UMA NOITE EM GUAYAQUIL - Conto Clássico Sobrenatural - Jorge Jobim

UMA NOITE EM GUAYAQUIL

Jorge Jobim1

(1889 – 1935)



Quando o comboio que me trazia de Quito chegou a Durán, ponto terminal da viagem, o calor era sufocante. Depois de Huigra, última estação de altura, o trem entra a correr pelas terras baixas, cobertas de matagais e arbustos, de canas bravas e árvores de espécies diversíssimas, mas todas confraternizadas pelo enlaçamento flexuoso de mil trepadeiras, como se Flora, mãe extremosa sem preferência por nenhuma das filhas, as abraçasse todas num mesmo amplexo vegetal de ternura.

A poeira se levanta em ondas do leito da estrada, encarniçando os olhos, exasperando o ardor da garganta ressequida. Felizmente há uma parada em Milagros, pequena povoação do percurso, onde mulheres oferecem, com laudatórios pregões, grandes talhadas de sumarento ananás, em cuja polpa se dessedenta com delícia o viajante extenuado. Continua a jornada. O calor aumenta. Insetos de todos os matizes se cruzam e flutuam no mormaço. Um livro de Fabre2 desfolhado no ar quente. Revoluteiam todas as asas, em giros e regiros: as da mosca, obstinadas e cambiantes; as do besouros, polidas como o metal de um capacete; as da borboleta, que copiam o arco-íris, lustrosas como cetim novo; as do escaravelho, membranosas e escuras; as do gafanhoto, de sutil urdidura, que parecem fabricadas no mesmo tear das talagarças; as do louva-a-deus, batizado pela ciência com o nome rude e antipático de coccinela, translúcidas como a esmeralda; as da libélula ou donzelinha, emigrada dos regatos próximos, tenuíssimas e imponderáveis como farrapinhos de gaze nupcial... Até as vagarosas formigas, condenadas ao papel de Ahasverus3, a caminhar por toda a terra, são ícaros aqui; ostentam nos ombros franzinos um par de azas efêmeras que mal podem carregar.. . Nestas zonas a natureza manifesta uma preocupação tão flagrante de dar asas à Vida que por um momento se chega a imaginar que um dos matagais vai se abrir e a serpente alada das lendas orientais surgir, alçando o voo fabuloso para uma Cólchida4 distante... Mas a fantasia se desvanece. Guayaquil já está à vista, debruçada sobre o outro lado do rio, com seus confusos armazéns alfandegários à margem de águas ludrosas e com raras colinas, ao fundo, esfumando-se no horizonte, dentro de uma nevoa seca. Dez minutos de travessia, numa lancha a vapor, e eis-me na “Perla del Pacifico”, como chamam pomposamente os equatorianos ao seu primeiro porto, pobre pérola, mal engastada no lodo pestilento do Guayas...

Indago do melhor hotel e indicam-me o Tivoli, a duas quadras do cais, com telas de arame nas portas e janelas, meio preventivo contra os terríveis mosquitos, transmissores da febre amarela, que, infelizmente, ainda existem naquela cidade, mas a que a comissão americana de saneamento que ali deixei trabalhando promete dar guerra sem tréguas.

Uma vez instalado num quarto do segundo andar, com balcão sobre a rua, tomei o propósito deliberado de não sair a passeios, por precaução, devendo embarcar no dia seguinte a bordo do Yurimaguas, capitão Ponciano, com destino ao Callao, esperança que, desgraçadamente, não se pôde realizar, pois esse vapor somente zarpou de Guayaquil cinco dias depois.

Pela tarde recebi em meu aposento a visita do gerente do hotel, rapaz de origem francesa, muito inteligente e afável, com a alma encharcada de lirismo, preocupadíssimo com a fase romântica de um noivado, tudo quanto há de menos comercial, de menos hoteleiro, a não ser que se o compare aquele Ragueneau do Cyrano de Bergerac5, que vendia pastéis fazendo versos e adorando os poetas... Falou-me de muitas coisas: da noiva; do mau estado sanitário da cidade, com o inverno que começava; da mortalidade recrescente (citava dados estatísticos); do Brasil, que tanto desejava conhecer e do qual possuía, arrancada a uma revista, uma fotografia do Rio de Janeiro. Por último comentou, com irônico desalento, sua má sorte, que o obrigava, a ele que tinha alma anacreôntica de cigarra, a preocupar-se com a lista dos pratos de acepipes que burgueses ventrudos deviam consumir cada noite, entre grandes gorgolões de vinho tinto. E citava a propósito, para comprovar a sua má estrela, a trova popular :


Si me pongo a hacer faroles

Todas son noches de luna;

Si me pongo a hacer sombreros

Todos nascen sin cabeza


Sua história começava a enternecer-me e, para mudar o curso melancólico que a palestra ia tomando, perguntei-lhe se já lera as obras de Rabelais6. Respondeu-me que não, um amigo ficara de lhas emprestar, mas, até ali, se olvidara da promessa. Devo dizer, entre parêntesis, que, um mês depois, já em Lima, recebi desse moço uma carta muito afetuosa, na qual me confessava, entre outras coisas, que após me haver deixado a bordo, de volta para o hotel, duas lágrimas lhe envidraçaram os olhos. É a maior vitória sentimental até hoje conseguida em minha vida: — fazer chorar, de puro comovido, a um hoteleiro de quem fui amigo e confidente…

Atando o fio da história direi que ao retirar-se, meia hora depois, o Ragueneau de Guayaquil, levei-o até a porta, que abria sobre um comprido e apertado corredor, já penumbroso ao crepúsculo que chegava. Aí topamos com um sujeito muito pálido, de cabeça toda branca, de olhar nervoso e aceso, que passava metido numa sobrecasaca preta, comprida além dos joelhos.

Quem é?— inquiri do meu companheiro.

Um quiromante ou cartomante, feiticeiro ou coisa que o valha — contestou-me ele... — Um tal doutor Kimbal. Vem de Quito. Não o viu por lá? É muito visitado por consulentes, especialmente por senhoras, tem hábitos extravagantes e misteriosos e nunca vem à mesa, fazendo-se servir no quarto, às horas de refeição. O senhor e ele — acrescentou — são os dois únicos hóspedes que tenho, atualmente, no segundo andar.

José Guerra, o fiel criado que comigo trouxera de Quito, já havia tirado da maleta, distribuindo-os sobre o lavatório, os objetos de mais necessidade. Na bacia de louça via-se um esquecido fio de cabelo. E veio-me de repente À lembrança a página dolorosa de Maupassant7, em que o pobre Guy confessa o seu horror pela vida em Comum dos hotéis, na alcova que é de todos, por onde todos passam, com o clássico fio de cabelo do último viajante pegado ao fundo da bacia esborcinada.

Nos relógios próximos deram as seis. A sombra se adensava no interior da estância, tornando-a mais triste e ampla. Acheguei-me à janela. Fora ainda havia luz. No céu cálido daquela tarde do trópico, feita de ouro e cinza, o Sol descia no poente a empuxar atrás de si uma grande nuvem purpúrea, como monarca que se retira, depois das festas a que presidiu, arrastando pelo salões a cauda do manto régio. Lera, horas antes, a notícia da morte de Rostand8. Chantecler morrera... E parecia-me que o Sol morria com ele... Na rapidez do seu voo, de rumo imprevisto e caprichoso, um grupo de andorinhas passou, chilreando, como um bando de almas emigrantes... No interior de algumas casas brilharam as primeiras lâmpadas... Uma mulher assomou num balcão vizinho para colocar no peitoril um vaso com flores... E Guayaquil, a cidade dos passadiços de arqueados portais, protetores das chuvas e dos sóis, tinha, àquela hora, o aspecto tristonho dos claustros...

E como nota de supremo ridículo, que Cervantes9 esqueceu de emprestar ao asno de Sancho Pança, passam pela rua vários burricos de calças e com um grande chapéu de palha na cabeça, para protegê-los dos insetos que têm, como sítios de eleição para desalterar a sede assassina, as pernas e orelhas das alimárias. E seus donos, encarapitados na garupa, entre cestas repletas de hortaliças, a esporear-lhes as ilhargas com os calcanhares das botas cambadas, para que apertem um pouco mais o passo escandalosamente vagaroso, são dignas ilustrações para esses livros policrônicos e hilariantes com que nos encantamos na primeira infância e com os quais o carinho materno nos recompensa da aplicação e do bom comportamento no colégio. Bergson10 teria, se os visse, mais um exemplo para explicar o mecanismo do riso…

À hora do jantar encontrei de novo a personagem do corredor, o hierofante Kimbal, mais pálido ainda, de uma palidez apagada, como se tivesse sobre o rosto uma máscara de gesso. Lançou-me, ao passar, um olhar mau, e fiquei convencido, ao sentir cair sobre mim a frialdade daquelas pupilas, de que, em outras cidades menos policiadas as habilidades do quiromante não se limitariam ao passatempo agradável e incruento de ler nas linhas de formosas mãos femininas os segredos do destino; em outras terras, certamente, a magia inócua do adivinho se transformava em sanha sanguinária e do inofensivo embusteiro, a consultar mãos e cartas de baralho, surgia o arúspice cruel a desvendar as incertezas do futuro nas entranhas latejantes das vítimas. Porque um homem com aqueles olhos pode ir até ao homicídio…

Às dez da noite recolhi ao quarto e disse a José que estendesse o seu colchão ali mesmo, aos pés de minha cama, para que me fizesse companhia. No salão, durante o jantar, um mosquito dera-me uma terrível ferroada e fiquei inquieto, a imaginar-me com a febre amarela, já com os sintomas iniciais da cefaleia e do calafrio... E vinha-me à memória o caso ultimamente ali passado com a María Barrientos11, a celebre cantatriz espanhola, que, contratada para realizar uma temporada em Guayaquil, resolveu, já no porto, não desembarcar, e preferiu despojar-se dos anéis e arrecadas para pagar uma indenização ao empresario, a expor-se aos riscos da cidade apestada. Rogos, doestos, apupos, nada conseguiu amolgar as resistências do seu terror. A “estrela”, afeita a luzir nas cortes de Europa, teve medo de que a Morte a abismasse no nadir destes céus da América, longínquos e abafados, e deles desviou a luminosa trajetória...

Por volta de onze e meia, já deitado, ressupino e insone, suando como se estivesse em um banho turco, ouvia o resfolegar compassado de José, que dormia a sono solto, e o canto de um grilo, perdido no escuro, a fazer-me saudades dos seus irmãos de Quito, a cuja estrídula toada tanta vez adormeci nas noites frias da Cordilheira...

Dois sinos de igrejas próximas badalaram, uníssonos, às doze. No egoísmo da insônia despertei o criado e, em surdina, pusemo-nos a conversar. Falávamos do calor que fazia, do clima tonificante da serra, de mil pormenores e, por último, de certa velha que me pedira uma esmola na estação de Ambato.

Mas, de repente, na calada que envolvia o hotel, uma porta se abriu com estrépito e uma voz, esganiçada e colérica, áspera como o ranger das amarras novas na polé dos navios, bradou, a gritos:

Cala-te! Cala-te!

Que é isto? — indaguei, tartamudo de espanto.

É o hóspede do nº 20, o feiticeiro, que está protestando contra a nossa conversa — informou-me José, com a voz também engasgada de susto.

Meu primeiro impulso foi o de sair a dar ao insolente a réplica merecida. Mas, nesse momento, lembrei-me dos seus olhinhos perversos de assassino e vi-me desventrado, numa poça de sangue, a agonizar, por noite morta, nas trevas de um corredor de hotel, sem ninguém que me assistisse, pois o gerente informara que não havia outros hóspedes naquele andar. A recordação dos contos trágicos de Hoffmann, de Edgar Pöe e de Villiers de L’Isle-Adam12 paralisou-me o valor13. Não valia a pena perder-me por causa de um aventureiro qualquer. Cobri a cabeça com a colcha e encolhi-me, por instinto, como as crianças com o temor de lobisomens. A porta fechou-se fragorosamente... A quietude volveu à casa em sono. Como diabo, pensava eu, pôde esse sujeito ouvir do fundo do corredor a nossa palestra, trocada em voz baixa? Mas a explicação me acudiu de pronto. Os ocultistas devem possuir uma receptividade acústica sobrenatural para que possam escutar bem o flébil cochichar das almas penadas, que esvoaçam na sombra.

Agora o silêncio era profundo. Emudecêramos. José, desperto, já não ressonava. Somente em sua fresta ignorada, como nos versos de Ruben Darío14:


El grilo cantava su solo monótono

En la única cuerda que está en su violín.


Pela manhã, muito cedo, mudei-me para outro hotel, situado junto a um posto militar de socorro. Ficava assim mais longe do bruxo e mais perto da polícia…


Lima, 13-14 de janeiro de 1919.



Fonte: “Ilustração Brasileira”/RJ, edição de 21 de abril de 1922.


Notas:


1O diplomata e jornalista Jorge de Oliveira Jobim era pai do compositor Tom Jobim (1927 – 1994).

2Jean-Henri Casimir Fabre (1823 – 1915), entomologista francês.

3Nome do mítico judeu errante.

4Região da Grécia antiga.

5Ragueneau é um personagem da peça “Cyrano de Bergerac”, de Edmond Rostand (1868 – 1918). É um confeiteiro amante da poesia. Cyrano de Bergerac (1619 – 1655) foi um escritor e duelista francês.

6François Rebelais (1494 – 1553), escritor renascentista francês.

7Guy de Maupassant (1850 – 1893), escritor francês.

8Edmond Rostand (1866 - 1928), poeta e dramaturgo francês, autor de Chantecler, história de um galo que acredita que se deve ao seu canto o nascer do Sol.

9Miguel de Cervantes Saavedra (1547 – 1616), romancista castelhano, autor de “Dom Quixote de La Mancha”. Sancho Pança é o fiel companheiro do personagem principal, que dá nome ao romance.

10Henri Bergson (1859 – 1941), filósofo francês. Assim como o autor, Bergson também foi diplomata.

11María Alejandra Barrientos Llopis (1884 – 1946), cantora lírica catalã.

12Referência a E. T. A. Hoffmann (Königsberg, 1776 – Berlim,1822), Edgar Allan Pöe (Boston, 1809 – Baltimore 1849) e Auguste Villiers de L'Isle-Adam (Saint-Brieuc, 1838 – Paris, 19 de agosto de 1889), extraordinários escritores no domínio do fantástico, do horror e do terror.

13Coragem.

14 Rubén Darío (1867 – 1916), escritor nicaraguense. 

 

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