O ENFORCADO - Conto Clássico de Terror - Alexandre Dumas
O ENFORCADO
Alexandre Dumas1
(1802 – 1870)
Tradução de autor anônimo do séc. XIX
Quis o acaso que eu fosse designado para servir em uma das quatro igrejas de Étampes, que é da invocação de Nossa Senhora.
A igreja a que eu me refiro é um dos monumentos maravilhosos legados à Idade Média pela época romana. Foi seu fundador Roberto, o Forte2 e ficou concluída no século XII.
Ainda hoje possui vidraças admiráveis que, decerto, logo que a igreja foi edificada, deviam harmonizar-se admiravelmente com as pinturas e dourados de que estavam cobertas com profusão as colunas e capitéis.
Os momentos de maior felicidade que eu passava era no interior da igreja.
A casa que me tinha sido concedida, na minha qualidade de presbítero, era para mim apenas uma pousada de passagem. Servia-me para lá ir comer e dormir, e nada mais.
Sucedia-me, muitas vezes, não me separar da minha formosa Nossa Senhora antes da meia-noite ou uma hora da madrugada.
Já todos sabiam deste meu costume: quando não estava no presbitério, estava na igreja de Nossa Senhora. Lá iam procurar-me, e lá me encontravam.
Assim encerrado, como eu me conservava, naquele santuário da religião e da poesia, eram muito poucos os rumores que me chegavam aos ouvidos do que ia pelo mundo.
Havia, entretanto, entre esses rumores, um que sobremaneira interessava a todos, pequenos e grandes, eclesiásticos e seculares. Os arredores de Étampes estavam sendo assolados pelas façanhas de um sucessor, ou antes de um rival de Cartoucheou de Poulailler3, que, pela sua audácia, parecia destinado a seguir as pegadas daqueles seus predecessores. Esse salteador, que tudo acometia, mas particularmente as igrejas, chamava-se Artifaille.
A circunstância que me obrigou a prestar maior atenção ao que se contava das proezas do salteador foi a de ser sua mulher, que vivia na cidade baixa, em Étampes, uma das minhas penitentes mais assíduas. Era uma mulher honrada e estimável, que sentia remorsos dos crimes que o marido praticava, e, julgando-se responsável perante Deus, como esposa do salteador, passava a vida em orações e a confessar-se, esperando atenuar a impiedade do marido, à força de obras meritórias.
Quanto a ele, era, como já disse, um terrível salteador; não temia nem Deus nem o diabo, e asseverava que a sociedade estava mal organizada, e que ele tinha sido enviado ao mundo para reformá-la.
Dizia mais que, graças aos seus esforços, havia de restabelecer-se o equilíbrio das fortunas, e que era ele unicamente o precursor de uma seita que um dia haveria de pregar aquilo mesmo, que era a comunidade dos bens.
Por mais de vinte vezes, tinha sido preso e levado para a cadeia, mas, quase sempre na segunda ou terceira noite de prisão, conseguia evadir-se. Como ninguém atinava com o modo por que ele fugia, diziam todos que tinha achado uma erva que cortava o ferro.
Gozava, pois, aquele homem do prestígio que cerca tudo quanto parece sobrenatural.
Quanto a mim, declaro que só me lembrava que ele existia quando a pobre mulher vinha ter comigo para confessá-la, e me contava os sustos por que passava, pedindo-me ao mesmo tempo os meus conselhos.
Nessas ocasiões, aconselhava-lhe que usasse de toda a sua influência para com o marido, a fim de levá-lo para o caminho do bem. Porém, a influência da pobre mulher era quase nula. Só lhe restava, portanto, aquele eterno recurso da graça divina que a oração franqueia a todos perante o Senhor.
Estava próxima a festividade da Páscoa. Era na noite de Quinta-feira Santa para a Sexta-feira da Paixão. Durante todo o dia de quinta-feira, tinha eu ouvido um grande número de confissões, e pelas oito horas da noite estava tão cansado que adormeci dentro do confessionário.
O sacristão tinha-me visto a dormir, mas, conhecendo o meu costume, e sabendo que eu tinha comigo uma chave da pequena porta da igreja, não tratou de acordar-me; isso mesmo já me havia acontecido muitas vezes.
Dormia, pois, quando, no meio do meu sono, ouvi dois ruídos ao mesmo tempo.
Um deles era a vibração do sino a dar meia-noite.
O outro era o som de passos sobre as lajes.
Abri os olhos e ia para sair do confessionário quando, à luz dos raios do luar, que penetravam pelos vidros de uma das janelas, julguei ver um homem. Como o vulto caminhava cautelosamente, concluí que não era nenhum dos coroinhas, nem o chantre, nem fiel algum que tivesse ficado na igreja, mas, sim, alguém que ali estava com más intenções.
O visitador noturno dirigiu-se para o coro. Apenas lá chegado, parou, e, passado um momento, ouvi que estava ferindo lume. Vi brilhar uma faísca e logo uma mecha comunicou a sua luz vacilante à extremidade de uma das tochas do altar.
Pude, então, ver, à luz da tocha, um homem de estatura mediana, com duas pistolas e um punhal à cinta. O seu semblante era mais zombeteiro do que terrível: lia-se-lhe nos olhos antes o escárnio do que a ferocidade. Depois de lançar um olhar investigador por todo o espaço iluminado pelo clarão da tocha, pareceu ficar completamente sossegado com o exame.
Em seguida, sacou do bolso não um molho de chaves, mas sim de gazuas. Com o auxílio de uma delas, abriu o tabernáculo, tirou para fora o santo cálix, que era uma taça magnífica, de prata muito antiga, lavrada no reinado de Henrique II, depois uma custódia, que tinha sido doada à cidade pela rainha Antonieta, e, finalmente, duas galhetas de prata dourada.
Como não existia no tabernáculo mais coisa alguma, tornou a fechá-lo com todo o cuidado e ajoelhou para abrir a parte inferior do altar onde havia um relicário.
Na parte inferior do altar estava encerrada uma Nossa Senhora de cera, com uma coroa de ouro e diamantes, e um vestido recamado de pedras finas.
Ao cabo de cinco minutos, já o relicário estava aberto, como o tabernáculo, com o auxílio de uma chave falsa, e ia-se dispondo a juntar o vestido e a coroa às galhetas, cálix e custódia, quando eu, para evitar que se levasse a efeito semelhante furto, saí do confessionário e caminhei para o altar.
O barulho que fiz, ao abrir a porta, obrigou o ladrão a voltar-se. Dirigiu os olhos para o meu lado e procurou sondar com a vista a escuridão da igreja; porém, o confessionário ficava fora do alcance da luz, de forma que só me viu quando entrei no círculo feito pelo trêmulo clarão da tocha. Apenas avistou um homem, o ladrão tirou uma pistola da cinta e apontou-a para mim.
A minha comprida sotaina preta logo lhe deu a conhecer que era eu simplesmente um pobre e inofensivo padre, tendo por única salvaguarda a fé, por única arma a palavra.
Apesar da ameaça da pistola engatilhada para mim, adiantei-me até os degraus do altar. Estava convencido de que, se ele desfechasse o tiro, a bala se desviaria do alvo ou a pistola negaria fogo. Tinha eu levado a mão à minha medalha e sentia-me escudado pela proteção do sagrado amor de Nossa Senhora.
Pareceu-me que a tranquilidade do pobre e humilde cura fizera alguma impressão no salteador.
—Que quer? — perguntou-me ele com voz mal segura.
—Tu és, sem dúvida, Artifaille! — disse eu com grande calma.
—Certamente! — respondeu ele. —Quem, senão eu, se atreveria a entrar só, desta maneira, em uma igreja?
—Pobre pecador endurecido, que assim te vanglorias do teu crime! — disse-lhe. —Não sabes, infeliz, que, nessa vida que levas, perdes não só o teu corpo, mas também a tua alma?
—Histórias — disse ele. —Pelo que respeita ao meu corpo, já tem escapado tantas vezes, que conservo toda a esperança de que ainda escape mais algumas; quanto à minha alma...
—Quanto à tua alma?…
—Isso é lá com minha mulher! A pobre criatura tem santidade de sobra para dois, e há de salvar a minha alma juntamente com a dela!
—Tens razão! A tua esposa é uma santa, meu amigo, e morreria, por certo, de pesar se lhe constasse que tinhas praticado o crime que estavas para efetuar.
—Oh! Julgas, então, que a minha pobre mulher morreria por isso?
— Tenho toda a certeza.
—Ora essa! Então estou para ficar viúvo! — exclamou Artifaille, dando uma gargalhada sarcástica e estendendo a mão para os vasos sagrados.
Porém, eu galguei rapidamente os três degraus do altar e detive-lhe o braço.
—Não! — disse eu. —Não hás de cometer semelhante sacrilégio!
—Quem mo impedirá?
—Eu!
—Por meio da força?
—Não; pela persuasão. Deus não conserva os seus ministros sobre a terra para que empreguem a força, que é uma coisa humana, mas, sim, a persuasão, que é uma virtude divina. Meu amigo, isto que te estou dizendo não é por causa da igreja, que essa pode adquirir outros vasos; mas por ti, por ti, que não poderás remir o pecado que vais cometer. Meu amigo, não, não praticarás tal sacrilégio.
—Ora, diga-me, meu padre: está acaso persuadido de que é este o primeiro que pratico?
—Não. Estou convencido de que muitos outros pesam sobre a tua consciência. Mas que importa isso? Tens andado às cegas até aqui. Esta noite, abrir-se-ão teus olhos à luz e mudarás de vida. Nunca ouviste contar que houve, uma vez, um homem chamado Saulo, que guardou as capas dos que apedrejavam Santo Estêvão? Pois bem. Esse homem, segundo ele próprio confessou, tinha os olhos cobertos de escamas; mas um dia caíram-lhe as escamas dos olhos, e ele viu, e foi depois São Paulo.
—Diga-me uma coisa, Sr. abade, São Paulo não morreu enforcado?
—Morreu, sim4.
—Nesse caso, de que lhe serviu a vista?
—Serviu-lhe para se convencer de que do suplício pode, às vezes, resultar a salvação. Hoje em dia venera-se na terra o nome de São Paulo, e está ele no céu, onde goza da eterna bem-aventurança.
—Que idade tinha São Paulo quando começou a ver?
—Trinta e cinco anos.
—Então já não estou na idade própria. Tenho quarenta anos.
—Para o arrependimento sempre é tempo. Jesus, pregado na cruz, dizia para o mau ladrão: “Se orares a Deus, salvo-te!”
—Diga-me, Sr. abade; tem, pelo que vejo, muito apego a estes objetos de prata? — perguntou o salteador, encarando-me.
—Não; o meu apego é à tua alma, que quero salvar.
—A minha alma! E quer, talvez, que eu me capacite disso! Bem se importa o Sr. abade com ela!
—Queres uma prova do desejo que tenho de salvar a tua alma?— perguntei-lhe.
—Quero.
—Em quanto avalias tu o roubo que ias cometar aqui?
— Eh! Eh! — disse o salteador, rindo-se e olhando para as galhetas, cálix, custódia e vestido da virgem. — Pode tudo custar três mil francos.
—Três mil francos?
—Bem sei que tudo isto vale o dobro dessa soma; porem, há de me ser preciso perder ao menos dois terços. Os demônios dos judeus são tão ladrões!...
—Vem comigo à minha casa.
—À tua casa?
—Sim, à minha casa, ao presbitério. Possuo mil francos e dar-lhe-ei essa quantia por conta.
—E os outros dois mil?
—Os outros dois mil? Prometo-te, à fé de padre, que hei de buscá-los à minha terra. Minha mãe possui alguns bens. Venderei três ou quatro jeiras de terras para obter os dois mil francos e dar-tos-ei.
—Sim; e, a título de me marcar sítio para ir buscá-los, far-me-á cair em algum laço? Essa para cá é que não pega, senhor padre!
—Tu não crês no que estás dizendo — repliquei eu, estendendo-lhe a mão.
—Pois sim… Não creio! —resmungou ele com o olhar carregado.
E, instantes depois, perguntou-me:
—Sua mãe é muita rica?
—Minha mãe é pobre.
—Sendo assim, vai ficar desgraçada!
— Quando eu lhe disser que, a troco de sua desgraça, salvei talvez uma alma, abençoar-me-á. E, demais, se não lhe ficar coisa alguma, virá viver comigo, e o que eu tenho sempre há de chegar para dois.
—Aceito —disse ele. — Vamos à sua casa.
—Vamos. Mas espera.
—O quê?
—Torna a meter no tabernáculo os objetos que de lá tiraste e fecha-o à chave. Anda, que é uma ação meritória.
O salteador encrespou as sobrancelhas e hesitou. Dominado, porém, pela fé que seu pesar o subjugava, tornou a meter os vasos sagrados no tabernáculo e fechou-o à chave.
—Vamos, disse ele.
—Benze-te primeiro — ordenei eu.
Quis soltar uma gargalhada de escárnio, porém o riso sufocou-se-lhe nos lábios.
Em seguida, benzeu-se.
—Agora, segue-me — disse eu.
Saímos pela porta pequena. Em menos de cinco minutos, chegamos à minha casa. Durante o caminho, apesar de não ser grande a distância, deu o salteador sinais de inquietação, olhando continuamente em torno de si, com receio de que o não fizesse eu cair em alguma cilada.
Quando chegou à minha casa, entrou e parou junto à porta.
—Então? Onde estão os mil francos? —perguntou ele.
—Espera — respondi eu.
Acendi uma vela, abri um armário e tirei dele um saco.
—E agora? Os outros dois mil, quando mos dá?
—Peço-te seis semanas de espera.
—Muito bem. Concedo-lhe as seis semanas.
—A quem os hei de entregar?
O salteador refletiu um instante.
—À minha mulher — disse ele.
—Está bem.
—Porém, ela não há de saber donde eles provêm, nem como foram ganhos.
— Nem ela, nem pessoa alguma, o há de saber. E tu prometes que nunca há de fazer tentativa contra a igreja de Nossa Senhora de Étampes, nem contra nenhum outro templo sagrado?
—Prometo!
—Dá-me a tua palavra?
—Dou-lhe, palavra de Artifaille, que nunca voltou atrás!
—Vai, pois, irmão, e não tornes a pecar.
Disse-lhe adeus com a mão, dando lhe a entender que se podia retirar.
Pareceu hesitar um instante; mas, por fim, abriu a porta com cautela e desapareceu.
Ajoelhei-me e orei a Deus por aquele homem.
Ainda eu não tinha concluído a minha oração quando senti bater à porta.
— Entra! — disse eu, sem voltar o rosto.
Entrou efetivamente alguém que, vendo-me a rezar, parou e permaneceu de pé atrás de mim.
Acabada a minha reza, voltei-me e vi Artifaille, perfilado e imóvel junto à porta, com o seu saco debaixo do braço.
— Aqui tem —disse ele. — Venho restituir-lhe os teus mil francos.
—Os meus mil francos?
—Sim. E não quero os outros dois mil.
— E, apesar disso, hás de cumprir a promessa que me fizeste?
—Sim, cumprirei.
—Então, estás arrependido?
—Não sei se estou arrependido, ou não; o que sei é que não quero o seu dinheiro.
E, dizendo estas palavras, pôs o saco sobre a extremidade de um aparador. Depois de largar o saco, parou ainda, como para me pedir alguma coisa; conhecia-se, porém, que lhe custava a dizer o que pretendia.
—Que queres tu? —perguntei-lhe. — Fala, meu amigo. Isto, que acabas de praticar, é digno de louvor. Não te envergonhes da ação que fizeste!
—O senhor abade tem grande devoção à Nossa Senhora? —perguntou ele.
—Muito grande!
—E julga que, mediante a sua intercessão, um homem, por muito criminoso que seja, poderá salvar-se à hora da morte? Pois se assim é, em troca dos três mil francos, que eu não aceito, dê-me alguma relíquia, algum rosário ou algum registro da santa para que eu a possa beijar à hora de minha morte.
Tirei a medalha e o cordão de ouro, que minha mãe me havia lançado ao pescoço no dia em que eu nascera, e que, até então, nunca me havia deixado, e dei-os ao salteador.
Artifaille levou a medalha aos lábios e deitou a fugir.
Passou-se um ano sem que eu ouvisse falar de Artifaille. Provavelmente, tinha abandonado Étampes para ir exercer a sua profissão em outro distrito.
Um dia, recebi eu uma carta do meu colega, cura de Fleury. Minha boa mãe estava muito doente e chamava-me para junto de si. Alcancei uma licença e pus-me a caminho.
Minha mãe recobrou a saúde no fim de seis semanas ou dois meses de desvelos e orações dirigidas a Deus. Separamo-nos, alegre eu, e ela de saúde perfeita, e regressei para Étampes.
Cheguei numa sexta-feira à noite. Estava a cidade toda alarmada. O famigerado salteador Artiffaile tinha sido preso nas vizinhanças de Orleans e, depois de julgado e sentenciado pelo tribunal daquela cidade, havia sido conduzido a Étampes para ser enforcado, isto porque, neste último distrito, tinha ele cometido os seus principais delitos.
Foi isto o que me disseram na rua; mas, quando entrei no presbitério, tive mais outra notícia: uma mulher da cidade baixa tinha vindo desde a manhã da véspera, isto é, desde o momento da chegada de Artilaille a Étampes para ser justiçado, indagar, mais de dez vezes, se eu já havia regressado.
Não era para admirar esta insistência em me procurar. Eu tinha escrito, mandando dizer que estava para chegar, e era esperado de um instante para outro.
Na cidade baixa, só conhecia a pobre mulher que tinha enviuvado. Resolvi-me a ir à casa dela sem me demorar a sacudir o pó dos sapatos.
Distava o presbitério apenas uns passos da cidade baixa. É verdade que estavam dando dez horas da noite; mas lembra-me de que, estando ela com tanto desejo de me falar, não a incomodaria a minha visita. Dirigi-me, pois, ao arrabalde e pedi que me ensinassem a casa dela. Como toda a gente a tinha em conta de santa, ninguém lhe lançava em rosto os crimes do marido, nem lhe exprobava a infâmia de que ele a cobrira.
Cheguei à porta. O postigo da janela estava aberto e pelos vidros vi que a pobre mulher estava ajoelhada, a rezar, aos pés da cama. Pelo movimento dos ombros, facilmente se conhecia que a oração era acompanhada de lágrimas.
Bati à porta.
Ela levantou-se e correu a abri-la.
—Ah, Sr. abade! — exclamou a pobre mulher. —Bem me adivinhava o coração! Quando bateram à porta, logo julguei que fosse o senhor. Infelizmente, chegou tarde! Meu marido morreu sem confissão!
—Então morreu com maus sentimentos?
—Não, Sr. abade. Estou certa de que, lá no fundo do coração, era bom cristão e temente a Deus; mas tinha declarado que não queria outro padre senão o senhor, que só ao senhor se confessaria e que, se o não visse, confessar-se-ia somente à Nossa Senhora.
—Disse-te isto?
—Sim. E, ao passo que o dizia, beijava uma medalha da Virgem, que trazia ao pescoço, pendurada em um cordão de ouro. Recomendou muito que não lhe tirassem aquela medalha, asseverando que, se o enterrassem com ela, não teria o espirito mau nenhum poder sobre o seu corpo.
—E foi tudo quanto disse?
—Não, senhor abade. Quando se separou de mim para caminhar ao patíbulo, também me disse que o senhor chegaria esta noite, e que viria me visitar logo que chegasse; eis aí o motivo por que eu estava à sua espera.
—Ele disse-te isso? — perguntei, admirado.
—Disse, sim; e, depois, ainda incumbiu-me de pedir-lhe outro favor.
—A mim?
—Sim, senhor. Disse-me que, a qualquer hora que o senhor viesse, pedisse-lhe... Oh, meu Deus! Não me atrevo a dizer-lhe o resto.
—Fala, boa mulher.
—Disse-me ele que lhe rogasse o favor de ir à praça onde está a forca, e que rezasse por baixo do seu corpo, e por sua alma, cinco Padres-Nossos e cinco Ave-Marias. Afirmou-me que o Sr. abade não se recusaria a fazer-lhe este último favor.
—E disse bem, porque já para lá vou.
—Oh, quanto o senhor é bom!
Pegou-me nas mãos e quis beijar-mas. Desprendi-me dela.
—Ora, vamos, boa mulher! — disse-lhe. — Coragem!
—Deus ma dará, Sr. abade. Eu não me queixo.
—Não pediu mais coisa alguma?
—Não.
—Muito bem. Se para o eterno descano de sua alma basta a satisfação desse pedido, sua alma há de descansar.
Saí.
Eram pouco mais ou menos dez horas e meia. Estávamos no fim de abril e as noites eram frias. Contudo, o céu estava formosíssimo. A Lua clareava o horizonte e nem uma nuvem toldava o azul do infinito.
Rodeei as antigas muralhas da cidade e cheguei à porta chamada de Paris. Depois das onze horas da noite, era a única porta de Étampes que se conservava aberta.
O lugar para onde eu me dirigia era uma esplanada, que ainda hoje é, como naquele tempo, o ponto mais alto da cidade. A única diferença é que, hoje, já não existem outros vestígios da forca que ali estava levantada, além de três fragmentos de alvenaria, que serviam de base às três estacas unidas entre si por duas traves que formavam o patíbulo.
Para chegar à esplanada, que fica à esquerda da estrada, quando se sai de Étampes para Paris, e, à direita, vindo de Paris para Étampes, era preciso passar ao pé da torre de Quinette, que parecia uma sentinela destacada na planície para estar de guarda à cidade.
Aquela torre que Luís XI mandou minar em outro tempo5, sem conseguir fazê-la ir pelos ares, ficou arruinada pela explosão, e parece estar a olhar para o patíbulo, de que só vê a extremidade, como a órbita de um olho imenso privado da pupila.
De dia, servia de asilo aos corvos; à noite, é o palácio das corujas e dos mochos.
Não direi que ia com medo. O homem que crê em Deus, e nele tem confiança, não deve temer coisa alguma. Sentia-me, porém, comovido.
Não se ouvia outro ruído além do tique-taque monótono do moinho da cidade baixa, do piar dos mochos e das corujas, e do sussurro do vento por entre o tojo.
Tomei, acompanhado pelo pio dessas aves noturnas, o caminho da esplanada, que era um trilho estreito e escabroso, cortado na rocha e coberto de abrolhos.
Palpitava-me o coração. Parecia-me que ia ver não o que eu tinha vindo presenciar, mas algum outro acontecimento inesperado. Fui subindo sempre.
Quando cheguei a certa altura da subida, comecei a distinguir a extremidade superior da forca formada de três estacas e de duas traves de carvalho.
Nas traves de carvalho, estavam pregadas umas cruzes de ferro a que suspendiam os justiçados.
Via de longe como uma sombra que se movia. Devia ser o corpo do infeliz Artifaille balouçado no ar pelo vento.
De repente, estaquei. Já ia descobrindo o patíbulo, desde a extremidade superior até a base, e divisava um vulto informe, que parecia um animal de quatro pés a mover-se.
Parei e deitei-me atrás de um rochedo. O animal era maior do que um cão e mais pesado do que um lobo.
Súbito, ergueu-se sobre os pés, e reconheci, então, que o que eu julgara um animal irracional, uma espécie de lobo, era um homem.
Qual seria o motivo por que estava um homem àquela hora debaixo de uma forca, a não ser movido por sentimentos religiosos, para orar, ou por sentimentos irreligiosos, para cometer algum sacrilégio?
Em todo o caso, resolvi conservar-me escondido e esperar.
O homem pegou uma escada de mão que estava deitada, levantou-a e a encostou à trave que ficava mais próxima do enforcado.
Em seguida, subiu.
Depois, formou, juntamente como enforcado, um grupo singular em que o vivo e o morto pareciam confundidos num abraço.
De repente, soou um grito terrível, pavoroso.
Vi que os dois corpos se agitavam. Ouvi bradar por socorro com uma voz cavernosa, como de quem está sendo estrangulado…
Pouco depois, um dos dois corpos desprendeu-se da forca, enquanto que o outro ficava pendurado na corda, a agitar os braços e as pernas.
Era-me impossível compreender o que se passava junto da infame máquina; mas, enfim, fosse obra do homem ou do demônio, era, sem dúvida, alguma coisa extraordinária, por isso que havia alguém que gritava e pedia que lhe acudissem.
Corri naquela direção! O enforcado, à minha vista, parecia que se agitava ainda mais, ao passo que, por baixo dele, jazia, imóvel no chão, o corpo que se havia soltado do patíbulo.
Acudi o vivo. Subi rapidamente os degraus da escada e cortei a corda com a minha navalha. O enforcado caiu ao chão e eu saltei da escada abaixo.
O enforcado torcia-se em horríveis convulsões; o outro se conservava imóvel. Percebi que o nó corrediço continuava a apertar o pescoço do pobre-diabo. Deitei-me sobre ele para obrigá-lo a ficar quieto e, com muito trabalho, alarguei o nó que o estrangulava.
Durante esta operarão, que me obrigava a encarar o homem, conheci, com grande pasmo, que era o carrasco.
Tinha os olhos fora das órbitas, o rosto roxo, o queixo quase deslocado. Ele arquejava, produzindo um som que mais parecia um estertor do que respiração.
Contudo, o ar ia-lhe penetrando pouco a pouco nos pulmões. Eu tinha-o encostado a um pedregulho. No fim de alguns instantes, tornou a si, tossiu, voltou o pescoço e acabou por encarar-me.
Não foi menor a sua admiração do que tinha sido a minha.
—Oh! Sr. abade!…
—Que veio fazer aqui? — perguntei-lhe.
Pareceu reunir as ideias. Tornou a olhar em derredor; mas, desta vez, deu com o cadáver.
—Ah! —disse ele, procurando levantar-se. — Sr. abade, em nome do céu, vamo-nos embora!
—Tenho um dever a cumprir.
—Aqui?
—Sim.
—Qual é ele?
—Este desgraçado, que hoje enforcaste, desejou que eu viesse rezar, ao pé da forca, cinco Padres-Nossos e cinco Ave-Marias pela salvação de sua alma.
—Oh, Sr. abade! Há de custar-lhe muito a salvá-lo! Olhe que é Satanás em pessoa!
—Como?
—Pois o senhor não viu o que ele me fez?
—Então, o que fez ele?
—Enforcou-me, com os demônios!
—Enforcou-te?! Eu julgava, pelo contrário, que eras tu quem lhe havia prestado tão triste serviço!
—É verdade! E palavra de honra que estava convencido de tê-lo enforcado com todas as regras. Contudo, parece que me enganei! Mas, também, por que não se aproveitou ele do tempo em que eu estive à dependura para se livrar?
Fui direito ao cadáver. Levantei-o. Estava frio e inteiriçado.
—Porque está morto — respondi.
—Morto! — exclamou o carrasco. —Morto! Ah, com mil diabos! Isso então é muito pior! Fujamos, Sr. abade. Fujamos!
E levantou-se.
—Não! Não me atrevo! — continuou ele. — Antes, quero ficar; tenho medo de que se ponha de pé e deite a correr atrás de mim! O senhor, ao menos, que é um santo homem, defender-se-á.
—Meu amigo — disse eu para o carrasco, encarando-o com severidade —, aqui anda algum mistério! Diga-me: o que veio aqui fazer?
—Sr. abade… eu, eu lhe digo…
E deu um passo para trás.
—O que é? — perguntei-lhe.
—Aquele sujeito não está a se mexer?
—Não. O infeliz está morto.
—Pois saiba que o maldito nem quis ouvir falar confissão. Apenas, de vez em quando, dizia:
“— Já chegou o abade Moulle?
“ Respondia-se-lhe:
”—Ainda não.
“Dava então um suspiro. Oferecia-se-lhe outro padre, e ele respondia:
“—Não! Há de ser o abade Moulle… Não quero outro.”
—Sim, já me disseram isso.
—Quando chegamos ao pé da torre de Guinette, parou, e disse-me:
”—Olhe para a estrada e veja se já aí vem o abade Moulle.
“—Não — respondi.
“Enfiei-lhe à corda ao pescoço. Fi-lo pôr o pé no primeiro degrau da escada e disse-lhe:
“—Sobe!
“Subiu, sem hesitar.
“Mas, quando chegou a dois terços da escada, ainda perguntou-me:
”—Então, o abade Moulle ainda não veio? Espere! Quero ter a certeza de que ele não vem.
“— Sim —disse eu; — ninguém o proíbe.
“Lançou, então, a vista uma última vez pela multidão, mas, como o não visse, suspirou. Pensei que já estava resignado e que só me faltava empurrá-lo; porém ele, assim que viu o movimento que eu fizera, disse-me:
“— Espere!
“—Que temos mais?
“—Queria beijar a medalha de Nossa Senhora que trago ao pescoço.
“—É justo — respondi.
“E, pegando a medalha, levei-lha à boca.
“— Que mais queres? — perguntei.
“—Quero ser enterrado com esta medalha.
“— Não sei como isso há de ser — repliquei eu; — bem sabes que o espólio do justiçado pertence ao carrasco.
“—Não quero saber disso; desejo ser enterrado com a minha medalha!
”—Já me vai parecendo muita exigência! —exclamei.
“Vi como já ele estava pronto, dei-lhe um empurrão e atirei-o ao espaço, dizendo:
“ —Vai-te para o diabo!
“—Nossa Senhora, tende pied… —foi tudo quanto disse, porque o nó da corda afogou ao mesmo tempo o homem e a frase.
“No mesmo instante, agarrei-me à corda, conforme o costume, saltei-lhe aos ombros e —ão! ao! — acabou-se tudo. Não lhe dei motivo de queixa, Sr. abade; asseguro-lhe que não padeceu muito.”
—Sim; mas toda essa história não me explica o motivo da sua vinda aqui, a esta hora da noite!
—Ah! É porque essa parte da história é a que mais me custa a contar!
—Pois eu a acabo. Tu vieste aqui para lhe tirares a medalha.
—É verdade, senhor abade! Foi o diabo que me tentou! Disse eu comigo: —“Sim, tu queres ficar com ela? Isso é fácil de dizer, mas deixa que anoiteça, e veremos então!”
“Logo que anoiteceu, saí de casa. Tinha deixado a minha criada aqui perto; sabia onde havia de encontrá-la. Fui dar um passeio; voltei pelo caminho mais comprido e, depois, quando vi que já não andava gente na esplanada, nem se sentia barulho algum, cheguei-me à forca, encostei a escada, subi, puxei o enforcado, tirei-lhe o cordão, e…”
—E que mais?
—Ah, Sr. abade!… No instante em que a medalha lhe saiu do pescoço, o enforcado agarrou-me, tirou a cabeça para fora do nó corrediço, enfiou-o na minha e, sem mais cerimônia, empurrou-me como eu o havia empurrado. Eis aí como a coisa foi!
—É impossível! Estás enganado!
—Não me achou o senhor enforcado?
—Sim.
—Pois juro que não fui eu que enforquei a mim mesmo!
—E a medalha — perguntei eu —, onde está?
—Não sei. Quando me senti enforcado, larguei-a.
Lancei o olhar em derredor.
Um raio fazia-a resplandecer, como para me guiar na minha busca. Apanhei-a. Fui direito ao cadáver do pobre Artifaille e deitei-lhe a medalha ao pescoço.
No momento em que ela lhe caiu sobre o peito, uma espécie de tremor agitou-lhe o corpo todo e um grito agudo — e quase doloroso — saiu-lhe do peito. O carrasco deu um pulo para trás.
Com este grito, a minha mente iluminou-se. Recordei-me do que dizem as escrituras sobre exorcismos e do grito que os demônios emitem quando saem dos corpos dos possuídos.
—É preciso tornar a colocar esse cadáver no seu lugar —disse-lhe.
—Isso nunca! Era o que faltava! Para que ele torne a enforcar-me?
—Não há perigo algum — afirmei. —Enquanto o corpo conservar aquela medalha, não tens a temer.
—Por que razão?
—Porque não tem o demônio poder sobre ele. A medalha o protegia, mas o senhor a retirou. Naquele exato momento, o espírito maligno, que o tinha induzido ao mal, e que havia sido expulso por seu anjo bom, retornou ao cadáver. E você viu qual foi a obra desse espírito maligno.
—E esse grito que acabamos de ouvir?
—Era o do demônio que oprimia o enforcado, ao perceber que sua presa se lhe escapava.
—Bem — disse o carrasco—, deve ter sido mesmo isto.
—Foi isto.
—Então, vou colocá-lo de volta ao gancho.
—Faça-o. A justiça deve seguir o seu curso. A condenação deve ser cumprida.
O pobre-diabo ainda hesitava.
— Não temas —disse-lhe. — Eu me responsabilizo por tudo.
— De qualquer modo — continuou o carrasco —, não me perca de vista e, ao menor grito, venha socorrer-me.
— Não te preocupes, tu não vais precisar de mim.
Aproximou-se do cadáver, ergueu-o gentilmente pelos ombros e puxou-o à escada, falando-lhe ao mesmo tempo:
—Não tenhas medo, Artifaille. Aqui não estamos para te furtar a medalha. Não nos vai perder de vista, não é mesmo, Sr. abade?
—Não, meu amigo. Não te preocupes.
—Não é para te furtar a medalha — continuou o carrasco, no seu tom mais conciliador. — Não te preocupes. Já que a quiseste, serás enterrado com ela. É verdade: ele não se mexe, padre.
— Podes ver com os seus teus próprios olhos.
— Artifaille será enterrado com ela. A tanto, eu a ponho de volta no seu lugar, a pedido do Sr. abade… Porque, quanto a mim, o senhor compreende!
— Sim, sim — disse eu, sem conseguir deixar de sorrir. — Mas termine logo com isto!
—Bem, está feito —disse ele, soltando o corpo que acabara de prender ao gancho e, ao mesmo tempo, saltando ao chão.
E o corpo balouçava-se no espaço, imóvel e inanimado.
Então, pus-me de joelhos e comecei a rezar as orações que Artifaille me tinha pedido.
—Sr. abade —disse o carrasco, pondo-se de joelho ao meu lado —, quer fazer-me o favor de rezar em voz alta e pausadamente para eu poder repetir as suas palavras?
—Como, desgraçado! Pois tu já não sabes rezar?
—Parece-me que nunca soube.
Rezei os cinco Padres-Nossos e as cinco Ave-Marias, que o carrasco repetiu escrupulosamente.
Ergui-me depois.
—Artifaille — disse eu em alta voz, dirigindo-me ao cadáver —, fiz quanto pude para salvar a tua alma. A bem-aventurada Nossa Senhora te proteja.
—Amém! — disse o carrasco.
Nesse instante, um raio de luar alumiou o cadáver qual uma cascata de prata. Dava meia-noite na igreja de Nossa Senhora.
—Vamos — disse eu para o carrasco. — Já nada temos que fazer aqui.
—Senhor abade, peço-lhe um favor —murmurou o pobre-diabo.
—Qual seria o favor?
—Acompanhe-me até minha casa. Enquanto eu não sentir que a minha porta está bem fechada, entre mim e esse cadáver, não terei paz de espírito.
—Vem, meu amigo.
Saímos da esplanada. O meu companheiro, contudo, não parava de se virar para ver se o enforcado permanecia no seu lugar.
Nada se mexeu.
Voltamos à cidade. Levei o meu companheiro para casa. Esperei que ele a iluminasse. Depois, ele fechou a porta, despediu-se e agradeceu-me através da porta.
Voltei para casa, perfeitamente calmo de corpo e alma.
No dia seguinte, quando acordei, disseram-me que a mulher do salteador queria falar-me.
Fui ao seu encontro. Trazia o rosto sereno e quase alegre.
—Que queres, boa mulher? —perguntei-lhe.
—Senhor abade — disse ela —, venho agradecer-lhe. Meu marido apareceu-me ontem, quando estava dando meia-noite na igreja de Nossa Senhora, e disse-me: “Amanhã, pela manhã, hás de ir ter com o abade Moulle e dir-lhe-ás que me salvei por intervenção dele e de Nossa Senhora.”
Texto condensado. Fonte: “Pacotilha”/MA, edições de 15, 16, 17 e 19 de julho de 1889.
Fizeram-se adaptações textuais.
Notas:
1Com a colaboração de Paul Lacroix (1806 – 1884) e Paul Bocage (1822 – 1887).
2Roberto, o Forte (815 – 866) foi um importante membro da aristocracia franca. Crê-se, contudo, que a fundação da igreja de Nossa Senhora deva-se, verdadeiramente, a Roberto, o Piedoso (972 – 1031), por volta do ano 1000.
3Cartouche foi um bandido parisiense, executado em 1721, após dez anos de atividade criminosa. Poulailler, do séc. XVIII, era um ladrão que tinha por predileção assaltar fazendas isoladas.
4Conforme a tradição cristã, Paulo de Tarso (c. 5 – c. 67) teria sido decapitado. Este é o registro de Eusébio de Cesareia (c. 265 – 339).
5Na verdade, o rei Luís XI (1423 – 1483) jamais tentou explodir a torre de Guinette. Tal tentativa foi obra do rei Henrique IV (1553 – 1610), em 1598, a pedido do próprio povo de Étampes.
Comentários
Postar um comentário