SEGREDO DA MORTE - Conto Clássico de Terror -Júlia Lopes de Almeida

SEGREDO DA MORTE

Júlia Lopes de Almeida

(1862 – 1934)


Depois do jantar, passamos ao terraço, onde mandei servir o café. Foi aí que pedi ao corretor Sidney que me comprasse um terreno que eu vira anunciado em ótimas condições.

À minha ordem, ele retrucou com esta pergunta esquisita:

— Não acredita em almas do outro mundo?

— Quase nunca… Por quê?

— Porque, se esse terreno está assim…

E Sidney emudeceu ao ver o modo brusco por que o Numa Saião se ergueu da cadeira em que estivera recostado a fumar.

— Que é? —perguntei.

Sem dizer uma palavra, o Numa agitou no ar a mão espalmada, para que não prosseguíssemos na conversa, e começou a andar, de um lado para o outro, numa agitação de enclausurado. De repente, voltou para o meio da roda, onde tínhamos ficado em expectativa atônita, e disse:

—Eu tinha prometido não revelar este segredo a ninguém, a ninguém: mas agora é preciso, é preciso — repetia ele, fixando em mim as suas pupilas de um azul magnético.

Negamos-lhe esse dever em frases frouxas, que mal dissimulavam a nossa curiosidade. Ele não aceitou e começou nervosamente:

—Conhecem a minha enteada; é uma criatura séria, grave, honesta, incapaz de mentir. Hoje estima-me. Ao princípio, percebi que ela me suportava por deferência à mãe. A percepção dessa antipatia e o perene disfarce em que vivíamos, um em face do outro, tornava a nossa existência soberanamente aborrecida. O que nos valia a ambos é que minha mulher realizava o milagre de ser cada vez mais linda e mais amada, compensando em meiguice e em poesia os nossos desgostos inconfessáveis.

“Existia ainda muito viva essa espécie de malquerença entre minha enteada e eu, quando, uma tarde, voltando do trabalho, encontrei-a no vestíbulo, evidentemente à minha espera. Mal me viu entrar, precipitou-se ao meu encontro, apertou-me as mãos com força e, antes mesmo que eu tivesse tido tempo de formular uma pergunta, ela rompeu:

—Sabe? Ele acabou de sair daqui.

— Ele, quem?

— Meu pai.

—Que ideia!

— Pode pensar o que quiser, mas afirmo-lhe que era meu pai em carne e osso, vestido de claro, como ele costumava usar no verão.

Tive pena da rapariga. Vi-a tão transtornada que a supus vítima de um acesso de loucura. Não podia ser outra coisa. Procurei acalmá-la com jeito, dizendo que ela devia desconfiar da sensibilidade dos seus nervos e reagir contra tamanho absurdo.

Ela replicou energicamente, encarando-me com um modo inesquecível:

—Não se trata de uma visão doentia. Estou de excelente saúde. Nem sequer pensei em meu pai durante todo o dia.

— Embora! Um fato tão fora da realidade não pode ser originado senão por um excesso de imaginação.

— Meu padrasto — tornou ela com uma lucidez verdadeiramente desorientadora—, eu não sou nervosa nem acreditei, nunca, no sobrenatural. Sou pessoa de nervos equilibrados. O que digo é a verdade. Eu vinha da sala de visitas, quando, seguindo pela galeria, senti alguém caminhar atrás de mim. Voltei-me e imagine qual foi o meu espanto quando reconheci meu pai. Quis gritar e não pude, fiquei plantada diante dele, como se os meus pés estivessem enterrados no chão. Olhando-me compadecidamente, disse, então, com aquela voz rouca e abafada que sempre teve:

— Arma-te de coragem, porque amanhã, a estas mesmas horas, tua mãe irá ter comigo.

E, abrindo a porta do jardim, desapareceu. Não sei como ainda tive ânimo de olhar para o relógio da parede. Eram seis horas. É que em mim tudo parecia automático, regido por uma vontade alheia à minha própria. Foi depois que senti um grande tumulto no coração e que vim esperá-lo para contar-lhe tudo e perguntar-lhe o que havemos de fazer para defendê-la.

E começou a chorar de encontro ao meu coração, que batia com força.

— O que havemos de fazer? Calarmo-nos para que tua mãe ignore este caso completamente, absolutamente.

— Sim, mas não seria prudente chamar o médico para que a examinasse?

Fiz-lhe notar que a mãe passava adoravelmente e que o pai fora um homem muito sensato e bondoso para poder vir do outro mundo para fazer à própria filha uma revelação tão dolorosa. A dor sempre vem cedo.

Convenci-me de que as minhas palavras acalmavam a excitação de minha enteada e aconselhei-a a que fosse repousar alguns instantes no seu quarto.

Quando à noite ela me reapareceu para o jantar, tinha tomado a sua resolução. Vinha risonha, embora não desanuviada. Mas só eu percebia que o fundo de toda aquela alegria, mais do que nunca espirituosa e vivaz, era torvo e intranquilo.

Resolvi falar no dia seguinte a um médico psiquiatra a respeito do caso, e tratei também eu de disfarçar as minhas apreensões para sossego de minha mulher.

Mas, no dia seguinte, o ministro da Fazenda chamou-me para uma conferência que me fez perder um tempo infinito e não pude, assim, consultar o doutor

À tarde, ao voltar para casa tive, a surpresa de a encontrar em festa. Minha enteada convidara todos os nossos melhores amigos para um jantar improvisado de afogadilho. Queria sentir-se rodeada por muita gente. Entre os convidados não se esquecera de incluir o médico da família cuja demora a apoquentava.

— E, entretanto, eu lhe pedi que estivesse aqui antes das seis horas — disse-me ela depois.

Aborreceu-me aquela insistência e, insensivelmente levantando os olhos, vi que eram seis horas em ponto no relógio ao fundo da galeria. Percebi, então, que o mal de minha enteada fora contagioso, porque não pude reter um estremecimento, e foi já irritado comigo mesmo que entrei no salão à procura de minha mulher. Logo que entrei, respirei de alívio, ao vê-la sentada numa poltrona ao lado do piano, a ouvir música. Tinha a cabeça recostada num almofadão de veludo, os olhos semicerrados, os lábios entreabertos num sorriso e as mãos em abandono no regaço. Aproximei-me, ela não se mexeu; peguei-lhe na mão para a beijar, senti-a inerte e morna; chamei-a pelo nome, não me respondeu… Ao mesmo tempo minha enteada punha-se aos gritos, com os braços no ar!"


Fontes: “Pacotilha”/MA, edição de 10 de abril de 1920; “Estudos Psíquicos”/PT, edição de dezembro de 1949.


 

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