O PERSEGUIDO - Conto Clássico Sobrenatural - Charles Warrel

O PERSEGUIDO

Charles Warrel

(Sécs. XIX e XX)

Tradução de autor desconhecido do séc. XX



Numa mesa da estalagem “Os Três Pescadores”, por uma noite fria e úmida de dezembro, o Juiz Mendrick saboreava algo de bom num cálice, revolvendo na mente o acontecimento que o enchia de uma sensação de triunfo, de ódio satisfeito. Ao amanhecer, Reger Grelock seria enforcado.

Lá fora, o vento sibilava, uivava e gemia. O Natal não seria nada festivo com semelhante frio e essas contínuas tempestades vento e neve. Lembrando-se de que, por causa da neve, teria de voltar para casa a pé, o juiz teve uma careta de mau humor. Enfim, era apenas meia légua e haveria luar.

Tragou o resto do licor, pagou, agasalhou-se e saiu sob o sorriso servil do estalajadeiro. No interior, ficaram alguns lavradores que, tendo visto sair o juiz, puseram-se a conversar:

Foi o marido de Setty Sardone que ele condenou à forca — disse um.

Ouvi dizer que foi por furtar um cavalo.

Infeliz, meio enlouquecido pela doença da pequenina Setty, sua filha, saiu à procura de um cavalo que o levasse à vila buscar um médico e, vendo o de John Squire, perdeu a consciência do que fazia e cavalgou-o. E de madrugada será enforcado.

E com a sua mulher, a bela Setty, já morta, que será sua filhinha?

E tudo porque, num Natal, ela sorrira ao juiz e depois se casara com Roger. Um simples sorriso, mas foi só por causa dele, e de nada mais, que Roger foi condenado.

Fazia-se tarde, os lavradores debandaram, um por um. Enquanto isto, o juiz Mendrick avançava pela charneca, triunfante.

No Monte Patíbulo, reboaram martelos e gemiam correntes, e nessa mesma manhã de Natal, Roger Grelock seria enforcado. Há muito tempo — há quantos anos! — ele, o juiz Mendrick, sonhara e arquitetara o seu sonho de amor e o Natal às chamas da lareira. É verdade que Setty era apenas a filha dum lavrador, mas — ah! — como era encantadora. E como sorrira. Um sorriso de donzela que se sente moça e linda, alvo de admiração. Mas ele tornara aquele sorriso expressamente para si e sua desilusão fora cruel. Ela sorrira um sorriso de coquete e chorara muitas lágrimas de arrependimento por aquele sorriso. Oh, como ela compreendera todo o inferno do ciúme, despeito e inveja contido no olhar que Mandick lhe lançara ao sair da igreja pelo braço de seu marido!

No alto da colina, num perfil negro contra o céu sombrio, a forca apontava o seu dedo ameaçador, esperando a vítima no amanhecer.

O vento rugia e assobiava, arrastando mantas de nuvens sobre a nudez do luar. Mandrick agasalhou-se mais na sua capa cor de vinho. O vento entrava-lhe nos ossos. Um frio estranho. De repente, notou que o frio era diferente das vergastadas do nordeste; era um frio úmido, parado e penetrante, um frio enlouquecedor. O medo, lento e sorrateiro, erguia-se das sombras envolventes e vinha persegui-lo. Um pavor sacudiu-o como um vento de morte, cinzento e lúgubre, aos uivos. Que seria esse terror? Seria a vista da forca? Ou algum pressentimento?

Por essas horas, os menestréis estariam convidando as almas tranquilas a rejubilar-se na véspera de Natal.

Dentro de algumas horas, ele, da sua janela, arrumando a charneca, veria o enforcado e diria: “O ladrão de cavalos (o marido de Setty) foi justiçado”. O medo afoitamente tomou-lhe a garganta, o peito, as pernas e tolheu-o, como um “coup d'arrêt”1 , a uma esquina escusa. Na estrada, erguia-se uma sombra de mulher. Uma figura alta, num longo traje de lã, e com um manto escuro. O chapéu de longas fitas caía-lhe para o pescoço. Lentas como mantilhas de seda, pesadas, as nuvens escorregaram dos ombros do luar, deixando-o nu e brilhante.

O pavor, frio, contraiu seu coração: era Setty, sua velha amada, a mulher do condenado, que morrera no Natal passado.

Cheio de terror, reconheceu o cachinho rebelde que costumava caracolar na sua testa, as covinhas que se formavam ao menor entreabrir dos lábios e as mãos, que se erguiam em súplica.

O frio, implacável, o rodeava de muralhas gélidas.

Mais uma vez a lua, pudica ou talvez friorenta, cobriu-se com o arminho das nuvens. Decididamente, ele estivera sonhando. Sonhara ver uma sombra de mulher. Setty morrera há muito tempo. Rosas silvestres floriam na sua sepultura. Roger seria enforcado ao alvorecer. Vagarosamente, voltou-se.

A sombra se dissipara. Não. Ei-la que se aproximava dele, com seu rosto de defunta, cheio de angústias e de súplica. Com um grito, pôs-se a correr através das charnecas, rápidas as nuvens encobriram a lua e o perseguido errou o caminho.

Arrepiado de terror, parou. Não sabia para que lado virar-se. O frio agora era uma mortalha que lhe cingia o corpo, tolhia os movimentos e gelava a alma. Ele não via mais a defunta, mas sabia que ela o estava perseguindo, a suplicar-lhe que não orfanasse duplamente a sua filhinha. Ele queria correr, não podia. Escapar, fugir, salvar-se… Onde? Como?

A morta o seguiria para sempre. A forca ao longe era uma brasa. O frio era um mar que subia, gelando-o, afogando-o.

Com um grito, o homem perseguido caiu. Caiu no frio, no gelo, sozinho, velado pela morta que suplicava.

O juiz Mendrick abriu os olhos. Um grito de criança feriu-lhe os ouvidos.

Era um grito de ânsia, de necessidade. Olhou em volta. Estava numa choupana, pobre, miserável. Uma mulher, andrajosa, tentava, trêmula, reavivar um fogo com uns magros gravetos. Envolvida num velho chale, uma criança doentia e pálida choramingava:

Pai! Pai!

Então ele compreendeu. Aquilo era a casa de Roger; a mulher andrajosa era sua irmã, e a criancinha era a filhinha da Setty. Setty que lhe pedira não matasse seu marido. E ele, que o condenara a morrer, ao alvorecer.

Ergueu-se, desesperado, e bradou:

Um cavalo, Roger não deve morrer, depressa!

Deixando-lhe a criança nas mãos, a mulher desapareceu. Faltava uma hora para o amanhecer, quando ele partiu, deixando a filhinha de Setty adormecida.

Rompia a alvorada quando ele saltou do cavalo, branco de espuma.

Foi direto à cela onde o condenado, de joelhos, orava. Os dois homens que haviam amado a mesma mulher encararam-se.

Mandrick estendeu a mão:

Perdoa-me.

Roger saiu para a liberdade. O braço negro da forca estendia-se vazio na colina. Os sinos repicavam festivos. Aleluia ao nascimento do Senhor, paz na terra e amor aos homens de boa vontade.

O juiz Mendrick acercou sua cadeira ao fogo.

Roger aconchegava ao colo a filhinha.

Em seu túmulo, Setty sorria.



Fonte: “O que Há”/RJ, edição de 12 de setembro de 1929.

Fizeram-se breves adaptações textuais.


Nota:

1Parada brusca.

 

Comentários

  1. Muito bom! De certa forma, fez-me lembrar do "conde de monte Cristo", embora o enredo seja bem diferente.

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