OS QUE RESSUSCITAM… - Narrativa Clássica Fúnebre - Medeiros e Albuquerque

OS QUE RESSUSCITAM…

Medeiros e Albuquerque

(1867 – 1934)


A história de vários povos tem fatos estranhos de ressurreições. Ressurreições autênticas. Há mortos que, ainda depois de haverem sentido penar-lhes o coração, têm continuado a agir.

Não se trata de lendas. Essas são inumeráveis. Não se trata de ilusões. Trata-se de mortos que foram desinquietados nos seus túmulos —para a glorificação ou para o opróbrio; para aconselhar expedições longínquas, para agir ativamente. Trata-se de mortos que, antes de se recolherem ao túmulo, quiseram completar alguma obra começada.

Dom Ruy Dias de Vivar, o Cid Campeador1, morreu em plena batalha. Os que estavam junto dele viram bem o desastre que ocasionaria a divulgação dessa notícia. Era preciso que os soldados continuassem a eletrizar-se com a sua presença. Amarraram-no à sela—e foi esse cadáver que guiou os guerreiros à vitória.

Mas isso é talvez uma lenda…

Há, porém, os que tiveram de levantar-se da sepultura para a glorificação ou para o opróbrio. Paulo III2, da Rússia, tinha morrido de um modo misterioso. Parece certo que Catarina II3 o fez matar, para tomar-lhe o trono. O filho — filho dele e dela — personagem estranho e desequilibrado, ficou em uma situação como a de Hamlet.

Um dia, enfim, subiu ao trono4. No que primeiro pensou foi em fazer desenterrar o pai e transportá-lo para outro túmulo digno dele.

Limitada a isso, a cerimônia podia ser simples e grandiosa. Mas o imperador que a ordenava não fazia nada com simplicidade. O préstito do lugar onde estava o cadáver para o novo sepulcro, que lhe era destinado, fez-se em um dia de frio intensíssimo. Atrás do féretro do monarca, carregando uma coroa, ia aquele que acusavam de tê-lo assassinado.

Podia o filho querer assim vingar o pai. Havia talvez uma intenção de soberba ironia em fazer o assassino contribuir para a glorificação póstuma do assassinado.

Mas era preciso ir mais longe. Como castigo, isso não podia ser bastante.

No entanto, por outro lado, o castigo seria injusto, dado apenas ao comparsa, quando a verdadeira criminosa escapara à punição.

Ou por isso, ou por outro qualquer motivo, Paulo III não foi vingado. Mas a cerimônia estranha em que ele tomou parte foi a da sua coroação póstuma, porque, antes de tornar a ser sepultado, ele foi de novo coroado. E o filho mandou colocar o pai assassinado junto da esposa que o fizera morrer! Essa figura estranha de rei, desenterrado para ser de novo coroado, lembra imediatamente a da


mísera e mesquinha

que depois de ser morta foi rainha!5


Outro fato:

O príncipe D. Pedro tinha-se casado secretamente com uma mulher, de que tivera vários filhos. O rei seu pai quer, entretanto, que ele a despreze para desposar outras. Ele resiste, Inês de Castro é assassinada. Mas o rei morre. D. Pedro sobe ao trono. Faz prender e torturar ferozmente os assassinos de Inês de Castro. Isso, porém, não lhe basta: o que ele quer é honrá-la; o que ele quer é dar-lhe, depois da morte, o que não lhe pôde dar em vida.

Tira-a do sepulcro, senta-a no trono, faz que a coroem como rainha e obriga os cortesãos ao beija-mão!

Outro fato:

D. Sebastião6 sobe ao trono. É um rei estranho, uma figura mística. Passa por ter sido casto. É em todo caso um sonhador. Um dia, vai ao mosteiro da Batalha ver os túmulos dos monarcas que o precederam. Mostram-lhe D. João II7. Ele não se contenta em vê-lo deitado, na rigidez da morte. Faz que o ponham do pé. Faz que o obriguem a empunhar uma espada e fica-se a contemplar o antepassado glorioso.

Mas, assim que se põe o pé na história de Portugal, é toda uma legião de mortos-vivos que se levanta. Não há talvez nenhuma outra nação em que se encontrem tantos fatos estranhos dos mortos que vivem. Fatos e não lendas.

Há o caso de Martim de Freitas. O rei Dom Afonso8 põe cerco a Coimbra. A cidade resiste. Fazem saber ao governador que o rei, a quem ele jurou fidelidade9, morreu e que, portanto, o sitiante é agora o legítimo soberano de Portugal.

Ele duvida. Quer certificar- se. Para isso, pede um salvo-conduto. Deseja ver o seu rei verificar se de fato morreu.

Obtido o salvo-conduto, ele parte para Toledo onde o defunto jazia. Parte, deixando a cidade fechada.

Nesse tempo, as “portas da cidade” não constituíam uma metáfora. As cidades tinham portas e Martim de Freitas leva consigo as chaves de Coimbra.

Chegado a Toledo, mostram-lhe o tumulo do rei. Ele pede que abram o esquife e, não contente, depõe as chaves de Coimbra nas mãos do seu soberano, como para ver se essas pobres mãos geladas as queriam reter.

Pois que elas não as guardam, ele as retoma e vai entregar ao novo soberano10.

Quem sabe o que os dois conversaram: o rei virgem, cujo espírito estava embebido de um misticismo nebuloso, e o velho monarca, despertado no seu túmulo, forçado a pôr-se de pó, com a espada om punho, como se fosse comandar novas campanhas?

Teria sido esse cadáver tão estranhamento acordado quem aconselhou a expedição de Alcácer-Kibir, em que D. Sebastião morreu? Mas D. Sebastião —todos sabem — foi o mais estranho dos mortos. Assim que os areais da África o viram cair inanimado, viram também que o seu espectro se levantava e começava a reinar em Portugal.

Durante séculos, o Encoberto, o Desejado estava sempre a chegar, a desembarcar em praias portuguesas, pronto a dar à sua nação a glória de outros tempos.

A influência dessa crença na vinda sempre iminente de Dom Sebastião foi enorme. Ele reinou, de fato, ainda depois de morto, ou, como seria mais justo dizer, sobretudo depois de morto.

Mas Portugal tem ainda em seu ativo um outro fato, que é, exatamente, o contrário do de Inês de Castro. Com ela foi uma glorificação. Com o papa Formoso foi uma degradação.

O papa Formoso era português11.

Feito o seu pontificado, morreu. Estava enterrado havia já nove meses, quando o seu sucessor Estevão VI resolveu fazer exumá-lo. Desenterraram-no; sentaram- no em um trono; puseram-lhe a tiara. E começou então—coisa espantosa!—o processo que lhe instauraram. Um acusador proferiu contra ele violento discurso, enumerando-lhe os crimes. O cadáver nada respondeu. Como, porém, era preciso que a tragédia tivesse um lado sinistramente cômico, um defensor levantou-se e falou em seu favor. Mas falou frouxamente; falou traindo os interesses do seu estranho comitente.

E o papa Formoso foi condenado. Degradaram-no. Declararam-no destituído das honras pontificais. E porque os papas abençoam com o médio, o índex e o polegar da mão direita, e porque muitas vezes ele assim agia, arrancaram-lhe e esmigalharam-lhe esses dedos.

O ex-papa Formoso pôde então ser enterrado em paz.

Não é um estranho povo esse em que os mortos consentem do sepulcro na entrega de cidades; em que uma rainha sai do túmulo para ser coroada; um rei para aconselhar expedições longínquas e outro para reinar durante séculos, e em que até um papa se levanta para ouvir o seu processo e a sua condenação?



Fonte: “Pacotilha”/MA, edição de 28 de junho de 1912.


Notas:


1Chamado “El Cid” (1043 – 1099), foi um nobre guerreiro castelhano, herói na luta contra os mouros.

2Na verdade, Pedro III (1728 – 1762).

3Catarina II (1729 – 1796) foi imperatriz da Rússia entre 1762 e 1796.

4Como Paulo I. Nascido em 1754, foi imperador da Rússia entre 1796 e 1801.

5Versos de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões (c. 1525 – 1580).

6D. Sebastião (1554 – 1758) foi rei de Portugal. Subiu ao trono aos catorze anos e morreu aos vinte e quatro.

7D. João II (1455 – 1495) foi rei de Portugal em 1477 (por quatro dias) e entre 1481 e 1495.

8Afonso III (1185 –1279), que depusera o seu irmão Sancho II do trono de Portugal.

9Dom Sancho II (1209 – 1248).

10Tal incidente é relatado pelo cronista português Rui de Pina (c. 1440 – 1522) na Crônica del Rei D. Sancho II, Quarto Rei de Portugal, capítulos XI e XII. A cerca do episódio, escreveu o historiador alagoano Alexandre José de Mello Moraes (1816 – 1882), ancestral do poeta e compositor Vinícius de Moraes (1913 – 1980): “Continuavam os sucessores de Afonso Henriques a seguir os planos e intentos de seu predecessor, libertando o reino dos poderes dos mouros e dos espanhóis, mas o desagrado em que incorreu D. Sancho II deu motivo a ser deposto do trono e substituído por D. Afonso III. Martim de Freitas, defendia então a cidade de Coimbra, altamente cercada pelo conde de Bolonha [D. Afonso III]; e nem promessas nem ameaças foram capazes de abalar os seus princípios de fidelidade a D. Sancho II, que então se havia refugiado em Toledo e, apenas morto, apresentou-se àquele Martim de Freitas um enviado do conde de Bolonha, exigindo a entrega do castelo — mas ele, pedindo alguma demora para decidir-se a tal exigência, marchou para Toledo e, depois de fazer abrir o túmulo de D. Sancho, beijou-lhe a mão, depositou sobre ele as chaves da cidade e castelo, e retirando-se ao acampamento de Coimbra, declarou ao novo monarca tomasse conta da cidade e castelo, visto ser o rei pela morte de D. Sancho. Foi Martim de Freitas prazenteiramente acolhido pelo novo monarca, mas recusou continuar no comando do castelo e cidade, que se lhe oferecia, declarando que lançaria a maldição a seus filhos se recebessem o castelo com homenagem, e por ter estado sua fé em bastante risco de ser quebrada.” (In Os Portugueses perante o Mundo, 1856.)

11Na verdade, era italiano. A confusão vem do fato de que Formoso foi bispo do Porto (hoje Diocese Porto-Santa Rufina, no Lácio), sé homônima à da importante cidade de Portugal.

 

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