A CABEÇA DECEPADA - Conto Clássico de Terror - Alexandre Dumas




A CABEÇA DECEPADA
Alexandre Dumas
(1802 -1870)
Tradução de autor desconhecido do século XIX


I - A rua Diana em Fontenay-aux-Roses

Às cinco horas da manhã fomos caçar, guiados pelo filho de nosso anfitrião.
Gosto de caça, mas o passeio me aborrece e, mais ainda, o passeio por meio do campo. Assim, sob o pretexto de ir explorar um campo que me ficava à esquerda, e no qual eu estava certo que nada acharia, rompi a linha dos caçadores e desviei-me.
Mas o que havia nesse campo, a me inspirar o desejo ― que, havia muito, me dominava ― era um caminho cavado que, subtraindo-me às vistas dos demais caçadores, devia levar-me pela estrada de Sceaux direto a Fontenay-aux-Roses.
Não estava enganado: ao dar uma hora na igreja da aldeia, eu me achava junto das suas primeiras casas.
Caminhei ao longo de uma parede que parecia guarnecer uma bela propriedade. Mas, ao chegar ao ponto em que e a rua Diana cruza com a rua Grande, vi correr, em minha direção, do lado da igreja, um homem de aspecto tão estranho que parei e, instintivamente, engatilhei a minha espingarda, levado apenas pelo senso de autopreservação.
Todavia, pálido, com cabelos eriçados, os olhos a saltar-lhe das órbitas, as roupas em desalinho e as mãos ensanguentadas, esse homem passou por mim, sem me ver. Seu olhar estava ao mesmo tempo fixo e vago. Seu andar tinha a exaltação invencível de um corpo que desce em desabalada carreira um íngreme declive e, no entanto, o ofegar de sua respiração indicava mais horror do que cansaço.
No cruzamento das duas vias, ele deixou a pela qual vinha, e tomou a rua Diana, que se abria à propriedade cujos altos muros eu havia acompanhado por durante alguns minutos. Esse portão, que imediatamente se fixaram em meus olhos, era pintado de verde e tinha por cima o nº 2. A mão do homem estendeu-se para a campainha muito antes de poder alcançá-la e, quando a alcançou, balançou-a violentamente. Depois, volteando sobre si mesmo, achou-se sentado em um dos marcos que resguardavam a porta. Ficou imóvel, com os braços caídos, e com a cabeça inclinada sobre o peito.
Dei meia volta, compreendendo que aquele homem deveria ser protagonista de algum drama desconhecido e terrível.
Por trás dele, e de ambos os lados da rua, algumas pessoas, nas quais ele produzira a mesma impressão eu sentira, haviam saído de suas casas e contemplavam-no com espanto igual ao que eu mesmo sentia.
Ao toque da campainha, que retinia com força, abriu-se uma portinhola, que ficava próxima ao portão principal, e apareceu uma mulher de quarenta para quarenta e cinco anos.
― Ah, é você, Jacquemin? ― disse. ― O que está fazendo?
― O senhor prefeito está em casa? ― perguntou, com voz abafada, o homem a quem essas palavras eram dirigidas.
― Sim.
― Então, tia Antônia, vá dizer-lhe que eu matei minha mulher, e que venho entregar-me à prisão.
A tia Antônia deu um grito a que responderam duas ou três exclamações arrancadas pelo terror às pessoas que, por estarem mais próximas, tinham ouvido essa terrível confissão.
Eu mesmo dei um passo para trás, encontrando o tronco de uma árvore, na qual me encostei.
De toda sorte, todos os que a ouviram haviam-se imobilizado.
Quanto ao assassino, tinha escorregado do marco ao chão, como se, depois de proferidas essas palavras, as suas forças houvessem-no abandonado.
Entretanto, a tia Antônia havia desaparecido, deixando aberta a portinhola.
Evidentemente, fora levar a seu patrão o recado que Jacquemin lhe mandara.
Cinco minutos depois, surgiu ao portão aquele a quem ela fora procurar.
Estava ele acompanhado por dois homens.
Ainda posso ver o aspecto da rua: Jacquemin tinha, como já disse, caído ao chão. O prefeito de Fontenay-aux-Roses, que fora chamado pela tia Antônia, achava-se junto a ele dominando-o de toda a sua altura, que era notável. Na abertura do portão estavam as duas pessoas de quem mais detidamente teremos ocasião de falar. Eu estava encostado à árvore na rua Grande, de onde estendia o meu olhar ao longo da rua de Diana. Ficava-me à esquerda um grupo composto por um homem, uma mulher e uma criança; a criança chorava para que sua mãe a pegasse no colo.
Por detrás desse grupo, um padeiro enfiava a cabeça por uma janela do primeiro andar, conversando com um ajudante que estava embaixo; perguntava-lhe se aquele não era Jacquemin, o operário de pedreira, que acabava de passar correndo. Por fim, surgia, no limiar da porta, um ferreiro, negro pela frente, mas com as costas iluminadas pela chama de sua forja, mantida acesa pelo contínuo soprar do fole entregue às mãos de um aprendiz. Isto se passava na rua Grande.
Quanto à rua de Diana, fora o grupo principal que descrevemos, estava deserta. Somente em sua extremidade viam-se surgir dois soldados da polícia, que acabavam de rondar a planície para pedir aos caçadores os portes de armas, e que, sem desconfiar do trabalho que os aguardava, aproximavam-se tranquilamente.
O sino tocou uma hora e quinze minutos.




A última vibração do sino confundiu-se com a primeira palavra do prefeito.
― Jacquemin ― disse ele ­―, espero que a tia Antônia esteja desvairando: ela acaba de dizer-me que a tua mulher está morta e que foste tu quem a matou.
― É a pura verdade, senhor prefeito ― respondeu Jacquemin. ― Mande-me já para a cadeia e julguem-me depressa.
Assim falando, tentou levantar-se, agarrando-se ao marco; mas, depois de um esforço, caiu, como se os ossos das pernas estivessem quebrados.
― Ora esta, estás louco! ― exclamou o prefeito.
― Olhe para as minhas mãos ― respondeu Jacquemin.
E ergueu as duas mãos ensanguentadas, cujos dedos, crispados, pareciam garras.
De fato, a esquerda estava vermelha até o punho; a direita, até o cotovelo. Além disso, um filete de sangue escorria do polegar da mão direita, com toda a probabilidade proveniente de uma dentada que a vítima, lutando para defender-se, havia dado em seu assassino.
Durante esse tempo, os dois soldados haviam-se aproximado, parando a dez passos do ator principal da cena. Montados em seus cavalos, viam o que ocorria.
O prefeito fez-lhes um sinal. Eles apearam e lançaram as rédeas dos seus cavalos a um menino com quepe de polícia, que parecia um pequeno militar.
Depois, acercaram-se de Jacquemin e o levantaram por baixo dos braços.
Este cedeu, sem opor a menor resistência, e com a atonia de um homem cujo espírito encontra-se absorto em um único pensamento.
Chegaram no mesmo instante o comissário de polícia e o médico; tinham sido informados do que ocorria.
― Ah, venha, Sr. Robert! Venha, Sr. Cousin! ― disse o prefeito.
O Sr. Robert era o médico; o Sr. Cousin, o comissário de polícia.
― Venham. Eu já ia mandar chamá-los.
― Então, o que temos? ― perguntou o médico com o ar mais jovial do mundo. ― Um mero assassinato, ao que dizem.
Jacquemin não respondeu.
― Ora, diga, pai Jacquemin ― prosseguiu o doutor ―, será mesmo verdade que mataste a tua mulher?
Jacquemin não deu palavra.
― Ao menos, ele acaba de acusar a si mesmo ― disse o prefeito. ― Faço fé, todavia, em que tudo não passe de um momento de alucinação, e não de um crime real... Que uma loucura o tenha levado a confessar.
― Jacquemin ― disse o comissário de polícia ―, é verdade que mataste a tua mulher?
Igual silêncio.
― Em todo caso, vamos verificá-lo ― disse o doutor. ― Ele não mora no beco dos Sargentos?
― Sim ― respondeu um dos soldados.
― Pois então, Sr. Ledru[1] ― disse o doutor ao prefeito ―, vamos ao beco dos Sargentos.
― Para lá eu não vou! Não vou! ― exclamou Jacquemin, desvencilhando-se das mãos dos soldados com uma força tal que, se ele pretendesse mesmo fugir, já estaria a cem passos dali antes que alguém cogitasse de correr em seu encalço.
― Então, por que tu te recusas a ir? ― perguntou o prefeito.
― Que necessidade há de ir lá, se tudo confesso, se digo que a matei, matei-a com a grande espada de duas mãos que tirei o ano passado do Museu de Artilharia? Levem-me à cadeia! Nada tenho a fazer na minha casa. Levem-me para a cadeia!
O doutor e o Sr. Ledru olharam um para o outro.
― Meu amigo ― disse o comissário de polícia, que, como o Sr. Ledru, ainda esperava que Jacquemin estivesse entregue a uma momentânea alucinação de espírito ―, meu amigo, a confrontação é necessária, e cumpre que a ela se preste para guiar a Justiça.
― Que necessidade tem a Justiça de ser guiada? ― disse Jacquemin. ― Hão de achar o corpo na adega, e, junto a ele, sobre um saco de gesso, a cabeça decepada. Agora, levem-me para a cadeia.
― É necessário que venhas conosco ― disse o comissário de polícia.
― Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! ― exclamou Jacquemin, entregue ao mais assombroso terror. ― Oh, meu Deus! Se eu soubesse...
― Então, o que terias feito? ― perguntou o comissário de polícia.
― Ora, eu teria me matado!
O Sr. Ledru balançou a cabeça e volveu os olhos para o comissário de polícia, como se lhe dissesse: “Há em tudo isso algum mistério”.
― Meu amigo ― prosseguiu falando ao assassino ―, conta-me tudo, a mim.
― Sim, ao senhor, conto tudo o que quiser. Pergunte, interrogue-me.
― Como é possível que, já que tiveste coragem para cometer semelhante crime, não a tens para confrontar a tua vítima? Há alguma coisa que tu ainda não nos disseste?
― Oh, sim! Uma coisa terrível.
― Pois vamos, diz o que foi.
― Não. Os senhores diriam que não é verdade, que estou louco.
― Não faz mal. Conta-me.
― Está certo. Mas só conto ao senhor.
E aproximou-se do Sr. Ledru. Os soldados quiseram impedi-lo. O prefeito fez um sinal e, obedecendo à ordem, os guardas deixaram-no livre. Até por quê, mesmo que Jacquemin quisesse fugir agora, teria sido impossível. Metade da população de Fontenay-aux-Roses estava apinhada naquele lugar.
Jacquemin chegou-se, pois, ao ouvido do Sr. Ledru.
― O senhor acredita ― perguntou-lhe em meia voz ―, acredita que, mesmo depois de separada do corpo, uma cabeça possa falar?
O Sr. Ledru soltou uma exclamação que se parecia com um grito e visivelmente empalideceu.
― Acredita? Diga-me ― repetiu Jacquemin.
O Sr. Ledru fez um esforço.
― Sim ― disse ―, acredito.
― Pois então ouça: ela falou...
― Quem?
― A cabeça! A cabeça de Jeanne!
― O que estás dizendo?
― Estou afirmando que ela estava com os olhos abertos, que moveu os lábios. Digo-lhe que ela me encarou e, fitando-me, chamou-me: “Miserável!
Ao dizer essas palavras, que tinham a intenção de alcançar apenas o Sr. Ledru, mas que, todavia, foram por todos ouvidas, Jacquemin estava com um semblante assustador.
― Ah, que troça! ― exclamou o doutor, rindo-se. ―Ela falou... Uma cabeça decepada falou!
Jacquemin voltou-se para ele:
― Pois eu estou afirmando... ― disse.
― Esta é mais uma razão para irmos ao local em que o crime foi cometido ― disse o comissário. ― Soldados, tragam o preso!
Jacquemin deu um grito, contorcendo-se:
― Não, não! ― exclamou. ― Cortem-me aos pedaços, se quiserem. Mas não irei.
― Vem, meu amigo ― disse o Sr. Ledru. ― Se é verdade que cometeste o crime terrível de que és acusado, isso será o começo de expiação. Além de quê ― acrescentou em voz baixa ―, a resistência é inútil. Se não quiseres ir espontaneamente, os soldados te levarão à força.
― Pois então, irei ― disse Jacquemin. ― Prometa-me, porém, uma coisa, Sr. Ledru.
― Qual?
― Todo o tempo que estivermos na adega, o senhor há de ficar ao meu lado.
― Certo.
― O senhor permite que eu segure a sua mão?
― Permito.
― Pois então, vamos.
E, tirando do bolso um lenço, enxugou o rosto molhado de suor.
Encaminharam-se todos para o beco dos Sargento.
O comissário de polícia e o doutor iam adiante; seguiam-nos Jacquemin e dois soldados.
Após eles, vinham o Sr. Ledru e dois homens que tinham aparecido à sua porta ao mesmo tempo que ele.
Depois rolava, como uma torrente cheia de agitação e de rumores, todo o povo com o qual eu me havia confundido.
Depois de cerca de um minuto, chegamos ao beco dos Sargentos: ficava ele à esquerda da rua Grande, e ia descendo até dar em um portão de madeira arruinado, que se abria ao mesmo tempo dos dois lados, e tinha uma portinhola aberta.
Esta só estava segura por uma dobradiça.
À primeira vista, tudo parecia tranquilo nessa casa. Uma roseira florescia à porta e, junto à roseira, em um banco de pedra, aquecia-se ao sol, cheio de bem-aventurança, um gato ruivo.
Ao ver tanta gente, ao ouvir tanto barulho, assustou-se, fugiu e sumiu-se pela claraboia de um porão.
Chegando ao portão que indicamos, Jacquemin parou. Os soldados quiseram obrigá-lo a entrar.
― Sr. Ledru ― disse ele, voltando-se ―, Sr. Ledru, o senhor prometeu não me abandonar.
― Pois aqui estou ― disse o prefeito.
― Dê-me o seu braço, dê-me o seu braço!
E titubeava, como se estivesse a ponto de cair. O Sr. Ledru aproximou-se, fez sinal aos soldados para que largassem o preso, e deu-lhe o braço.
― Respondo por ele ― disse.
Era evidente que, nesse momento, o Sr. Ledru já não era o prefeito da aldeia que procura a punição por um crime, mas sim o filósofo que explora o domínio do incógnito. Apenas que o seu guia, nessa singular exploração, era um assassino.
Entraram primeiro o doutor e o comissário de polícia. Seguiram-se o Sr. Ledru e Jacquemin. Em seguida, os dois soldados. Depois, alguns privilegiados, eu entre eles, graças ao contato que tivera com os senhores soldados, para quem eu já não era um desconhecido, eis que tivera a honra de encontrá-los na planície e de mostrar-lhes o meu porte de armas.
A porta então fechou-se, e o povo ficou de fora, murmurando.
Nada indicava o terrível acontecimento que nessa casinha acabara de acontecer. Tudo estava em seu lugar: a cama de sarja verde na alcova, tendo à cabeceira um crucifixo de madeira negra, coroada por um raminho de buxo seco, benzido na Páscoa. Sobre a lareira, um menino Jesus de cera, deitado no meio de flores, entre dois castiçais outrora prateados. À parede, quatro gravuras coloridas, emolduradas em madeira negra, representando as quatro partes do mundo.
Na mesa estavam talheres para um; no fogo, uma panela a ferver; e, junto a um cuco, que dava a meia-hora, um armário aberto.
― Até agora, não vejo nada! ― disse o doutor, com seu tom jovial.
― Entrem pela porta da direita ― disse Jacquemin, com voz abafada.
Seguiram essa indicação e acharam-se em uma espécie de despensa onde, num dos cantos, havia um alçapão, por cuja abertura tremia uma luz que vinha de baixo.
― Ali, ali ― disse Jacquemin, agarrando-se ao braço do Sr. Ledru, e mostrando com a outra mão a abertura da adega.
― Ah! Ah! ― sussurrou o doutor ao comissário com esse terrível sorriso daqueles em quem nada causa impressão, porque em nada acreditam. ― Parece que a Sra. Jacquemin seguiu o preceito de mestre Adam[2].
E cantarolou:

Quando eu morrer, enterrem-me
Na adega...”

 ― Silêncio! ― bradou Jacquemin, com o rosto lívido, os cabelos eriçados, a testa coberta de suor. ― Aqui não se canta!...
Dominado pelo tom dessa voz, o doutor calou-se. Mas, quase imediatamente, descendo os primeiros degraus da escada, perguntou:
― O que é isto?
E, abaixando-se, apanhou uma espada de folha larga. Era a que Jacquemin, como havia dito, tinha tirado em 29 de julho de 1830[3] do Museu de Artilharia. O ferro estava coberto de sangue.
O comissário de polícia tomou-a da mão do doutor.
― Reconhece esta espada? ― disse ao preso.
― Sim ― respondeu Jacquemin. ― Depressa, vamos! Acabemos com isto!
Era o primeiro vestígio do crime que encontravam.
Penetraram na adega, cada qual na ordem que já indiquei. À frente, o médico e o comissário de polícia; depois, o Sr. Ledru e Jacquemin; em seguida, as duas pessoas que estavam na casa do prefeito; depois os guardas e os privilegiados, entre os quais eu me encontrava.
Após descer o sétimo degrau, levei os olhos ao interior da adega e contemplei o horrível espetáculo que vou esboçar.
O primeiro elemento em que caíram os meus olhos foi um cadáver sem cabeça, deitado junto a um barril, cuja torneira meio aberta deixava ainda escorrer o vinho que, formando um regato, ia sumir-se sob o baixete.
O cadáver estava torcido no meio, como se o torso, revirado para trás, houvesse começado um movimento de agonia que as pernas não puderam acompanhar. O vestido estava arregaçado de um lado até a liga.
Via-se que a vítima havia sido golpeada no momento em que, de joelho em frente ao barril, começava a encher uma garrafa, que lhe havia fugido das mãos e jazia no chão, ao seu lado.
Toda a parte superior do corpo nadava em um lago de sangue.
Em cima de um saco de gesso encostado na parede, como um busto em uma coluna, via-se, ou antes adivinhava-se, uma cabeça, coberta pelos cabelos. Um traço de sangue avermelhava o saco do alto até a metade.
O doutor e o comissário de polícia já haviam examinado o cadáver e achavam-se ao pé da escada.
No meio da adega estavam os dois amigos do Sr. Ledru e alguns curiosos que, pressurosos, haviam penetrado ali. Embaixo da escada estava Jacquemin, a quem fora impossível levar adiante. Detrás de Jacquemin, dois soldados. Detrás desses, cinco ou seis pessoas, em cujo número eu estava, e que comigo se agrupavam na escada. Todo esse lúgubre interior era iluminado pela trêmula luz de uma vela posta em cima do mesmo barril junto ao qual jazia o cadáver da Sra. Jacquemin.
― Tragam uma mesa e uma cadeira ― disse o comissário ― e lavremos o termo.


  
III - O termo de interrogatório

Trouxeram ao comissário o que este pedira. Ele sentou-se à mesa, pediu a vela que o médico lhe trouxe passando por cima do cadáver, tirou da algibeira um tinteiro, penas e papel, e começou o seu termo.
Enquanto ele escrevia o preâmbulo, o doutor fez um movimento de curiosidade para aquela cabeça posta em cima do saco de gesso; o comissário, porém, o deteve.
― Não toque em nada ― disse. ― O regulamento acima de tudo.
― Tens razão ― disse o doutor, voltando para o seu lugar.
Houve alguns minutos de silêncio, durante os quais somente se ouviu a pena do comissário ranger no papel rugoso do governo, enquanto sucediam-se as linhas com rapidez de uma fórmula a que muito acostumado estava quem as escrevia.
No fim de algumas linhas, ele levantou a cabeça e olhou ao redor.
― Quem nos quer servir de testemunhas? ― perguntou, dirigindo-se ao prefeito.
― Por certo a isso se prestarão estes dois senhores ― disse o Sr. Ledru, apontando para os seus amigos que estavam próximos do comissário de polícia.
― Bem ― disse este. E, voltando-se para mim, falou-me:
― O senhor será a terceira, se não lhe for desagradável ver seu nome figurando no termo judicial.
― Com muito gosto, senhor ― respondi-lhe.
― Faça o favor então de descer ― disse o comissário.
Sentia alguma repugnância em aproximar-me do cadáver. De onde eu estava, certos pormenores, sem de todo me escaparem, apareciam-me menos asquerosos, perdidos em uma semiobscuridade, que encobria seu horror com um véu de poesia.
― Será indispensável? ― perguntei.
― O quê?
― Que eu desça.
― Não. Pode ficar onde está, se assim prefere.
Acenei com a cabeça, como se dissesse: “Desejo ficar onde estou”.
O comissário de polícia voltou-se para o amigo do Sr. Ledru que se achava mais próximo.
― Seu nome, idade, profissão, estado e residência... ― perguntou com a volubilidade de quem está acostumado a fazer este tipo de perguntas.
― Jean-Louis Alliette[4] ― respondeu a quem ele se dirigia. ― Chamam-me Etteilla por anagrama, literato, moro na rua da Antiga Comédia nº 20.
― Esqueceu-se de dizer a idade ― disse o comissário.
― Devo dizer a idade que tenho ou a que me dão?
― Diga a idade que tem, ora! A gente não tem duas idades.
― Entretanto, senhor comissário, certas pessoas, Cagliostro, o conde de Saint Garmain, o Judeu Errante[5], por exemplo...
― O senhor está querendo dizer que é Cagliostro, o conde de Saint-Germain, o Judeu Errante? ― disse o comissário, franzindo a testa, achando que zombavam dele.
― Não, mas...
― Setenta e cinco ― disse o Sr. Ledru. ― Escreva setenta e cinco anos, Sr. Cousin.
― Está certo ― disse o comissário.
E escreveu.
― E o senhor? ― prosseguiu falando ao segundo amigo do Sr. Ledru. E repetiu a exatamente as mesmas palavras que já havia dito.
― Pierre-Joseph Moulle, de sessenta e um anos, eclesiástico, de serviço na igreja de São Sulpício, morador na Rua Servadoni nº 11 ― respondeu com doce voz a pessoa interrogada.
― E o senhor? ― perguntou-me o comissário.
― Alexandre Dumas, autor dramático, de vinte e sete anos de idade, morador na rua da Universidade nº 21, em Paris ― respondi.
O Sr. Ledru voltou-se para mim e fez-me um gracioso cortejo, a que respondi como melhor pude.
― Bem! ― disse o comissário de polícia. ― Vejam se está exato, senhores, e se têm alguma observação a fazer.
E com este tom fanhoso e monótono que só pertence aos funcionários públicos, leu:
“Hoje, primeiro de setembro de 1831, às duas horas da tarde, tendo sido avisados pelo rumor público que um assassinato acabava de ser perpetrado, na comuna de Fontenay-aux-Roses, na pessoa de Marie-Jeanne Doucoudray, por seu marido Pierre Jacquemin, e que este tinha ido à casa do Sr. Jean-Pierre Ledru, prefeito da dita comuna, para voluntariamente declarar-se autor desse crime, nos dirigimos à casa do dito Jean-Pierre Ledru, rua de Diana nº 2, à que chegamos acompanhados pelo Sr. Sébastien Robert, doutor em Medicina, morador da mesma comuna de Fontenay- aux-Roses, e aí achamos já nas mãos de soldados da polícia o Sr. Pierre Jacquemin, o qual perante nós repetiu que era autor da morte de sua mulher, e então intimamo-lo a que nos acompanhasse à casa em que fora cometido o crime. A isto negou-se ele a princípio; mas, tendo cedido às insistências do Sr. prefeito, dirigimo-nos ao beco dos Sargentos, onde se acha a casa do dito Jacquemin. Aí chegando, fechamos a porta para obstar que o povo invadisse a casa, e penetramos em uma primeira câmara, na qual nada indicava que um crime acabara de ser cometido. Depois, a convite do próprio Jacquemin, entramos em outra câmara e em um dos cantos dela achamos aberto um alçapão que dava para uma escada. Tendo-nos sido esta indicada como levando a uma adega onde devíamos achar o corpo da vítima, pusemo-nos a descer a dita escada, em cujos primeiros degraus achou o doutor uma espada, de punho feito em forma de cruz, de ferro largo e afiado, que o dito Jacquemin nos confessou ter sido por ele tomada por ocasião da revolução de julho, no Museu de Artilharia, e ter-lhe servido para a perpetração do crime. E no chão da adega achamos o corpo da mulher de Jacquemin, nadando em sangue, com a cabeça decepada do tronco, que estava em cima de um saco de gesso encostado à parede. E o dito Jacquemin, tendo reconhecido que esse cadáver e essa cabeça eram da sua mulher, em presença do Sr. Jean-Pierre Ledru, prefeito da comuna de Fontanay-aux-Roses, do Sr. Jean-Louis Alliette, litetato, de idade 75 anos, morador em Paris, rua da Antiga Comédia nº 20, do Sr. Pierre-Joseph Moulle, de idade de 61 anos, eclesiástico, no serviço da igreja de São Sulpício nº 11, e do Sr. Alexandre Dumas, autor dramático, de idade 27 anos, morador em Paris, rua da Universidade nº 21, procedemos, como segue, ao interrogatório do réu”.
― É isto, senhores? ― perguntou o comissário, voltando-se para nós com ar de evidente satisfação.
― Exatamente, senhor ― respondemos.
― Pois agora interroguemos o réu.
Voltando-se então para o preso, que durante toda a leitura respirara ruidosamente, como um homem oprimido, disse:
― Declare o seu nome, idade, domicílio e profissão.
― Isso levará muito tempo? ― perguntou o preso, como um homem cujas forças se esgotavam.
― Responda: seu nome?
― Pierre Jacquimin.
― Sua idade?
― Quarenta e um anos.
― Sua residência?
― O senhor bem sabe, pois estamos nela.
― Não faz mal, a lei quer que responda.
― Beco dos Sargentos.
― Profissão?
― Operário de pedreira.
― Confessa que é o autor do crime?
― Sim.
― Diga-nos a causa que fez o perpetrar o delito e em que circunstâncias.
― A causa... é inútil ― disse Jacquemin. ― É um segredo que ficará comigo.
― Entretanto, não há efeito sem causa.
― Digo que ninguém saberá as causas. Quanto às circunstâncias, como o senhor disse, o senhor quer conhecê-las?
― Sim.
― Bem, vou contá-las. Quem trabalha, como nós, debaixo da terra, no escuro, e acredita padecer de uma agonia, aflige-se muito, e então vê-se entregue a maus pensamentos.
― Oh, oh! ― atalhou o comissário. ― Confessa então que houve premeditação?
― Pois se lhe garanto que confesso tudo. Acha que não é o bastante?
― Sim, é o bastante, mas continue.
― Esse mau pensamento que me ocorreu foi o de matar Jeanne. Por de um mês, isso me atormentou o espírito; o coração impedia a cabeça; enfim, uma palavra que um camarada me disse fez com que eu me decidisse.
― Que palavra?
― Isto é algo que não lhes diz respeito. Nesta manhã, eu disse a Jeanne:
“― Hoje não vou trabalhar. Quero divertir-me, como se fosse dia santo. Irei jogar bola com os amigos. Trata de que o almoço esteja pronto a uma hora.
“― Mas...
“― Não quero observações: quero o almoço cedo, ouviste?
“― Está bem ― disse Jeanne.
“E saiu para tratar da cozinha.
“Todavia, em vez de jogar bola, peguei a espada que aí está. Eu mesmo a tinha afiado numa mó. Desci a adega e escondi-me por entre os barris, dizendo: “Ela terá de descer para vir buscar o vinho. Então, veremos.”
“Quanto tempo ali fiquei, agachado, por detrás daquele barril que está ali... não sei. Tive febre. O meu coração palpitava. Via tudo vermelho em meio às trevas.
“E também havia uma voz que dentro e em volta de mim repetia a palavra que o meu camarada me dissera ontem.”
― Mas, enfim, que palavra era essa? ― insistiu o comissário.
― É inútil perguntá-la. Já disse que não diria.
“Enfim ouvi o roçar de um vestido e passos que se aproximavam. Vi uma luz tremer. Vi pernas que desciam e depois a cabeça... Vi muito bem a cabeça. Jeanne tinha uma vela na mão.
“― Ah! ― disse eu. ― Perfeito!
“E repeti comigo a palavra que me dissera o camarada.
“Entretanto, ela se aproximava. Palavra de honra! Parecia que ela suspeitava de alguma desgraça. Estava amedrontada. Olhava para todos os lados. Mas eu estava bem escondido: nem me movi.
“Então ela ajoelhou-se diante de um barril, aproximou a garrafa e abriu a torneira.
“Levantei-me. Ela estava ajoelhada. O barulho do vinho que caía na garrafa não lhe deixava ouvir o ruído que eu fazia. Além de quê, eu fazia muito pouco barulho. Ela estava ajoelhada como uma criminosa, como uma condenada. Levantei a espada e... zás! Nem sei se ela deu um grito. A cabeça rolou.
“Naquele momento, eu não queria morrer. Queria fugir. Pretendia cavar um buraco no chão da adega e enterrá-la. Saltei sobre a cabeça que rolava, de um lado, pelo chão, enquanto o corpo tombava para o outro. Eu tinha comigo um saco de gesso pronto para ocultar o sangue. Agarrei, pois, a cabeça ou, antes, a cabeça me agarrou... Vejam!”
E mostrou a sua mão direita, cujo dedo polegar fora mutilado por uma dentada.
― Como! A cabeça agarrou-o! Que diabos nos está contando? ― interrompeu o médico.
― Garanto que ela me mordeu com toda força, como podem ver. Digo que a cabeça decepada não queria me soltar. Eu a coloquei em cima do saco de gesso, encostei-me na parede com a mão esquerda, e procurei arrancá-la de mim com a direita. Mas ao cabo de alguns instantes, os dentes se abriram por si mesmos. Tirei a mão. Então, ouçam: talvez tenha sido loucura, mas a cabeça me pareceu estar viva, com seus olhos arregalados. Eu os via perfeitamente, pois a vela estava em cima do barril, e, depois, os lábios se moveram... os lábios se mexeram e disseram: Miserável, eu era inocente!
Não sei que impressão esse depoimento causava nos demais. Quanto a mim, o suor caía-me em bagas pela testa.
― Ah, isso é demais! ― exclamou o doutor. ― Os olhos viraram-se para ti!  A boca falou contigo!
― Ouça, Sr. doutor. Porque é médico, o senhor não acredita em nada, o que é natural. Mas eu lhe digo que a cabeça que está ali... entende-me? Digo-lhe que essa cabeça me disse: Miserável, eu era inocente! Eu era inocente!” E a prova de que ela me disse isto é que eu queria fugir depois de ter matado Jeanne, não é mesmo? Mas, em vez de fugir, eu corri direto à casa do prefeito para me denunciar. Não é verdade, Sr. prefeito? Responda.
― Sim, Jacquemin ― respondeu o Sr. Ledru com o tom da mais perfeita bondade. ―Sim, é verdade.
―Examine essa cabeça, doutor ― disse o comissário de polícia.
― Quando eu não estiver aqui. Quando eu não estiver aqui, por caridade! ― exclamou Jacquemin.
― Por acaso tens medo que ela fale contigo agora, idiota? ― disse o doutor, tomando a luz, e aproximando-se do saco de gesso.
― Sr. Ledru, pelo amor de Deus ― disse Jacquemin ―, diga-lhes que me mandem embora, eu lhe imploro!
― Senhores ― disse o prefeito, fazendo um gesto que deteve o doutor ―, nada mais há aqui que exija a presença desse desgraçado. Permitam-me mandá-lo para a cadeia. Quando a lei ordenou a confrontação, supus que o réu teria forças para suportá-la.
― Mas, e o termo de interrogatório... ― disse o comissário.
― Está quase concluído.
― O réu deve assiná-lo.
― Assinará na cadeia.
― Sim! Sim! ― exclamou Jacquemin. ― Na cadeia assinarei tudo o que quiserem.
― Está bem! ― disse o comissário.
― Soldados, levem este homem! ― ordenou o Sr. Ledru.
― Obrigado, senhor Ledru, obrigado! ― disse Jacquemin, com a expressão da mais profunda gratidão.
E, agarrando ele mesmo os soldados pelos braços, levou-os para fora com força sobre-humana.
Com esse homem desaparecia o drama. Na adega, restavam duas coisas terríveis de se ver: um corpo sem cabeça e uma cabeça sem corpo.
Inclinei-me para o Sr. Ledru:
― Senhor ― disse-lhe ―, permite-me que eu me retire, ficando, aliás, a seu dispor para a assinatura do termo?
― Sim, senhor. Mas com uma condição.
― Qual?
― Que venha assinar o termo em minha casa.
― Com todo prazer. Mas quando?
― Daqui a uma hora, aproximadamente. Eu mostrarei ao senhor a minha casa. Ela pertenceu a Scarron[6]. Será interessante.
― Em uma hora, senhor, estrei lá.
Cumprimentei-o, subi a escada e, do alto dela, volvi o último olhar.
O doutor Robert, com a mão na vela, afastava os cabelos da cabeça. Era a de uma mulher ainda bela, tanto quanto era possível julgá-lo, pois os olhos estavam fechados, os lábios contraídos e lívidos.
― O idiota do Jacquemin ― disse. ― Sustentar que uma cabeça cortada é capaz falar! A menos que tenha inventado isso para ser dado por louco. Não seria uma má jogada. Criaria uma circunstância atenuante...











[1] Jean-Philippe Ledru (1754-1832) foi um médico francês, membro da Academia Nacional de Medicina e prefeito de Fontenay-aux-Roses entre 1812 e 1826. Foi grão-mestre da loja maçônica parisiense dos Cavaleiros da Cruz.
[2] Adam Billot (1602-1662) foi um marceneiro, cancioneiro e poeta francês.
[3] Dumas alude à Revolução de Julho, sublevação popular que culminou com a abdicação de Carlos X (1757-1836).
[4] Jean-Baptiste Alliete (1738-1791), dito Etteila, foi um ocultista francês e pioneiro na popularização do tarô.
[5] Alessandro, Conde de Cagliostro (1743-195) foi um ocultista e alquimista italiano. O conde de Saint-Germain (1696-1784), cuja verdadeira identidade permanece desconhecida, foi uma das figuras mais misteriosas do século XVIII; era, igualmente, ocultista e alquimista. Conta-se que seria imortal e que possuía a pedra filosofal e o elixir da juventude. O Judeu Errante é uma figura lendária, dotada de imortalidade.
[6] Paul Scarron (1610-1660), escritor satírico francês.

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