O HOMEM QUE SE ENTERROU VIVO - Conto Clássico de Horror - Aluizio Coimbra
O HOMEM QUE SE ENTERROU VIVO
Aluizio Coimbra
(1903 – 1951)
Havia na esquina do quarteirão de Fabrício um botequim reles e mal frequentado, dirigido pela Guilhermina. Era admirável que uma mulher, e já entrada em anos, conseguisse manter uma relativa ordem naquela baiuca. Mas Guilhermina pertencia à classe desses viragos que são muito mais que homens. Alta, gorda, possante, confiava aos seus braços de atleta obeso o policiamento da tasca. Muitas e muitas vezes tinham-na visto pôr fora, a trompaços, fregueses recalcitrantes. Para os devedores remissos, usava o recurso de entrar-lhes pelas casas a dentro e tomar-lhes os móveis. E, nos casos extremos, contava com o auxílio do cabo Amaro, que era seu amante há quinze anos e quase sempre estacionava no bairro.
A mulher suportava de má cara o Fabrício. Este era um tipo viciado e insolente que, uma vez por outra, onde quer que estivesse, levantava uma arruaça. Tinha os bofes no pé da goela para dizer desaforos. Por causa dele, em mais de uma feita, a autoridade aparecera, ameaçando complicações, prometendo mandar fechar o armazém. Fabrício embriagava-se amiúde. Nesses dias, tornava-se terrível. Descompunha, maltratava, queria espancar meio mundo. Dizia-se que tinha na consciência duas ou três morte.
*
Naquela noite, entrou cedo. Ainda bem logo depois das seis horas, o Zé Rufino e o Anselmo não tinham puxado os pesados portões do cemitério, já ele se abancava e pedia a aguardente costumeira. O Stênio, um menino claro, de olhos azuis, que não se sabia como viera parar àquele covil, foi quem lhe trouxe o copinho. Fabrício reclamou, brutalmente, com palavrões, a garrafa inteira. E ficou, curvado sobre a mesinha de ferro, as costas abauladas, numa posição de preguiça e de enfado, a sorver o líquido de fogo em goles pequenos e repetidos.
Do seu canto, pela porta escancarada, distinguia, nitidamente recostado sobre o plenilúnio nascente, o muro ameiado do campo dos mortos, que ficava perto, a pouco mais de cem metros. Emergindo acima dos perfis agudos dos mausóleos caiados, a capela levantava-se branca e triste, sem torres, o sino silencioso pendente de uma ogiva no frontal. Em volta, as casuarinas oscilavam no seu eterno rumorejar. E no último plano, por trás dos túmulos de tijolo e de mármore, havia a infinita ondulação das sepulturas rasas: montículos de terra negra, encimados por uma cruz negra.
Fabrício pensava na festa do Croatá, que tinha perdido por sua estupidez, e sentia-se irritadiço, com uma cólera crescente dentro dele e ameaçando fazer explosão ao menor pretexto. Na véspera, por motivos de ciúmes, tinha brigado com a Ambrosina, com quem namorava há dois meses e tinha dito e jurado que não iria à festa. A rapariga afastara-se, com os olhos arrasados d'água, ferida pela brutalidade do rompante. Fosse ele agora aparecer lá para ficar desmoralizado!…
Vida miserável!… Passar o dia todo malhando ferro na oficina dum patife, que o explorava, e, à noite, não ter uma distração. Aquilo não podia durar. Que diabo! Um homem não é um bicho…
*
Sentiu uma palmada forte e jovial nas costas. Aquela sensação inesperada fê-lo crispar os dedos contra a garrafa, numa agastura. Voltou-se, a fisionomia turva, o gesto rápido e irado, e deu com o Raimundo Galdino. Um caboclo entroncado e sólido, de traços simpáticos, ferreiro também.
—Assustaste-te, rapaz? — perguntou, risonho.
Fabrício respondeu com voz aborrecida que não, mas que nem sempre estava disposto àquelas familiaridades e que queria que os seus amigos o respeitassem.
—Ora, Fabrício, não te zangues por tão pouco. Tu és o primeiro a fazer dessas conosco, quando estás na tua veia.
—Não, senhor, eu respeito para ser respeitado…
—Deixa-te de lérias, camarada. Olha, desde ontem que te procuro…
—Já sei, já sei. É sobre o negócio do dinheiro, não é?
—É, Fabrício, eu estou apertado. Amanhã já é cinco do mês e o homem da casa já me mandou o recibo uma porção de vezes. Preciso daqueles quinze mil réis para completar o aluguel…
— Tu também és estúpido, homem. Só vens me procurar na hora, pondo logo a faca nos peitos!
— Vê se me arranjas esse dinheiro até amanhã…
— Que amanhã! Nem meio amanhã, seu idiota! Então pensas que eu tenho quinze mil réis no bolso a qualquer hora? Se eu tivesse, não precisava trabalhar!
—Escuta, Fabrício, mais calma. Eu estou te pedindo o que me deves. Lembra-te que emprestei, em confiança, por poucos dias.
—Nem eu estou negando a dívida, ouviu? O que eu não admito é que um tipo qualquer venha me apertar assim de repente.
—Tipo, não, Fabrício. Tu não tens o direito de insultar, só porque…
— Ora, não sejas besta, ouviste? Um homem é para outro homem. O que eu não tenho é medo de você…
Uma bofetada sonora estalou-lhe na cara. A mão aberta de Galdino gravou-lhe na face esquerda a marca lívida de quatro dedos.
Fabrício soltou um urro em que havia, de mistura, raiva, dor e espanto. Um turbilhão o envolveu, violento, vertiginoso, uma rajada vermelha. No naufrágio da consciência, via o próprio rosto apoplético, com a cicatriz ultrajante, que de branca passara a escarlate. Sacou da navalha e arremeteu. Vibrou-a uma vez só, um golpe certo, horizontal, e sentiu que rasgava uma resistência flácida. Só depois, a um grito agoniado de Galdino, é que o enxergou por terra, com o ventre completamente aberto e as vísceras bolsando fora. Um fígado enorme, hipertrófico e negro surdia da ferida horrenda. E um grosso jorro de sangue esguichava do tronco de uma artéria cortada.
Houve um reboliço, um alarido na sala, que já então se enchera da gentalha daquele subúrbio. Dois indivíduos, que estavam com duas marafonas, fizeram menção de se precipitar sobre o assassino. Ele bradou:
—Quem vier, morre!
E ficou no meio da sala, feroz, com um olhar que desafiava. O outro ia acabando de morrer, desamparado, num estertor sumido, as mãos incertas tateando a barriga.
— “Siá” Guilhermina, não se afobe e não chame a polícia. Senão, nós prestamos contas. Eu vou agora direitinho para me pôr ao fresco e não quero soldados atrás de mim.
E repetiu:
—Quem vier, morre!
E foi se afastando, às arrecuas, a lâmina sanguinolenta na mão.
Foi então que o cabo Amaro entrou, chamado pela velha. Era um sujeitinho franzino e seco, com a figura do sertanejo nortista. Valente como uma onça. De relance, viu a cena, o corpo estendido, o criminoso, de arma em punho, enfrentando a chusma medrosa.
E correu para ele:
—”Teja” preso, bandido!
Fabrício sentiu que, subitamente, ante aquele brado, toda a coragem o abandonava. Por um movimento de que não se dava conta, deixou cair a navalha dos dedos, virou ligeiro as costas e correu.
*
Não sabia bem para onde ia fugindo. Dobrou ao acaso duas, três, quatro esquinas, às cegas, ouvindo atrás o tropel de muitos pés e grito implacável da caçada:
— Pega! Pega!
De repente, reconheceu que corria ao longo do muro do cemitério. Na alucinação da fuga, distinguiu, aberto na parede, um buraco, a meia altura. Pôs ali o pé e saltou para dentro.
O campo santo dormia, recolhido e grave, sob a carícia aveludada do luar. Caindo dos ciprestes e dos monumentos funerários, sombras gigantes e desconformes projetavam-se no chão. Aqui e ali negrejavam escuros propícios. Foi num desses recantos sombrios, entre dois carneiros, que Fabrício se acolheu.
Os perseguidores não demoraram em aparecer. Vendo-o sumir-se tão prontamente, tinham adivinhado o seu refugio.
O cabo, que saltou primeiro, deu a ordem.
— Espalhem-se por ali, batendo todos os cantos. Quem avistar o cabra, dê sinal para os outros.
Os homens disseminaram-se entre as tumbas, calados, cautelosos, furando o escuro com o olhar. Eram soldados que tinham acudido. Mas havia também, entre eles, paisanos.
Fabrício compreendeu que ia ser descoberto, assim, como estava, de roupa clara, sobre o fundo de treva. E procurou ansiosamente outro esconderijo.
Perto, a trinta ou quarenta passos, rasgava-se, hiante, na terra iluminada, uma sepultura que os coveiros tinham, de tarde, acabado de abrir. Ao lado, um túmulo imponente, encimado por um anjo que chorava, de joelhos, com o rosto escondido entre as mãozinhas de mármore, escurecia-a em parte, vedando o acesso da lua. Era destinada a um ricaço que morrera em viagem e já chegara putrefacto ao porto. Só à custa de muito empenho e, talvez, também de alguma propina, haviam os parentes obtido do comandante do vapor que não fizesse atirar o cadáver ao mar. Devia ser inumado, certamente, na manhã seguinte.
Foi, pois, para essa cova vazia que o criminoso se arrastou, deslisando, de quatro pés, entre as campas baixas. Deixou-se cair, de leve, no fundo. E, olhando por cima da borda, ficou seguindo as pesquisas inúteis.
Muito tempo decorreu. Os soldados passavam bem próximo, lampejando. Amaro, uma vez, andou rente à beira do buraco a espiar para baixo. Fabrício, acocorado no fundo, metido no trapézio de sombra, que a lua oblíqua criava, sustinha a respiração. E ouviu o praguejar, afastando-se:
— Esse diabo tem parte com o cão. Como é que se sumiu assim!
Um rumor de vozes veio do lado do portão. De longe, o cabo perguntou:
—Que é isso lá, camaradas?
—É este paroara que nós vamos enterrar, agora, de noite. E vossemecê, que anda fazendo por aqui a esta hora?
—Estou à cata do sujeito que matou o Galdino. Vocês já sabiam? Foi o Fabrício.
—Ali na bodega do Pacheco, estavam falando. Mas o homem entrou mesmo para aqui dentro?
Fabrício espreitou. Quatro coveiros caminhavam, conduzindo um ataúde. E com terror reconheceu que era aquela a cova que o morto ia ocupar, porque vinham naquela direção.
O cortejo já estava a poucos metros. O assassino encolheu-se fortemente contra um dos flancos da escavação. E, no meio do seu susto, ouviu o surdo rumor de um desabamento e viu, com surpresa, que uma brecha naquele lado se abria. A parede interna do mausóleo vizinho ruíra sob a sua pressão. Também era construída de fresco, depois dum enterramento recente e a terra estava literalmente encharcada pelas últimas bátegas de chuva.
Um bafo fétido o envolveu. Sem hesitar, meteu-se pela fenda. No estreito cubículo, ficou escanchado sobre o caixão que o ocupava, a cabeça inclinada para a frente, empurrada pelo teto de pedra.
Os operários noturnos chegaram à beira da sepultura e descansaram o féretro sobre o monte de terra que tinham ajuntado na borda.
—Vamos, Manuel e Juvêncio, vocês descem para receber embaixo.
Dois homens pularam. Os dois outros, com as pernas abertas, fincadas sobre a largura da cova, arrearam o caixão, que estalava. Depois, os que tinham descido subiram. E a primeira pá de terra caiu, sonoramente.
— É para vocês verem — disse um que parecia ser o chefe —, isto de regulamentos não existe para quem tem dinheiro. Quando é que eu pensei que tivesse de fazer uma inumação a esta hora? Só em tempo de peste. O homem devia se enterrar amanhã de manhã. Mas já estava podre, fedendo que nem carniça. Vai a família e pede ao administrador que deixe enterrar hoje mesmo. O administrador diz que não pode, que é contra o regulamento, que amanhã cedo se enterra. Não sei que voltas lhe deram, mas dali a pouco lá vem ele bater na minha porta para ir acordar vocês e fazer o serviço. O dinheiro correu na certa, porque eu já tenho aqui no bolso a minha parte e ele disse que era para vocês irem amanhã no escritório receber também.
—O que a família queria era se ver livre do corpo. Fedendo assim! Também não veio quase ninguém acompanhando… Os poucos parentes que vieram ficaram da banda de fora. Já amanhã, estão brigando pelo dinheiro do homem…
—Olha a tua parede, Benvindo. Caiu…
—Não tinha jeito. Aquilo nem era barro. E depois, nesta lama…
— Não faz mal — interrompeu o chefe. —A terra cobre tudo.
*
Outras pasadas caíram. A abertura, por onde Fabrício se esgueirara, foi desaparecendo. Do fundo da caverna, ele via o mundo claro e belo ir minguando a seus olhos. Dentro em pouco, só restava uma estreita seteira, por onde apenas distinguia o lento mover dum galho de cipreste. Estreitou-se mais. E, depois tudo, se sumiu e uma escuridão profunda e pesada, negra como alcatrão, envolveu-o. Então, considerando-se salvo, respirou deliciosamente.
Só as últimas pancadas secas da areia, caindo, chegavam-lhe aos ouvidos. Ainda percebeu um sapatear forte. Deviam ser os homens que calcavam a terra.
Um silêncio perfeito, uma treva absoluta, reinavam na sua furna subterrânea. E, pensando que Amaro e os outros andavam à sua procura na superfície, riu alto, como diante de uma boa pilhéria. Era preciso esperar que se fossem embora. Furaria então a camada de areia, que o separava dos vivos, saltaria o muro dos fundos e iria passar a noite na casa do Eleutério.
E considerava a sua situação:
—Lá em casa é que eu não posso mais entrar. Já deve estar polícia vigiando. Nada! Preciso de ir para o Parazinho. Depois, vejo se me escapulo pra Pernambuco.
Parou, sentindo uma tonteira. Aquele fedor horrível! E depois daquela correria doida e de tantos riscos, estava cansado e até sentia sono.
—Ora — pensou —, até que esses cabras se vão, posso passar por um descanso. Quando estiver lá fora, é que vou pensar no que faço…
Bocejou. Bracejando, tocou com as mãos os exíguos limites da tumba. Diabo! Maldito cheiro! E, estirando-se de lado, foi se estendendo de costas sobre a tampa do féretro, o braço dobrado debaixo da cabeça para achar uma posição mais cômoda…
E foi nessa atitude que o acharam um ano mais tarde, quando fizeram a exumação do cadáver do paroara.
Fonte: “Primeira”/RJ, edição de 11 de outubro de 1927.
Fizeram-se breves adaptações textuais.
Ilustração: Ademar Figueiredo.
Comentários
Postar um comentário