, constituiria realmente tremenda ameaça nas futuras corridas das galeras da frota do trigo.

Tempos mais tarde, John e eu embarcávamos para Londres, e ali deveríamos receber ordens de ganhar novos rumos.

Chegamos ao romper de um dia chuvoso, em que a cidade acordava, preguiçosamente, sob a nova de um crime sensacional. Os “placards” das gazetas noticiavam o misterioso assassinato da esposa de um negociante de antiguidades, ocorrido no interior do seu estabelecimento. Era uma linda eslava, mais moça do que ele trinta anos, pequenina, branca, muito branca e seráfica. Os seus olhos profundos, mergulhados numa tristeza infinita, pareciam refletir todas as angústias do seu povo desditoso, da sua gente oprimida, asfixiada por uma tutela medonha e que traçara com lágrimas de sangue, perdida a dinastia dos Jagellon, toda a história tremenda e bela dos seus dois séculos de cativeiro.

As primeiras edições matutinas dos jornais descreviam a cena que os policiais surpreenderam ao entrar nos aposentos da morta. Sob a cama, havia um cadáver. Era o da eslava. Aparição macabra emergia do fundo escuro, muito branca, uma cabeça de mulher de cabelos desgrenhados, olhos abertos, imensamente abertos, numa expressão pavorosa. Do outro lado, ainda sob a cama, surgiam os seus pés pequeninos e nus. Os peritos constataram que ela fora sacrificada enquanto dormia, sendo que os seus últimos estertores a fizeram cair e rolar para debaixo do leito.

Não havia no quarto sinais de luta. Tudo estava intacto. Nada fora roubado e a mulher teria sido forçosamente estrangulada por mãos possantes e implacáveis. Ao voltar o antiquário, horas depois, pois estivera ausente de casa na noite do crime, foi tão forte a emoção, ao ver morta a esposa, que caiu fulminado por uma síncope.

A polícia, trabalhando longos dias, não conseguiu descobrir o assassino e, passado o tempo da lei, foi efetuado leilão das raridades que ali colecionara o velho antiquário durante os seus longos anos de vida. John e eu resolvemos adquirir do remate alguma coisa de interessante. Logo, porém, à entrada da porta, recuamos tomados de estranho pavor. Lá estava ao fundo da sala, enorme, muito expressiva, parecendo viva, a imagem de um guerreiro romano! Era Coriolanus, a figura de proa da galera mal-assombrada...


*


Na “Taberna Azul”, tempos depois, comentávamos a coincidência impressionante. O episódio serviu para reforçar ainda mais a lenda do navio fantasma e o capitão Ruben de Cloux encarregou-se de o ir espalhar por toda Inglaterra. Era preciso, de qualquer forma, evitar que a “Coriolanus” ainda viesse a inscrever-se nas corridas da frota de trigo…


Fonte: “O Malho”, edição de 12 de março de 1936.

Ilustração: FnattaStina/Pixabay.


 

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