UMA DINASTIA DE FANTASMAS - Conto Clássico Pseudo-sobrenatural - Alessandro Varaldo

UMA DINASTIA DE FANTASMAS

Alessandro Varaldo

(1873 – 1953)



No grupo de homens de sociedade e de formosas damas, o ancião ria às gargalhadas.

Com que então existem espectros? Isto só por brincadeira!

Contudo, coronel — insinuou o professor Langoseo —, o mundo astral…

Deixe lá o mundo astral!

A telepatia… Esse sentido do infinito.

Tudo quanto o senhor quiser; mas se eu lhes contasse…

Todos olharam para ele com curiosidade.

Vai contar-nos alguma história, coronel?

Uma história tétrica?

Uma história para tapar os ouvidos? — perguntou uma dama.

O coronel, sacudindo a cinza do cigarro com o dedo mínimo, respondeu, com ar risonho:

E por que não? Uma história de caça, uma história de espectros e até uma história para tapar os ouvidos. Mas eu prevenirei as senhoras a tempo.

Durante alguns instantes, só se ouvia o barulho das cadeiras aproximarem-se.

Tem a palavra o coronel! — exclamou o professor. — “Conticuere omnes1”.

E o coronel começou…


*


Há trinta anos (digo trinta anos por modéstia), eu só tinha uma paixão: a caça.

Escolhi naquele ano uma aldeiazinha da Toscana. Caminhava por um atalho sombrio, ladeado de pinheiros, na companhia alegre e perfumada do tomilho e a música monótona do cuco. O sol estava prestes a desaparecer por detrás da floresta dos Apeninos, quando me encontrei em um vale verdejante, habitado, ao fundo, por uma aldeia que tinha aparência exata de uma paisagem alpina.

Dominando a aldeia, destacava-se pequeno castelo, ali colocado outrora para defesa dos habitantes. Em volta dele, via-se um grupo de árvores seculares, sobre as quais emergia uma única torre como a pluma de um pele-vermelha.

Encaminhei-me para ali. Um pançudo túnel indicava claramente a porta da hospedaria. Entrei num grande compartimento de chão de terra batida, tendo a cozinha ao fundo. Aos lados havia mesas de pinho, estreitas e compridas. Penduradas nas paredes, viam-se ilustrações de jornais e várias licenças antigas de caça.

A hospedeira — bonita moça, alta, esbelta, loura como as espigas, de pele muito branca e olhos muito negros — veio ao meu encontro com sorriso acolhedor.

Uma mocinha, também deliciosamente loura, segurava-se às suas saias. Aquela formosa mulher exalava aroma penetrante a roupa limpa e a frutos maduros…

Quando soube do meu desejo de cear e de dormir ali, se houvesse lugar (e eu bem sabia que havia!), pôs-se imediatamente a preparar-me a comida e a tirar de um baú roupa que cheirava tão bem quanto ela.

Sentei-me junto da janela com um copo de vinho branco ao lado e com a perspectiva do castelo, que se recortava no céu azul-escuro como uma água-forte.

Seu aspecto romântico despertava minha curiosidade.

Como seria sua história?

Interroguei a hospedeira, que nada soube dizer-me de interessante. Mas o farmacêutico da terra, que tinha chegado pouco depois de mim, e me tinha cumprimentado como se tivéssemos acabado de nos separar na véspera, deu-me todas as indicações de que precisava. O farmacêutico era exatamente falador e cordial; sentou-se à minha mesa, bebeu do meu vinho e contou-me a história do castelo. A mais moderna, porque a de outrora era da competência do encarregado dos correios. Este chegou precisamente no momento em que se falava dele, em companhia do guarda rural e de um membro do conselho municipal.

Fizeram um semicírculo e ficaram a ver-me comer minha tortilha de presunto e minha salada.

Só se falou do castelo, orgulho da região, depois do queijo.

Pode-se visitar? — perguntei.

Claro que sim! — respondeu-me o farmacêutico. — As chaves tem-nas Angélica (indicou a hospedeira), mas não gosta muito de cedê-las: tem medo que lhe estraguem a horta e lhe espantem a caça.

Há caça? — perguntei com interesse.

E, verdade, o senhor é caçador? Há, sim, senhor. O parque que rodeia o castelo, porque está sempre fechado, abunda em lebres, assim… enormes (punha o mão a certa altura sobre a mesa), sem falar nos coelhos, nem nos veados.

Isso é verdade? — interroguei. — Que belas caçadas noturnas ao luar!

Isso não — interrompeu o encarregado dos correios. — À noite, não!

E por quê?

Olharam uns para os outros com expressão subitamente apavorada. O funcionário municipal até se persignou.

Porque… ouvem-se ruídos estranhos.

E todos, ao mesmo tempo, começaram a contar a história de uma castelã, que fora a causadora da morte de Pia del Talomei, e que, havia dois séculos, aparecia a todos os temerários que se atreviam a ir perturbar o seu repouso atormentado.

Isso são histórias para amedrontar meninos! — declarei, convertido em mais valente do que Bayard, graças àquele vinho branco. — Que provas há disso?

Contaram-me casos. Havia cinco ou seis anos, um atrevido caçador, que teimara em passar a noite no castelo, no dia seguinte foi encontrado quase morto. Dois ou três anos depois, sucedeu o mesmo a outro incrédulo, e a um terceiro ainda não havia um ano.

Todos sabem perfeitamente que as histórias de aparições terminam sempre da mesma forma: há sempre alguém que faz uma aposta e alguns tolos que a aceitam, esperando ganhar.

Desta vez fui eu. Em vão tentaram dissuadir-me do meu intento. Em vão a hospedeira, que se tinha interessado pela discussão, fez passar sob os meus olhos a visão prometedora da minha cama muito apetecível. Nada me conteve.

Maldito vinho branco!… Ou, melhor, bendito…

Mas não nos precipitemos. Acompanhado pelos meus novos amigos, pela Angelina e por quase todos os habitantes da terra, que experimentavam a sensação de ir ao teatro, encaminhei-me para o ignorado. Todos pararam ao chegar ao portão. Voltaram a insistir comigo para que desistisse, mas eu, precedido pelo cão caçador da estalagem, franqueei os umbrais fatídicos e o portão fechou-se nas minhas costas com um ranger sinistro. Mergulhei na sombra sem querer acender o archote que me tinha sido fornecido pelo guarda rural. O cão precipitou-se pela alameda, sem se preocupar comigo, e eu o segui, acompanhado por frases de alento e comentários cujo murmúrio continuava como um ruído do ribeiro do lado de fora do gradeamento.

A alameda era muito curta. À minha direita, vi o buraco de uma porta aberta na pedra; o cão entrou ali dentro e eu atrás. Subimos uma escada de degraus carcomidos, em muito mau estado, no fim da qual vi uma porta encostada.

Devo fazer uma confissão nesta altura: senti ligeiro estremecimento. Se a porta estivesse aberta de par em par, ou mesmo se estivesse solidamente fechada, quem sabe? Talvez não me tivesse detido. Mas, entreaberta como estava, com aquela proximidade imediata do ignorado, que eu julgava estar espreitando pela abertura, confesso, sem me envergonhar, me ter causado sensação de medo; de verdadeiro pavor. Os cabelos queriam pôr-se em pé, um leve suor frio orvalhou-me a fronte, a respiração entrecortada e o coração que parecia saltar…

Felizmente, nas pessoas que têm o sistema nervoso em bom estado, o amor-próprio triunfa sobre o medo. Foi o cão que despertou meu amor-próprio. Voltou o focinho para mim. Pelos seus olhos, quase humanos, embora com indiferença suprema, vi perpassar um relâmpago de ironia, tão visível que me envergonhei! Acreditem! E então abri a porta com formidável pontapé.

Tinha sido como a prova de enjoo para o estreante em viagens marítimas. Já tinha pago meu tributo. Achei-me numa antecâmara tão nua como a verdade. Ao fundo, uma grande janela, e de lado, igualmente uma porta semicerrada. O cão dirigiu-se para a porta da esquerda. Com o archote na mão, dirigi-me, ao contrário, para a porta da direita, e verifiquei que dava para uma espécie de corredor sem saída.

Segui, então, atrás do cão. Atravessamos dois compartimentos sem nenhum mobiliário, para, por fim, chegar a um último aposento, no qual se destacava, solenemente, uma cama sem lençóis, mas carregada de mantas velhas. Junto do leito, um grande banco. Nada mais, ou, para melhor dizer, mais um quadro na parede, de onde me senti observado por uma horrível máscara, uma face sinistra de bandido, qualquer coisa de horrível como pintura, num estado lastimoso de conservação. A bochecha direita, desbotada, parecia atacada por asquerosa tumefação.

Acendi um cigarro para desviar minha atenção daquele pavoroso retrato e, então, reparei que o cão raspava no chão com o propósito evidente de chamar minha atenção. Quando viu que eu estava a olhar, não esteve com mais cerimônia, deu meia volta e desapareceu a toda a velocidade…

Abri a única janela, precisamente a tempo de vê-lo desembocar pelo buraco da entrada, e enfiar-se pela alameda, como se alguém o perseguisse. Aquele cão me pareceu bem amestrado…

Fiquei, então, sozinho. Mas não tinha medo. Uma argola fixa à parede convidava-me a colocar ali o archote. Com as mãos livres, pude chegar melhor à janela.

A espessa massa de árvores impedia-me de ver a aldeia. Ouvi o límpido cantar do rouxinol. Quanto tempo permaneci ali vigiando, debruçado, olhos semicerrados, em doce sonolência? Talvez tivesse adormecido, embalado por aquele canto tão harmonioso… mas, subitamente, despertei sobressaltado.


*


É agora a altura de tremermos? — perguntou o professor.

Tenho que fechar os olhos para não ver? — indagou uma senhora nervosa.

Pelo contrário! — declarou o coronel. — Se quer perceber alguma coisa, feche os ouvidos.

E continuou, perante a crescente atenção de todos.


*


Acordei sobressaltado por espantoso barulho de correntes ou outras coisas metálicas entrechocando-se, como se alguém estivesse a arrastar, atrás de si, uma bateria de cozinha.

O archote, que ardia lentamente na argola, espalhando em volta uma claridade avermelhada, parecia troçar do meu irreprimível terror.

Sem saber bem o que fazia, agarrei a espingarda e apontei para a porta. Esta abriu-se bruscamente para deixar ver um fantasma alto, branco, irradiando ligeira luz azulada. Foi como um relâmpago. Diante da espingarda que o ameaçava, o espectro deu um gritinho agudo e se desembaraçou do lençol, atirando com a lanterna… Então, estupefato, vi avançar a hospedeira, em pessoa:

Perdão!

O quê?! É a senhora?!

Sou… Não me faça mal. Eu explico-lhe tudo. Peço-lhe que não dispare.

Pelo sim, pelo não, perguntei-lhe, antes de baixar a arma:

Está sozinha?

Completamente só. Seja bom. Largue a espingarda, peço-lhe.

Ao dizer isto, lançou-me um sorriso encantador… Obedeci.


*


É melhor parar aí! — manifestou o professor, indicando as senhoras.

As damas ruborizaram-se, mas não protestaram contra o que podia seguir-se.


*



O coronel continuou:

Falamos longamente. Perguntei-lhe o motivo de toda aquela comédia. Era fácil perceber. As terras do castelo rendiam o bastante para se exporem a perdê-las. Por isso, tinham que assustar os incautos.

Mas, por que não é o seu marido que faz de fantasma?

Porque, porque… Pode acontecer que um homem valente, como o senhor, não se deixe enganar… E então há que lhe pedir, convencê-lo… Uma mulher faz-se perdoar com mais facilidade.

E já tem convencido muitos?

Muitos, não. O último foi há três anos.

Se não me engano, o ano passado também aqui veio um.

Veio; um fanfarrão que desmaiou de susto e a quem vieram encontrar, no dia seguinte, meio morto de medo.

Rimos ambos com muita vontade. Passamos o resto da noite em animada conversa. Quando vimos aparecer na janela os primeiros alvores da madrugada, Angelina disse-me:

Agora, tem que me ajudar.

Às suas ordens; o que hei de fazer?

É necessário que o venham encontrar abatido e aterrorizado.

Tenho que fazer acreditar em que há fantasmas, não é assim?

Exatamente. Promete?

Prometo.

Obrigada. E não voltará a esta terra durante algum tempo!

Pode ficar descansada.

Cumpri a minha promessa. Encontraram-me na cama num tal estado que faria empalidecer de inveja qualquer ator trágico. Não conseguiram arrancar-me nem uma palavra. A meu pedido, meteram-me numa carroça. Abaixavam as cabeças ao ver-me caminhar. O representante municipal balbuciou, persignando-se:

São coisas do outro mundo!


*


Contudo — observou o professor —, veio-me agora uma coisa à ideia... A formosa Angelina poderá representar seu papel durante algum tempo; mas, como poderá convencer os homens destemidos, quando seu rosto, com o possar dos anos, perder os seus encantos?

Ocorreu-me exatamente essa ideia há cinco anos; quis saber se os fantasmas já tinham acabado de infestar o castelo daquela terriola dos Apeninos. Pois meus amigos continuam a fazer das suas por lá.

O quê? Ainda a Angelina…

A Angelina não, mas a filha! Aquilo é uma dinastia de fantasmas….


Fonte: “Careta”/RJ, edição de 31 de agosto de 1957.


Nota:

1Todos em silêncio.

 

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