A AUTÓPSIA - Conto Clássico de Horror - Carlos Diaz Dufoó


        
A AUTÓPSIA
Carlos Diaz Dufoó
(1861 – 1941)
Tradução de Paulo Soriano


I
Teodora alcançara aquela idade em que o espírito, presa de estranhas alucinações, procura nos espaços fulgores desconhecidos e nas flores aromas especiais. Seus olhos, luminosos e radiantes, refletiam a curiosidade de uma alma inquieta, nascida para ser contemplada de joelhos.

Chegou ao altar quando o alvor da adolescência mal iluminava o seu semblante. Ali, naquela alcova onde o anjo da felicidade coloca sigilosamente o seu dedo nos lábios, havia encontrado um homem frio e reservado, impregnado o espírito de problemas transcendentais, de casos patológicos, de dúvidas científicas.

Havia passado de sua clínica à câmara nupcial bruscamente, sem transição alguma, e se encontrava nos braços daquela menina como em sua sala de aulas, diante de seus discípulos, nos solenes momentos de uma operação cirúrgica.

Teodora chorou seus desenganos por muito tempo. Depois, o costume afastou as sombras que se projetaram em seu espírito e a assediaram durante alguns anos.

Todas as manhãs via o seu marido afastar-se, sempre silencioso, sempre pensativo, depois de uma noite de insônia, consultando, ao reflexo do pálido revérbero que iluminava tenuemente a cama de madeira rosa em que ela descansava, as obras dos mestres, sem que seus olhos, pousados naquelas páginas, revelassem uma só ideia mundana, uma só centelha de vida.

Todos os dias, ao bater uma hora da tarde, o coche do doutor estremecia as vidraças da casa.

Momentos depois, imprimia seus lábios gelados e descoloridos na pensativa fronte da esposa.

Comiam em silêncio e penetrava em seu gabinete de estudo para não sair até hora muito avançada da tarde, quando o último raio havia deixado de dourar os cimos das montas montanhas.

Teodora passeava no bosque sua amarga melancolia e quando as trevas da noite, confundindo-se com as de sua alma, envolviam os caprichosos contornos das árvores, o coche ganhava as ruas da cidade, e ela penetrava naquele lugar sombrio e taciturno que não turbava o seu repouso com o mínimo ruído
.
Certa noite, Teodora não voltou.

Na manhã seguinte, no salão da Sra...., corria de boca em boca a notícia de que a bela T..., esposa do célebre doutor M..., havia abandonado o domicílio conjugal em companhia de um conhecido Lovelace, cujas seduções mundanas fizeram-no herói de numerosas aventuras.

Na solitária casa da rua de .... a vida não havia mudado.

Todas as tardes, a uma hora, o ruído de um coche estremecia as vidraças do edifício e o doutor, frio e silencioso, transpunha os umbrais daquela porta, que tornava a fechar-se a seu passo.

O transeunte que a altas horas da noite cruzasse aquela apartada via pública e fixasse o seu olhar no edifício, poderia vislumbrar um pálido raio de luz que se desprendia de uma de suas varandas.

Era o doutor que estudava.


II


Naquela noite, o doutor madrugara mais que de costume.

Um círculo escuro circundava seus olhos, que pareciam mais cavernosos que nunca. No fundo daquelas cavidades se adivinhavam, melhor que se viam, duas pupilas fixas em um céu plúmbeo de melancolia vaga e taciturna.

Saiu. As leves gotas de uma chuva finíssima caíam nos charcos das calçadas, produzindo pequenas ondulações que se apagavam por um instante para desenhar-se de novo. Os coches salpicavam de lodo os transeuntes.

As pesadas rodas dos carros se fundiam na lama com um estalido glutinoso.

No hospital, os alunos esperavam o doutor, trocando mútuas confidências de suas aventuras estroinas. O ar úmido da manhã não se fazia sentir naquela atmosfera impregnada ácido fênico. Um passo lento e compassado ressoou entre os corredores. Os cochichos cessaram: era o doutor.

Quando entrou na sala, seguido de seus discípulos, a impassível fisionomia do médico se iluminou por um momento. Seus olhos brilharam como duas achas de fogo, sua tez murcha se coloriu por um momento, sua fronte se levantou orgulhosa e firme, e, com voz sonora e metálica, começou a sua lição:

— Senhores...

O assunto era o envenenamento por cianureto.

O doutor pretendia seguir as pistas da intoxicação pelo veneno e investigar certos fenômenos que poderiam ter escapado à experiência.

Um aluno interrompeu o professor. Precisamente na noite anterior chegara ao anfiteatro o cadáver de uma mulher intoxicada pelo cianureto em um antro de prostituição. O corpo esperava pela autópsia.

Animado pela febre da ciência, aquele homem de gelo abandonou a cátedra e, sempre seguido por seus discípulos, penetrou na sala de dissecações.

Uma mesa de mármore branco, escurecida por uma leve camada gordurosa, erguia-se naquele amplo recinto, iluminada por largas janelas, por onde um raio de sol, que havia fendido naquele momento a escura prisão de nuvens que o envolvia, penetrava alegremente, incidindo sobre um crânio amarelado, abandonado no canto mais afastado do lugar.

O doutor havia retirado de sua maleta de instrumentos um bisturi flexível e delgado como a língua de uma serpente. Era outro homem, seu rosto resplandecia. Um fulgor estranho iluminava aquela fronte escurecida pela insônia. Em sua boca havia um sorriso de amor-próprio satisfeito. Seu nariz aspirava com deleite aquele ar carregado de emanações de sangue humano.

Trouxeram o cadáver.

Era o de uma mulher jovem e bela. Suas formas haviam sido marcadas pelo prazer sem que perdessem o primitivo encanto de suas linhas. O vício movera aquele monte de branca e lisa, de contorno suaves e curvas virginais.

O doutor se aproximou e uma palidez mortal cobriu o seu semblante.

Hesitou um momento...

Aquele cadáver era o de Teodora.

A mesma estranha claridade que iluminava um pouco antes as suas feições, murchas e fatigadas, apareceu novamente em seu rosto.

Aproximou-se da mesa de autópsia e, procurando no corpo uma determinada região, fez a primeira incisão com o bisturi.



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