A MOEDA ROUBADA - Conto Clássico Cruel - Autor anônimo do séc. XX

A MOEDA ROUBADA

Autor anônimo do séc. XX

Tradução de autor desconhecido do séc. XX


Terminada a ceia, os convidados passaram para aquela sala e a conversação prosseguiu mais animada do que nunca.

Clifford, o dono da casa, era um colecionador maníaco de quanta medalha ou moeda rara pudesse existir. Sua coleção valia milhares de contos. Estava, por esse motivo, guardada em uma peça da casa, verdadeira caixa de ferro. Naquela semana, Clifford havia adquirido uma moeda romana de uma raridade absoluta. Daquela época, só existia uma outra igual, e, ainda assim, inferior à que comprara.

Justamente envaidecido pela aquisição, pensou em mostrá-las aos convidados. Trouxe-a. A moeda passou de mão em mão. Era a pérola da coleção do milionário e por si só valia, talvez, mais de cem contos.

Por ignorância do assunto ou por cortesia, alguns exageravam-lhe o valor. Depois, a conversação foi desviada, outros assuntos ocuparam as atenções gerais e ninguém mais pensou na moeda.

Mas, em dado momento, Clifford, que desejava repô-la em seu lugar. Pediu-a.

Todos se desculparam:

Eu não a tenho.

Não está comigo.

Faz tempo que a passei, não me lembro a quem.

Clifford teve um sobressalto:

Mas ninguém saiu daqui. A moeda só pode estar nesta sala.

Clifford era, sobretudo, um cavalheiro, um gentleman. Perder a moeda não deixava de ser para ele um duro sacrifício; a ele se resignaria, no entretanto, para não ferir a susceptibilidade dos seus convidados. Por isso, procurando tanto quanto possível afetar indiferença, terminou dizendo:

Vamos! Isto não tem importância. Miss Clementine nos tinha prometido cantar a ária Sigurd. E eu reclamo, pois, a promessa.

Mas a cantora desculpou-se.

Via-se forçada a recusar, porque não se sentia com boa voz.

A verdade é que todos se encontravam em um deplorável estado de espírito. A frase de Clifford equivalia a dizer: “Um de vocês é um ladrão; mas eu desisto de indagar quem merece tal estigma”.

Darrow, um velho amigo de Clifford, teve a coragem de romper o silêncio. Voltando-se para este, disse:

A moeda não pode ter-se evaporado. Se ela não está em poder de ninguém, terá caído ao chão. A sala é pequena; chama Robert e ordena-lhe que proceda a uma busca.

Faremos isso amanhã.

Não, senhor. Há de ser feito agora. Eu não quero sair daqui dando-te o direito de suspeitar se sou um ladrão.

Ora, Darrow! Quem seria capaz de pensar isso?

Realmente ninguém o julgaria. Darrow sempre fora mais rico do que Clifford e, se havia no mundo alguma coisa que lhe fosse indiferente, podia ter-se por certo que era a numismática. Mas todos apoiaram a sua proposta, e Clifford, convidando os seus hospedes a passarem para uma saleta vizinha, mandou ao empregado de confiança que examinasse o aposento.

Quando, daí a pouco, terminada a tarefa, apareceu no lugar para onde se havia transferido a reunião, não foi necessário perguntar-lhe nada. A decepção pintada em seu rosto denunciava claramente que a busca fora infrutífera.

A situação tornou-se ainda mais angustiosa. Darrow, um sujeito gordo e corado, parecia apoplético. Em seguida explodiu:

Quem não deve, não teme! É preciso que o dono da casa fique convencido que nenhum de nós é ladrão!

A palavra terrível voltava novamente. Darrow prosseguiu:

A moeda pode ter rolado, caindo em qualquer fenda do soalho. Mas nós não vamos sair daqui sob o peso de uma suspeita.

Inutilmente, Clifford jurou que não suspeitava de ninguém. Darrow sustentava a sua opinião:

Eu penso que nenhum cavalheiro verá inconveniente em esvaziar os seus bolso, aqui, diante de todos.

E, unindo a ação à palavra, começou ali mesmo a operação que propunha.

Entre os circunstantes, houve alguém que ficou lívido. Foi James Blatter. Todos notaram que dos seus lábios fugira a última gota de sangue.

Miss Clementine, que era quase sua noiva e que o amava loucamente, fitou-o com assombro. Todos haviam notado claramente a sua perturbação.

Em certo momento, quando Darrow acabava de recolher os objetos aos bolsos, que tinha virado do avesso, bem ostensivamente, Blatter não se conteve. Com um olhar estranho, um olhar de alucinado, declarou firmemente:

A ideia do Sr. Darrow importa em uma humilhação, a que eu não me submeterei.

E o seu olhar era um desafio à assistência. Blatter, desde logo, pressentiu claramente que todos suspeitariam dele. Acrescentou apenas:

Homem de honra, dou-lhes a minha palavra de que não furtei a moeda de Clifford.

Todos emudeceram. Clifford adiantou-se, cordialmente:

Fazes muito bem, meu querido Blatter. Em teu lugar eu procederia como tu.

Palavras nobres, mas que não conseguiram dissipar o mal-estar geral. Blatter resolveu retirar-se imediatamente. Só uma pessoa na sala contemplava-o com afeto: miss Clementine.

Mas uma das senhoras presentes, querendo justificar a proposta de Darrow, levantou a voz:

Não compreendo os escrúpulos do senhor Blatter. Tanto assim que eu proporia que, logo que os cavalheiros terminassem, as senhoras procedessem da mesma maneira.

Sentia-se que ela fazia tal proposta por perversidade, a fim de tornar ainda mais pesadas as suspeitas contra Blatter. Este não respondeu. Notou, no entretanto, que miss Clementine estremeceu, empalidecendo. Evidentemente, ela estava disposta a acompanhá-lo no mesmo gesto de altivez ante a proposta humilhante.

Blatter saudou a todos, friamente, com um movimento de cabeça. Apertou apenas a mão de Clifford e a de miss Clementine. Mas, no momento em que se despediu desta — todos conheciam a afeição que ele lhe dedicava —, pareceu que ia desfalecer.

Blatter havia sido um velho companheiro de Clifford. Não obstante, enquanto este marchava de prosperidade em prosperidade, Blatter, depois de um curto período de êxito, lutava agora com a adversidade mais negra. Ninguém imaginava, nem de leve, o seu estado de pobreza atual.

Na véspera de receber o convite do amigo, tinha gasto o ultimo níquel. Do seu antigo esplendor, conservava somente a elegante casaca, que vestia naquela noite. Dois motivos ponderosos o haviam levado a ir à casa de Clifford. Um, sentimental: ver miss Clementine; o outro, triste e apremiante: matar a fome.

Quando propuseram que se esvaziassem os bolsos, ele não o fez porque os tinha enchido com pedaços de pão e torrões de açúcar. Foi a vergonha dessa revelação que o fez fugir. Mas quando chegou ao seu quarto e, tomando o revolver, fez saltar os miolos, o motivo foi outro: ao apertar a mão de miss Clementine, esta lhe fez deslizar entre as suas a moeda roubada!

Era uma ladra! Ao ouvir a proposta da senhora, teve medo, e, servindo-se do noivo que se ia retirar, descartou-se do furto.

A decepção foi tão formidável que James Blatter sentiu que a vida já não merecia mais ser vivida. Que triste fim para o seu sonho de amor! A caminho de casa, aproximou-se da muralha do cais e arrojou a moeda ao mar. Fechando a porta do seu quarto, apoiou o revolver na fronte e detonou-o.

O suicídio pareceu confirmar ainda mais a suspeita que sobre ele caíra. E, quando as amigas de miss Clementine aludiam à morte da Blatter, ela dizia apenas, como alguém que houvesse sofrido um grande desencanto:

E, no entanto, parecia um moço tão sério!


Fonte: “Boa Nova”/RJ, janeiro de 1934.



 

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