O DIABO DE PORTO SEGURO - Narrativa Clássica Sobrenatural - Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão


 

O DIABO DE PORTO SEGURO

Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão

(1695 – 1779)


Como falamos neste povo de Porto Seguro, não deixaremos de repetir, como de passagem, um caso acontecido entre eles. Algumas vezes ouvimos falar em o Diabo de Porto Seguro, e sem haver quem nos explicasse o sobre que assentava este vocábulo, só nos vinha à memória termos lido nos primeiros estudos, em um livro castelhano, que nos não lembra o nome, nem a matéria, outro chamado o Diabo de Palermo; até que em um livro de quanto manuscrito por pessoa fidedigna, conforme dá indícios a sua mesma escrita, achamos o princípio que houve para ele, que suposto concorda um com o outro enquanto ao sujeito do vocábulo, é mui diferente no efeito do caso, porquanto aquele de Palermo foi apropriado a este espirito, por deixar-se ver em horrível forma, sobre o alto de um monte daquela cidade, todo fogoso, ameaçando estragos aos seus moradores, e este de Porto Seguro, sem ser visto, serviu de grande bem aos particulares donos de uma só casa: mas ou de um, ou de outro modo, sempre devemos entender que por altos juízos daquela Suprema Inteligência, que tudo dispõem para bem dos homens. Hei de repeti-lo com a mesma frase do seu autor:

Naqueles primeiros anos do descobrimento fatal deste novo Orbe, em que florescia, como primeira planta, a Povoação, e Vila de Santa Cruz, ou Porto Seguro, era nela morador um honrado, e mui cristão homem, chamado Manoel da Cunha, com uma grande família de mulher, e filhos, que cristãmente governava; porém, com tanta pobreza, que se serviam uns aos outros, e se sustentavam miseravelmente à custa de sua pessoal indústria, e trabalho, e da Providência Divina, que nunca em tais casos desamparou a quem nela mais confia, e às vezes supre com socorros sobrenaturais. Lidavam os pobrezinhos em uma noite com o cuidado do que naquela haviam meter na sua boca, quando repararam que em certo lugar da casa havia algumas viandas de comer; viram preparar-se o de cozinha, e que eram servidos em tudo mais, com diligência de serviçal invisível; viram entrar-lhes pela porta o feixe de lenha, o cântaro de água, mesa posta, camas feitas, casa varrida, com que andavam todos pasmados, e dando graças a Deus por tal mercê, que só de sua poderosa mão podia vir: (e entendo que acertavam) e vendo o velho que continuava aquele provimento, e serviço, entrou em novo cuidado, e discursos sobre o segredo; que para lhe vir do Céu era indigno pecador; com que se resolveu a esconjurar o serviçal e perguntar-lhe quem era, o que lhe fazia aquele bem, não esperado, nem usado no mundo: ao que foi respondido, que era o Diabo; com que o pobre homem, como temente a Deus, ficou assombrado, e então o esconjurou mais, e com mais instância lhe requereu da parte do mesmo Senhor, que se fosse de sua casa, porque não queria de sua mão tais serviços; ao que tornou o malvado: “não te canses, nem te molestes ; porque não me hei de ir, e nem deixar de servir-te”. À vista do quê, recorreu o virtuoso homem aos remédios da Igreja, como único de nossas opressões, e confessando-se primeiro, e toda a sua família, chamou o cura para que com os exorcismos santos lhe lançasse da casa aquele infernal perturbador do espiritual sossego. Fê-lo assim o bom pastor quanto às diligências, mas foi desenganado, e respondido pelo mesmo teor, que não havia deixar de servir aquele pobre homem, e a toda a sua casa, e que não houvesse medo que lhe fizesse dano à alma, nem ao corpo, e assim o cumpriu dezesseis anos, com toda a diligencia, ligeireza, e cuidado, sem o perturbar no espiritual, nem temporal. Com que bem se deve entender, que o não fazia de sua vontade, e virtude, e tope embora em só discurso da minha ignorância. Já dissemos parte dos serviços que o tal servente fazia; resta dizermos do modo: era este trazer-lhe a farinha, sem que ele a trabalhasse; a caça, sem que ele a caçasse, e o peixe, que não pescava; porque tudo furtava, a farinha ao farinheiro, a caça ao caçador, e o peixe ao pescador, e assim o mais de que depende o sustento da vida humana. Mas o amo, que por não poder ao fazer, e pela continuação, veio a estar pelos autos, não dispunha de coisa alguma, sem virem os donos, que logo entendiam qual seria o ladrão, os quais se contentavam talvez com partir de meias, levando a metade, a outra, que ficava aos pobres, devia ser a dos dízimos mal pagos, que tudo tem seu desconto. Nestas obras, e outras de cuidadoso serviçal, gastou o moço dezesseis anos, sem prejudicar a nada, nem pedir paga na despedida, e daqui se ficou chamando Diabo de Porto Seguro, bem nomeado nestas partes, e esta história é bem sabida.

É, porém, digno de advertir, que este mesmo Espírito, que naquela casa servia cuidadoso, sem prejuízo dos senhores dela, não deixava de fazer certas travessuras em outras das partes da Bahia, como aponta o próprio relator desta história em outro lugar do seu livro, repetindo outro caso, ou fala sua. Vão as palavras com que o repete: Haverá cem anos (seria pelos de 1570 ou oitenta, porquanto, pelos de 1670 para oitenta, escreveu o seu autor este caso, como consta da dedicatória do seu livro, oferecido à Senhora da Luz, sita no mais alto Pico da Ilha de Tinharé, ou Morro de S. Paulo, em 25 de agosto de 1681, e nela assinado o Capitão Antônio da Fonseca Saraiva1, natural daquelas mesmas partes) haverá, continua ele, cem anos, que estando um Simão D'Armas naquela parte da Barra de Boipeba, com seus escravos, e oficiais, fabricando uma embarcação, ouviu uma noite uma rouca, e desusada voz, que distintamente o chamava de bem perto por seu nome, e como fosse desconhecida, e pouco engraçada, não teve resposta da primeira, mas segundando, se animou o dito Simão D'Armas, por estar bem acompanhado, a perguntar quem era o que o chamava. A que lhe tornou o descarado, que era o Diabo de Porto Seguro, com o que se facilitou mais o Armas a continuar com perguntas (e deixando as mais, que lhe fez, vamos à última, ao nosso intento). Depois do que tornou o Armas: “e de onde apareceste agora, e de donde vens, que há largos tempos, que não ouço falar em tuas travessuras?” Respondeu o Diabo: “venho da Ilha Santiago2, em que morei trinta anos, na qual há uma das maiores maravilhas do mundo.” E eu entendo esteve nela degradado, pela Divina Justiça... mas não consta que ali fizessem mal as suas quimeras, com obras exteriores, como as que obrava este Espirito maligno em algumas partes desta Bahia, pondo fogo a casas à vista de seus donos, que com diligências atalhavam; fazendo furtos de coisas diversas, que viam ir pelos ares (que talvez seriam restituições do alheio), rompendo as roupas em os corpos que as vestiam (deviam ser granjeadas de mau título, ou pagas tarde, e mal), perseguindo a certos sujeitos com ameaços, e pancadas de pouco amor, que de viam de ser em pena de algum demasiado; e assim outros brincos tais de que Deus nos livre. E tornando ao passo das falas, que este teve com o Armas, no fim das ditas se despediu; e perguntado “para onde?”, respondeu que para o aposento dos abismos: quando ouviram um tormentoso estrondo, como de rijo pé de vento, e nunca mais até hoje se teve notícia naquelas partes de tal Espírito.”


Fonte: “Novo Orbe Seráfico Basílico ou Crônicas dos Frades Menores da Província do Brasil”, 1761, Vol. II, reimpresso pelo Instituto Geográfico Brasileiro em 1858.


Notas:

1Antônio da Fonseca Saraiva (1585 - ?) era natural de Cairu/BA. Sabe-se que era filho de Domingos da Fonseca Saraiva e Antônia de Pádua de Góis. Era casado com Francisca Teles Mendes.

2 Possivelmente o autor se refere à maior ilha do Arquipélago dos Açores.

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