TENEBROSA AVENTURA - Conto Clássico de Terror - Ítala Gomes Vaz de Carvalho

TENEBROSA AVENTURA

Ítala Gomes Vaz de Carvalho

(1882 – 1948)


Numa viagem de trem entre Paris e Zurique reparei, em frente a mim, curioso indivíduo de idade incerta, macilento, curvo, com a barba escassa e mal aparada que se espalhava pelo rosto até quase aos olhos pequenos e penetrantes.

Chegando a certa altura da viagem, quando a noite já tinha caído de todo, o meu estranho companheiro alongou-se sobre o leito, depois de me haver pedido permissão para tirar o paletó, substituindo-o por uma espécie de camisola de linho cáqui, que lhe chegava aos tornozelos.

Eu lia com muito interesse, na “Revista dos dois Mundos”, uma relação científica com o título sugestivo de “O segredo mortal do Dr. XX”.

Dizia em resumo que a ciência podia finalmente se vangloriar de haver descoberto, graças aos estudos do Dr. XX, o segredo da conservação dos cadáveres como se praticava no antigo Egito, com o notável aperfeiçoamento de não lhes alterar a cor da pele, o brilho dos olhos e a flexibilidade do corpo! “Os sovietes arrependem-se, hoje, de não ter aceito os oferecimentos do sábio, por ocasião do embalsamamento de Lenine, que, manipulado por certo Tzakine, já entrou em franco processo de decomposição”.

A um dado momento, reparei que o meu companheiro me observava de soslaio e ofereci-lhe a revista.

Quer lê-la? É interessantíssima.

Ele fez-me sinal que não, com a cabeça. Depois falou com uma voz branca, sem timbre:

Obrigado, já conheço.

Conhece o quê?

A história do prof. XX. É horrendo, é um assassino!

Ah?

Sim, fui assistente dele. Vi, ajudei a fazer os milagres, os pavorosos milagres.

Mas, então?

Já sei, já seu qual é a sua pergunta. Mas é tudo exato, exatíssimo. Não acredita?

Não tenho motivo para duvidar de suas palavras.

Não, mas não se trata de minhas palavras, mas dos feitos inegáveis do Dr. XX. O jornal, que o senhor lia ainda há pouco, as repete fielmente. Eu sei, eu sei!…

Creio bem, mas estou caindo de sono. Vou dormir, até amanhã.

Apagamos as luzes e nos recolhemos aos nossos leitos. Passaram-se alguns minutos, quando, de repente, o homenzinho pôs-se de pé com uma surpreendente agilidade, desceu da rede uma maleta alta, abriu-a e tirou de dentro um maço de papéis que me veio colocar entre as mãos, antes que eu pudesse dar acordo de mim.

Tome, leia e verá, verá… Fui eu quem escreveu esta verídica história do professor XX!

Eu quis dizer alguma coisa, mas o estranho indivíduo não deixou.

Agora não, agora não! Quando fizer dia e quando eu não estiver mais aqui. Promete?

Prometo-lhe tudo o que quiser — disse para acalmá-lo.

Obrigado. Ouça. O manuscrito é seu, guarde-o, com cuidado, esconda-o no fundo da maleta e leia depois, quando estiver só. É provável que não nos encontremos nunca mais. Leia! Leia!

Pois bem — respondi —, farei como me pede.

Pensa talvez que sou um louco?

Absolutamente, pode ficar sossegado.

Ah! O senhor inspirou-me logo simpatia; senti que lhe poderia confiar o meu…

Calou-se de repente e acrescentou num tom de voz mudado, seco.

Boa noite!

Estirou-se sobre o leito e não falou mais.


*


Na manha seguinte, acordei de madrugada. Estávamos quase a chegar. O leito em frente ao meu estava vazio. O estranho indivíduo desaparecera como por encanto.

Passaram-se anos. Nunca mais o vi, nem sei quem seja, porque não me ocorreu perguntar-lhe o nome, mas o manuscrito é tão curioso que não resisto ao desejo de transcrevê-lo.


*


É verdade, o professor XX, de Weser, descobriu o segredo de ‘confeccionar os mortos’. A palavra ‘confeccionar’, tratando-se defuntos, parece irreverente, chega mesmo a ser cínica, mas é o único termo que exprime bem a transformação por que passam as criaturas humanas depois de mortas entre as mãos do estranho mago.

São como estátuas de marfim antigo ou de pedra burilada e lisa. Que maravilha! Ninguém conhecia o professor nem o segredo, mas logo em seguida às primeiras lições, a Faculdade de Medicina considerava com assombroso respeito os resultados de suas experiências. Havia também muita desconfiança. Quando aquele homem alto e magro, com a cara cética e repulsiva, explicava como se deve manipular o cadáver (quase sempre o de um pobre-diabo, sem pátria nem família, que acabara sua triste odisseia num corredor de hospital), um arrepio percorria o auditório. Por certo, aquelas mãos longas de dedos aduncos deviam ser frias e visguentas como o corpo da serpente. A lição, ou antes a dissertação, que, todavia, não deixava escapar nenhuma luz sobre a maneira de preparar as substâncias injetáveis nos cadáveres, criava uma atmosfera de excitação pelo evidente triunfo do orador.

Dir-se-ia que o professor roubara, com a ajuda de Deus, a um outro Deus, o poder transmitir aos mortos uma nova centelha de vida. Não havia comparação possível entre as múmias egípcias e as estátuas maravilhosas que forjava o professor XX. A ilusão era perfeita. Homens, mulheres, crianças pareciam estar momentaneamente quietos na posição que lhes dava o mestre. Faltava-lhes, todavia, o calor vital; o contato era sempre gélido. Os cadáveres ‘semi-revividos’ ficavam colocados entre nós, em volta da sala, testemunhando de modo tangível o resultado extraordinário da nova descoberta. O professor comparava, apalpava os mortos e os vivos como a perscrutar em cada um de nós o futuro cadáver que lhe daria o ensejo de realisar um melhor e mais brilhante resultado. As palavras perdiam-se nos recantos escuros da imensa sala macabra onde os vivos permaneciam em longo convívio com os mortos. Passavam-se horas de interesse trepidante até que retumbava a frase que encerrava a lição ‘— Acabei, meus senhores. Até amanhã’ — espalhava-se pelo auditório, como um refrigério; uma sensação de infinito alívio que nos deveria libertar, mas era mister deixar passar alguns momentos antes que pudéssemos sacudir o torpor intenso que nos invadira. Eu via e compreendia tudo, porque já tinha experimentado a mesma sensação mórbida, e odiava o professor. Odiava-o com todas as forças do meu ser, enquanto todos os ouvintes me consideravam como sendo o seu discípulo mais entusiasta, o seu natural sucessor, que, no momento supremo, receberia, enfim, a revelação do ‘segredo’ que, por meu turno, transmitiria aos meus pósteros.

Mera ilusão! Quando o indivíduo que ama ardentemente o estudo é pobre, sujeita-se facilmente aos piores constrangimentos, contanto que não seja obrigado a abandonar a carreira escolhida. Isso, todavia, é um pecado que se paga amargamente. Sucedem coisas muito piores, como a de pingar, durante dias e noites de pesadelos, gotas parcimoniosas de um líquido repugnante nas orbitas e sob as unhas dos cadáveres que conseguíamos obter para as experiências do professor XX. A hedionda tarefa não podia ser interrompida, nem sequer durante uma hora, sob pena de prejudicar a ação branda e segura dos filtros que iam lentamente fixando cada célula morta no infinito das coisas eternas. Foi para chegar a esse belo resultado, para exercer esse terrível ofício, que meus pais se esgotaram num trabalho insano que lhes tolhera a vista, o prazer de tudo e a própria seiva vital! Ah! Eu sou um monstro, um filho desnaturado! Para satisfazer minha ambição, não hesitei em aceitar o sacrifício dos entes generosos me deram a luz do dia. É natural, é justo, que hoje eu expie o meu crime, e não sei nada, nunca o saberei. O professor não deixa transparecer um só vislumbre do que seja a famosa composição das mágicas essências. O ‘segredo’, que, todavia, vai diariamente aperfeiçoando permanece inviolado. Já nem são mais estátuas de marfim que ele obtém. São criaturas vivas a quem só falta a palavra e o movimento. A cor da pele volta a ser rosada, como se o sangue escorresse ainda quente pelas veias. Os olhos parecem ver, e as expressões fisionômicas são as de quem vai falar! Um prodígio, um verdadeiro prodígio!

Mas não há cadáver que o satisfaça inteiramente! Em vão percorro os necrotérios à procura dos que não são reclamados pelas famílias. Ele quer gente moça e bonita. Mulheres formosas ou crianças, e promete chegar a comunicar-lhes alma nova, restituir-lhes o movimento e a fala! Quem sabe? Eu já não descreio de coisa alguma. Este homem é o semideus das trevas!

Tenho medo, todavia, que este processo de embalsamamento faça sofrer as criaturas, mesmo depois de mortas, tal é o tremor interno, as convulsões musculares que apresentam a partir das cinco primeiras injeções. Aterrorizado, tive uma vez a ousadia de comunicar meus escrúpulos ao professor. Ele riu-se, com aquele seu riso satânico, que me exasperava. Meu ódio crescia, tomando proporções alucinantes.

Por que não fugi, então? Deveria ter partido, deixando-o sozinho, entregue à sua ciência criminosa, sim, criminosa, porque já não me podia libertar da suspeita que seu maior fito era o de comunicar outras tantas almas nefastas, como a dele, aos cadáveres que lhe caíam entre as garras.

Eu já não me pertencia, era o escravo de minha própria ambição, da sede do saber e da curiosidade intensa que me devorava. Estava como um joguete entre as mãos do mestre, pronto a coadjuvá-lo em tudo que quisesse.

Eu já não era mais eu! Comparava-me a um sonâmbulo que executa ordens sem discuti-las.

Quero cadáver de mulher moça, de morte recente, ainda tépido. Vá, mate-a se for preciso e traga-me o corpo!

O desejo de aperfeiçoar o invento levava-o até a formular planos assassinos. E eu havia de ser o cúmplice, ajudando-o nessa paixão criminosa? Ah, não, não! Queria apenas possuir a chave do segredo.

Afinal, arranjei um esconderijo seguro no próprio laboratório do professor. Atrás do armário, que perfurei cuidadosamente, e de onde me era fácil lançar os olhos pela sala inteira. Ficava horas perdidas, tremendo, todavia, com medo de ser descoberto e, também, com temor de assistir ao fenômeno esperado, desejado mesmo, de ouvir falar e de ver andar os cadáveres embalsamados que ainda permaneciam imóveis na postura e com a expressão que lhe imprimia o professor.

O vendedor ambulante lá estava fazendo sempre o mesmo gesto de oferta, com a insinuante expressão fisionômica de quem implora o cliente. A lavadeira, que se afogara no rio, continuava sempre curva, de joelhos, como a enxaguar as suas roupas na água corrente. O menino no berço estendia, sorrindo, os bracinhos cheios de covas, e outros e outros, até ao facínora com o punhal agarrado à mão levantada, como a querer cravá-lo, pelas costas, no transeunte indefeso. O ambiente era de pesadelo, parecia-me ouvir ruídos, como o tiritar de dentes. Seriam as pobres vítimas da insensatez do mestre ou, talvez, um rato!…

Concedei-lhes paz, meu Deus! — tinha eu ímpetos de gritar. — Não os priveis por mais tempo do nobre repouso da morte! Basta, basta de experiências!

Mas o diabólico professor continuava imperturbável, a exercer a sua macabra tarefa, e injetava, injetava! O quê? Não sei, nunca soube, tal era, rápido, o gesto de prestidigitador com que manipulava as substâncias e preparava os filtros. Talvez tivesse consciência de que alguém o observava ou talvez desconfiasse dos próprios cadáveres a quem restituía lentamente a vida.

Naquela noite memorável, quando, de repente, tocou a campainha da rua, encolhi-me, instintivamente, ainda mais para o fundo do meu esconderijo. O tinir do sino não cessava, como se alguém insistisse, com raiva, sem tirar o dedo do botão, mas ninguém ia abrir. As estátuas humanas já pareciam também estar escutando.

Finalmente, o professor desceu calmamente a escada que conduzia à galeria superior do laboratório, lá onde ele tinha os alambiques e o forno elétrico, e dirigiu-se para a porta de entrada. Voltou com um homem atarracado, maciço, cujos ombros denotavam uma força hercúlea. Entre as pregas da atadura que lhe envolvia o pescoço, pareceu-me ver, na luz imprecisa que iluminara a sala, uma larga cicatriz vermelha, que ia da orelha esquerda até a mandíbula direita, onde findava num buraco que parecia estar ainda em carne viva.

As palavras, que os dois trocavam em voz baixa, cortavam o ar saturado de miasmas, e cada palavra do gilvado parecia ter urna significação pesada que o professor acolhia com sorrisos de escárnio. Desenhava-se-lhe no rosto o pérfido prazer que eu bem conhecia. Estava prestes a agarrar uma vítima de rara seleção. Do meu canto, procurei esticar o pescoço para observar melhor o interlocutor do mestre. Não o conhecia, parecia-me nunca tê-lo visto assistir a uma lição. A porta da entrada tinha ficado aberta e os dois homens saíram para voltar, logo em seguida, trazendo a braços uma mulher desanimada.

Estiraram-na sobre a mesa de mármore. Trocaram mais algumas palavras, diminuíram a luz das lâmpadas e subiram à galeria que conduz ao gabinete dos alambiques, enquanto da rua ouvi de súbito o tropel de um cavalo, que partia num galope desordenado como animal sem dono. Sentia eu bater forte minhas veias temporais e o coração parecia querer arrebentar!

Tudo recaíra no silêncio anterior.

O homem quadrado e o professor desapareceram no fundo do quartinho superior. Eu estava só, só com todos aqueles cadáveres ‘confeccionados’ e a nova hóspede, que não dava sinal de vida! Devagarinho, saí do esconderijo para observá-lo de perto. Se em vez de morta estivesse somente adormecida? Despertando naquele ambiente alucinante, certamente morreria de susto.

Um xale escuro cobria-lhe o rosto e os pesinhos estavam sujos, como se tivessem sido arrastados na lama. Pesinhos mimosos, tornozelos finos e roliços demonstravam pessoa muito jovem. A penumbra em que estava mergulhada a sala não me deixava distinguir os contornos do corpo. Inclinei-me com sofreguidão sobre o amontoado das roupas finas que a envolviam, na ânsia de adivinhar algo de sua identidade, mas não ousava tocar no interruptor que faria mais luz. Andei com cautela em volta da mesa, com a esperança de ver ao menos uma das mãos da morta. Nada consegui. Onde estariam as mãozinhas dela? Talvez cruzadas sobre o peito, na postura clássica dos que se preparam para a suprema viagem? Puxei devagar uma ponta do xale e vi um pouco do rosto. Os olhos, entreabertos, brilhavam de lágrimas recentes; a pele, rosada, parecia estar com vida e o peito arfava, sim, arfava num respiro tênue, quase imperceptível. Seria ilusão ou estava mesmo viva?

Ouvi passos na galeria. Os dois homens voltavam. Qual seria o pacto infernal que haviam feito? Corri para o meu esconderijo.

Garanto que já estava morta quando consegui furtá-la a todos — dizia o atarracado. — Ninguém mais sabe dela nem de mim! É sua; pode começar sem receio a experiência!

Não! Não! — gritei, quase, ao meu canto. — Está viva, está viva!

A emoção embargava-me a voz. Não articulei palavra. Um suor abundante escorria-me pelas costas e as pernas recusaram-se a sustentar o meu corpo.

Quantas horas se passaram? Não sei. Teria eu desmaiado? Também não posso dizer, mas os dois ainda falavam.

Bem — dizia o professor —, guardo-a. Se o caso me interessar realmente, continuarei os meus trabalhos; do contrário, lhe mandarei dizer que a venha buscar e fará dela o que bem entender.

Eu só podia ver o homem atarracado, de lado, mas notei que, ao ouvir estas palavras, caíram-lhe os ombros como se algo se lhe tivesse rompido interiormente e ele fosse cair, arrastado pelo peso dos braços que se alongaram rente ao corpo, num gesto de mortal desalento.

O traço vermelho do pescoço ficou roxo. Curvei-me mais ainda, retendo a respiração, para ver melhor. O professor aproximou-se da mesa mortuária e tirou o xale que encobria a infeliz criatura. Com mãos habilíssimas, despiu-a completamente e olhou-a demoradamente.

Tocou-lhe as mãos, os olhos, e disse, enfim, com a voz opaca, lenta, para acalmar a ânsia do companheiro:

Arsênico! Arsênico! É interessante. Está entendido que me ocuparei dele; pode partir. Adeus! Vá!

Não, não partiria assim. Não era para fornecer mais uma brilhante experiência ao luminar da ciência moderna que lhe entregava o seu tesouro, o que de mais precioso possuía na terra. Diria, enfim, toda a verdade. Queria que o professor a ‘confeccionasse’ exclusivamente para ele, com a faculdade de amá-lo e de aceitar sem revolta a vida cativa no solar deserto, longe das outras criaturas humanas.

O tom lírico e apaixonado do homem acabou irritando o professor.

Não garanto nada. Sendo assim, é melhor que vá embora, que não se fale mais nisso.

Como um raio, o desconhecido precipitou-se sobre a mesa de mármore. Com mãos piedosas, arrumou as roupas da morta, envolveu-a no xale com carinho maternal e carregou-a docemente sobre os ombros. Lançou em redor olhares turvos e dirigiu-se para a porta.

Não, não! — quis gritar do meu canto. — Não a deixe levar por aquele monstro pelo amor de Deus!

O professor embargou-lhe os passos, fazendo um gesto imperioso de negação. O outro parou. Chorava baixinho, convulsivamente.

Sentou-se, com a carga sempre aos ombros, que balouçava do lado, com a cabeça caída. Descansou um momento, virou lentamente a moça, aconchegando-a carinhosamente sobre os joelhos e, afundando a cabeça no xale que lhe envolvia o rosto, soltou um uivo desesperado de fera mortalmente ferida.

O professor olhava o grupo com profundo desprezo. Afinal, o tédio venceu a curiosidade, e subiu as escadas a caminho do seu quarto, deixando ainda entreaberta a porta da rua. Qualquer solução do caso lhe era absolutamente indiferente.

Eu fiquei só com o indivíduo. Saí devagar do meu esconderijo e aproximei-me. Minha presença ali não o surpreendera. Pedi-lhe, então, com palavras boas, que deixasse ficar conosco o corpo da moça. O tempo passava e a decomposição não tardaria, enquanto que o professor poderia fazer com ela um verdadeiro prodígio.

Sim? Sim? Voltará a sorrir? Diga, diga! Poderá falar e me olhar com alma nova? Poderá me amar um pouco?

Prometi tudo, tudo o que ele queria e que eu não podia prometer, na ignorância total da vida de ambos e do poder dos filtros do professor XX.

Acalmou-se, consentiu e ajudou-me a repor a moça sobre a mesa de mármore. Só aí reparei o quanto era linda e o encanto indizível que emanava de toda a sua pessoa. Como teria caído aquele anjo entre as garras do monstro?

Confio na sua palavra — disse, quase balbuciando. — Obrigado, até breve.

E partiu.

Seguiram-se então dias de angustia e noites de insônia, em que eu me debatia entre dúvidas alucinantes e os mais atrozes sentimentos. O professor tinha dado logo início aos mais novos processos de embalsamamento, e eu, eu, com estas mãos impiedosas, que antes quereriam afagar, consolar, acariciar a infeliz criatura, ajudei a submetê-la à indizível tortura.

Salve-me, salve-me! — pareciam implorar os olhos meigos da pobrezinha. O resultado da experiência parecia ultrapassar, desta vez, as mais ousadas esperanças. O professor, interessadíssimo, já não cuidava senão dela. Creio que mudava frequentemente as substâncias injetadas. Devia estar longe do arsênico inicial. Qual seria o diabólico filtro que lhe conservava assim o colorido, a flexibilidade da pele e a maciez das carnes, que já não eram frias como a dos outros cadáveres? Eu procurava descobrir a chave do mistério, mas não chegava a nenhum resultado. O professor ficava cada vez mais taciturno, distante, esquivo a qualquer familiaridade que me pudesse dar um pouco de luz. Eu só devia ser o autômato incumbido de servi-lo cegamente e nada mais.

Notei que também ele se transformava. Não cuidava mais de concluir a reconstituição dos outros cadáveres. Ordenou-me que os levasse da sala para um aposento à parte, ou para a adega, se fosse preciso. Não os queria mais ver ou não queria que a moça loura os visse e tivesse medo?

Também ele, então, suspeitava que a vida não tinha desertado daquele corpo de deusa?

Certa noite pareceu-me vê-lo falar-lhe baixinho e ela responder, não somente com o inclinar da cabeça, mas com o movimento dos lábios de onde saia uma voz sumida, abafada, como um sopro.

Ressurreição ou transformação? Não sei, não sei. Parecia-me vê-la experimentar um ou outro gesto indeciso, muito lento, como os dos paralíticos que recomeçam a se movimentar. Poderia andar um dia? Quem sabe? E como era linda. À proporção que os fluidos vitais voltavam a lhe circular pelas veias, renascia-lhe a formosura como uma flor que desabrocha. Jamais imaginei igual prodígio. Os cabelos pareciam uma cascata de espuma de ouro. Finos, sedosos, impregnados de uma peculiar vitalidade, que lhe dava uma personalidade à parte.

Cobriam-na toda, envolvendo-a numa auréola intangível. Eu tinha vontade de protegê-la, de salvá-la de um perigo indefinido, em que, todavia, concorri para precipitá-la, graças à passividade de minha atitude. Tinha vergonha de mim mesmo.

O homem misterioso rondava em torno da casa sem ousar ainda entrar para exigir a conclusão do pacto infame. Queria encontrar a alma nova, a alma estranha, que aceitaria sem revolta o seu amor monstruoso.

O professor continuava no indefeso labor de mil tentativas, sem encontrar o meio seguro de enxovalhar aquele anjo.

Uma noite, a vi sorrir, com um suave sorriso confiante, acompanhado do olhar reconhecido de quem agradece.

A desgraçada ignorava o hediondo mercado a que era arrastada pelas paixões torpes dos dois homens. Como fazê-la fugir? Pôr léguas infindáveis entre ela e o antro de desventura onde a trouxera o destino atroz? Sair com ela ao colo não me permitiria ir muito longe. Onde iria, afinal, abrigá-la, desde que eu não tinha domicílio? Era forçoso esperar que o progresso das experiências lhe restituísse a faculdade de caminhar.

Na noite seguinte, por um incompreensível descuido, a porta da rua ficara aberta e o homem entrara, sorrateiramente, como um ladrão, pisando de leve na ponta dos pés. Fez lentamente a volta da sala, aproximando-se da poltrona onde estava docemente recostada a suave criatura, que parecia meditar à luz misteriosa da lâmpada verde. Chegou quase a lhe tocar os lindos cabelos soltos, quando se ouviu o professor, que descia sofregamente a escada. O homem só teve tempo de dar um salto para trás e de cair quase sobre as minhas costas no mesmo esconderijo onde eu estava observando.

Fizemos, simultaneamente, o mesmo imperioso sinal de silêncio. O professor trazia uma seringa cheia de um líquido cor de rubis.

Já fala, já fala? — perguntava-me, num sopro quente, o meu vizinho.

Não sei. Cale-se, cale-se — implorava eu —, deixe-me ver…

O professor aproximava-se da poltrona com ar de infinita ternura e sua voz ressoou na sala imensa.

Perdoa-me, amor, deixa-me fazer mais esta prova. Espero que ela será a fonte de tua libertação.

E, tomando-lhe a mãozinha, introduziu a agulha da seringa no dedo anular esquerdo. A moça parecia anuir, sorrindo, com olhares de entendimentos e gratidão.

Canalha! — rosnou o indivíduo ao meu lado e, antes que o pudesse reter, rompeu pela sala com as mãos crispadas, antecipando o gesto de estrangular o rival.

Os dois homens atracaram-se num tremendo choque que fez estremecer tudo em volta. Eu deveria ter corrido para interceder, procurar afastá-lo e impedir que o professor sucumbisse sob a força bruta do monstro enfurecido. Rolavam pelo chão na luta mortal que esmagaria fatalmente um deles, mas eu não podia fazer nada. Estava hipnotizado, imóvel, olhando o milagre da ressurreição da morta! O horror da cena bestial refletia-se nos olhos dela, que aumentaram aterrorizados, enquanto unia as mãos como a pedir misericórdia. Enfim gritou, gritou alto e demoradamente, sons inarticulados, que pareciam querer juntar sílabas e, num indizível arremesso de espanto, levantou-se e saiu correndo pela porta da rua.





Eu tremia de surpresa e medo, vendo o fenômeno, que, no entanto, esperava há tantos dias e noites seguidas de angustiosa observação. Mas sentia-me como embriagado. No momento, não compreendi o que se passava.

Para, para! — gritei desesperado. — Não a deixem fugir, não a deixem!

E quando, enfim, pude reaver minhas forças, corri também como um louco porta fora atrás dela.

Mas em vão. Não pude mais alcançá-la.

Na noite escura, pressentia um vulto branco que fugia, célere, diante de mim, cada vez mais longe, ziguezagueando como ave batida por forte vendaval. Dir-se-ia que voava, de tão leve parecia tocar o solo. Seus gritos incessantes chegavam cada vez mais fracos, abafados pela distância que aumentava entre nós.

Socorro! Socorro!

Ninguém ouvia, ninguém vinha auxiliar-me para fazê-la parar.

Ela podia tropeçar, machucar-se, cair num precipício ou, pior, ser agarrada e levada à força para alguma casa de infâmia.

Tão linda e indefesa!

Quanta indiferença pela moça ‘morta-viva’ que se achava de repente jogada, com o seu sopro artificial, entre as paixões e a ferocidade humana. Corri assim atrás dela a noite inteira sem ganhar um palmo de terreno. As brumas da primeira madrugada levantavam-se muito densas e já o seu vulto se confundia nas tonalidades lácteas da manhã. Perdia-a completamente de vista nas vielas tortuosas do imenso subúrbio. Ainda percebi alguns gritos mais agudos e depois mais nada, nada. Meu coração dilacerava-se.

Voltei, estremunhado, ao laboratório. Os dois homens lá estavam desanimados, sujos de sangue, sobre o chão, entrelaçados num tremendo amplexo de ódio. Estariam apenas desmaiados? Não sei. Não me ocupei deles. Procurei com ânsia a seringa. Estava jogada sobre a mesa. Restavam ainda algumas gotas do líquido misterioso que produzira o prodígio. Guardei a seringa no bolso e fui ao móvel onde o professor guardava o dinheiro. Friamente arrombei a gaveta e retirei tudo que lá estava. Era muito. Pacotes de cédulas, títulos ao portador, moedas de ouro de diversos padrões. Enchi a maleta. Mudei de roupas e não raspei a barba que já era de dois dias. Saí, fechando a porta com a chave pelo lado de fora, e mais adiante joguei-a numa fossa de esgoto. Minha única missão na vida estava agora traçada com letras de fogo. Amar, proteger e procurar sem descanso a pobre ‘morta-viva’. A vítima inocente das nossas paixões torpes!”


*


O manuscrito acabava aí e não tinha assinatura!



Fonte: “A Noite Ilustrada”/RJ, edição de 22 de abril de 1934.

Ilustração do miolo: Álvaro Marins (Seth) (1891 – 1949).


 

Comentários

  1. E aí Barão amigo, parei pra ler esse conto...Esta vossa página tem que ser eterna, este site é muito bom!

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  2. amigo, acabei de ler, mas essa autora é maravilhosa, genial ! Ela era musicista também, pesquisei no Gemini IA.

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  3. amigo olha só esse trecho, ISTO É OURO GNÓSTICO! "Dir-se-ia que o professor roubara, com a ajuda de Deus, a um outro Deus, o poder transmitir aos mortos uma nova centelha de vida." Agora, como essa autora numa época sem IAs ou internet ela conseguia ser tão culta e escrever tão bem, é um mistério ou não, ela devia ter uma biblioteca ou ler tudo o que viesse ás suas mãos. Aliás, o trecho a revista e do manuscrito é uma pista.

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