O QUE OS GATOS VEEM… - Conto Clássico Sobrenatural - Félix Lorenzo

O QUE OS GATOS VEEM…

Félix Lorenzo

(1879 – 1933)

Tradução de autor anônimo do séc. XX



Quando o gato desperta, de súbito, e com os olhos iluminados por brasas interiores, olha fixamente para um determinado ponto à distância, que misterioso contato lhe há sacudido os nervos, que imperceptível chamamento há sobressaltado a sua atenção?

Os nossos sentidos não hão observado ruído nem movimento. Não estalou um móvel, não soou um inseto, nem vibrou folha de papel roçada pela brisa. O gato, no entanto, parece petrificado: não há no seu olhar ânsias de fato, mas sim um estranho deslumbramento; não lhe corre pela espinha dorsal o tremor característico que sempre lhe produzem as sensações inesperadas. Ao fim de uns segundos, sai do seu êxtase; recolhe-se e volta a dormir...

Por certo, já o havereis notado milhares de vezes. Esse fato tão comum e familiar não pôs no vosso pensamento um certo temor vago e confuso, como se proviesse de insondáveis regiões psíquicas?

Desde que, pela vez primeira, Hipócrates e Galeno descobriram que o cérebro podia ser habitação da alma, os sábios vêm desfibrando minuciosamente o labirinto da nossa cabeça, e as últimas descobertas da psicofísica chegaram a concretizar, em tangíveis fórmulas matemáticas, uma grande parte da vida imaterial.

Mas há alguma coisa, ó varões clarividentes, que não sabereis nunca! Quando o gato percorre as estantes da minha biblioteca, e vai olhando displicente, volume por volume, parece-me que sorri com esse desdém aristocrático, que é privilegio da sua raça. Um dia, eu o vi pousar suavemente a sua patinha preta de veludo sobre uma obra imortal, enquanto me mirava mefistofelicamente, como que dizendo: “E isto é tudo?”


*


A minha família saíra, ficando só eu em casa com o intuito de trabalhar.

Havia lido pouco antes algumas páginas de Maupassant e Poe e sentia a alma à flor da pele. Deixei-me cair numa poltrona, acendi um cigarro e contemplei o retrato de minha filhinha.

Não há dúvida alguma que os retratos das pessoas amadas que nos morreram sorriem calmamente quando os miramos com amor. Não sei por que o inquietante animalzinho tinha o hábito de repousar ali, por debaixo da pobre criatura, cujas mãos, em vida, tanto o haviam acariciado.

Para logo a confluência das duas imagens provocou em mim o inevitável fenômeno: a minha fantasia evocou cenas em que tantas vezes se haviam recriado meus olhos. Quando minha filha percorria a casa com o seu gatinho nos braços, aconchegando-o muito contra o peito, ele forcejava por livrar-se dela, mordiscando-lhe os dedinhos…

Era absoluto o silêncio; esse silêncio de casa vazia que é, para o espírito, o que a atmosfera — muito clara e muito oxigenada — é para o corpo. Aviva-se a percepção, destacando-se mais nítidas as recordações; a imaginação vibra mais ágil, com mais elasticidade. Sente-se como se o coração fosse incorpóreo e batesse dentro de um sino de cristal e lançasse nas artérias sopros de éter e não correntes de sangue rubro, espesso e turbulento.


*


Súbito, o gato despertou; ergueu-se; ficou olhando não sei o que; algo imóvel, porque os seus olhos estavam quietos nas órbitas... Olharia acaso sem ver, como fazemos nós, seres humanos, quando buscamos algo nas trevas do nosso interior? Nas suas pupilas magnetizadas chispava, não obstante, o quer que fosse de misterioso... Eu quis, em vão, inquirir a causa da sua atenção. Um terror instintivo me havia cravado na poltrona. Senti o quer que fosse dificilmente definível, que no silêncio da casa se havia coagulado dentro de mim, como névoa gelada...

Sem desviar o rumo do seu olhar, o gato desceu paulatinamente da cadeira, andou uns passos, creio que automaticamente, como se obedecesse à atração de um fantasma hipnotizador. E, então, o espanto me alucina e espicaça-me as carnes uma agulha gelada.... Então o seu corpo se tornou leve e se elevou do chão, impulsionado pouco a pouco por qualquer coisa que poderia ser uma brisa sobrenatural. Na altura do peito de uma criança como minha filhinha morta, quedou-se em doce recolhimento, na postura do gato quando dorme em braços carinhosos... Vi bem que as suas orelhas se abaixavam e se erguiam alternadamente, sob a suave pressão de mãos invisíveis...

Prostrado pela mais horrível angustia que já senti, e procurando instintivamente auxílio, levantei os olhos para o retrato. A figura da menina tinha-se desfeito num vapor luminoso. A tela me pareceu o aço de um espelho em que se refletisse um céu tempestuoso.

Violento, despertou o meu amor paterno, seprepujando-se ao meu pavor. Minha filha estava ali. Corri como um louco a abraçá-la, a reencarnar o seu espírito com os meus beijos... O gato desceu de um pulo, atirado ao chão pela sombra fugitiva, espreguiçou-se com pesar, subiu de um salto para a sua cadeira e tornou a adormecer.

*


Minha família regressou a casa. Meus filhos me beijaram alvoroçadamente. Minha mulher, vendo-me pálido, com a fisionomia transtornada, banhado ainda em suor frio, passou a sua mão pela minha testa e me disse:

Pobre marido! Trabalhaste demasiado!

Os meus olhos buscaram, suplicantes, os olhos do retrato, que não sorriam, e me fitavam graves e melancólicos. Ah, sim! As sombras familiares não são invisíveis para os gatos.


Fonte: “Vida Domestica”/RJ, agosto de 1931.

Fizeram-se breves adaptações textuais.

 

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