À ESPERA DO APOCALIPSE - Conto de Terror - Luiz Poleto


À ESPERA DO APOCALIPSE
Luiz Poleto

 “Freeze this moment, a little bit longer”
Time Stand Still - Rush


Durante um período de cinco anos, aproximadamente, vaguei por diversas cidades, com o único propósito de esquecer. Parti de minha cidade natal com nada mais do que uma mochila contendo algumas poucas roupas, deixando para trás apenas minha casa, já que não havia familiares e muito menos amigos. Fora abandonado por todos desde a fatídica data em que, acidentalmente, provoquei a morte da única pessoa que amei em toda a minha vida. Os amigos e familiares – meus e dela – não acreditaram que havia sido um acidente, e, ao invés do apoio que eu precisava, fui covardemente abandonado por todos. O estado em que minha mente se encontrava era tão caótica que nem quando tentei suicídio eu obtive êxito. Após este episódio, resolvi deixar a minha antiga vida para trás.

Eu estava andando por uma estrada totalmente sem movimento, quando uma tempestade começou a se armar no horizonte. As nuvens cinzentas davam um estranho tom azulado ao local, e o silêncio mórbido que me cercava traziam uma tristeza inimaginável. Senti um forte aperto no coração, como se alguém o estivesse apertando, e lágrimas começaram a rolar por minha face. Na minha frente, pude ver a minha amada dançando, exatamente como da última vez que estivemos juntos. Seus longos cabelos negros dançavam junto com ela, em movimentos aleatórios no ar. Naquele momento, caí de joelhos no acostamento da estrada, aos prantos.

Quando voltei ao normal, com a vista ainda embaçada por causa das lágrimas, pude perceber, a alguns metros do acostamento, um imenso portal de madeira, que devia medir cerca de três metros de altura, por aproximadamente dois metros de largura. Aproximei-me daquela curiosa construção, já extremamente deteriorada pelo tempo, e percebi que, embora semidestruída, ainda mantinha alguns de seus detalhes originais, uma série de entalhes em baixo-relevo feitos na madeira, que tinham características muito peculiares. Pareciam hieróglifos – mas talvez fossem ideogramas. Ao fundo, uma longa estrada de terra estendia-se além de uma pequena colina. Como a tempestade era iminente, resolvi seguir a estrada na esperança de encontrar alguma construção que pudesse me abrigar até a chuva passar.

A estrada era longa e tortuosa. Depois de duas horas de caminhada, cheguei ao topo da colina. Fiquei ao mesmo tempo maravilhado e assustado quando vi que no pé da colina havia uma cidade inteira, com casas em uma arquitetura que eu nunca vira. Rapidamente consultei meus mapas de viagem, e fiquei surpreso quando vi que nem a cidade e nem mesmo a estrada em que eu caminhara horas antes estavam no mapa; tudo o que havia era uma imensa área vazia. Enquanto eu consultava meus mapas, pude ouvir, bem ao longe, o badalar de sinos. Aquele som me causou um terror agudo, pois badalavam de forma macabra, soando como um convite para um eterno passeio no inferno, guiado pelo próprio Lúcifer. Embora o som fosse de diversos sinos, não soavam como sinos. Guardei os mapas em minha mochila, pensando em ir embora daquele lugar, mas alguma coisa me atraía para ali. Como a chuva estava começando a cair, me apressei em descer a colina.

A cidade era envolta por um grande muro, e um portal semelhante ao que encontrei na beira da estrada estava localizado ao centro, permitindo o acesso para a cidade. Entrei, seguindo pela rua de pedras que se estendia à minha frente. A rua era muito estreita, e as casas pareciam avançar sobre ela, quase que a devorando; em alguns pontos, podia-se perceber que os estranhos telhados das casas se encontravam, formando um medonho túnel. Tentei bater à porta da primeira casa da cidade, mas não obtive resposta; e assim foi com as várias casas subsequentes. Os sinos ainda tocavam sua macabra sinfonia, mas agora com um volume muito mais alto. Segui pela rua à minha frente, sem encontrar ninguém no caminho. A cidade parecia totalmente deserta – fato que era corroborado pelo seu péssimo estado geral de conservação. Mas se estava deserta, quem estaria tocando os sinos? Com a chuva agora caindo fortemente, resolvi seguir as badaladas, na esperança de encontrar alguém.

Por alguns minutos, caminhei por ruas que pareciam exatamente iguais, com as casas aglomeradas e quase se tocando no ar. Escolhi, quase aleatoriamente, os caminhos a seguir quando eu encontrava alguma bifurcação ou cruzamento, tentando sempre seguir o badalar infernal dos sinos. Mas, embora eu tivesse continuado andando, muitas vezes eu achava estar sempre no mesmo lugar, uma vez que as casas tinham a mesma aparência esquisita, e as ruas eram exatamente iguais. Meu passo já estava apressado, quase correndo, quando uma sensação de claustrofobia começou a tomar conta de mim; eu queria desesperadamente sair daquele lugar. Tentei refazer o caminho de volta, mas eu parecia retornar sempre ao mesmo lugar.

Quando eu parei para pegar um pouco de ar, tive a sensação de ver um vulto passando por trás de mim. Olhei para trás, mas tudo o que vi foi a mesma rua de sempre. Olhando um pouco mais atentamente, percebi que a porta de uma das casas estava entreaberta. Cautelosamente, dirigi-me até lá, olhando ao redor para certificar-me de que ninguém estava à espreita. Chegando na porta, chamei por alguém, mas, como eu já imaginava, ninguém me atendeu. Empurrei bem devagar a porta, para deparar-me com uma escuridão que eu nunca havia visto antes. Com o ritmo do coração acelerado, empurrei um pouco mais a porta e coloquei a cabeça para dentro, procurando alguma fonte de iluminação.

Eu estava com metade do meu corpo do lado de dentro da casa, quando, novamente, vi um vulto passando atrás de mim. Assustado, virei-me para tentar descobrir quem estava tentando me pregar uma peça, mas novamente não vi ninguém. Resmungando, virei-me para a frente para entrar na casa, mas dei um pulo quando me deparei com alguém, ou alguma coisa, a poucos centímetros de mim. Não pude conter o grito de horror quando aquela coisa – mais ou menos do meu tamanho – segurou fortemente o meu braço. Senti um formigamento quando aquela mão gelada me tocou; lutei com todas as minhas forças para me soltar daquilo que apenas balbuciava alguns sons incompreensíveis. Aqueles grunhidos, aliás, não poderiam vir de lugar nenhum, pois, quando olhei para o rosto da criatura, novamente suei e estremeci, quando percebi que não havia rosto:  apenas uma cabeça, branca como o resto do corpo, mas com um horrível tom azulado. Embora não houvesse olhos, eu sentia que aquilo me olhava, e seu olhar tinha o incrível poder de me causar medo como eu nunca sentira antes.

Virei as costas para a criatura e comecei uma corrida desenfreada pelo tortuoso labirinto que era aquela cidade. Por alguns minutos, não olhei para trás, mas quando o fiz, tropecei devido ao pavor que me dominou: não apenas a criatura que havia me agarrado estava me seguindo à distância, como dezenas exatamente iguais a ele, todos balbuciando o mesmo estranho som, que fazia uma harmonia perfeita com o badalar infernal dos sinos, agora mais alto do que nunca.

Corri, como eu nunca havia corrido antes, e, depois de alguns minutos, vi o que parecia ser uma saída daquele labirinto. Cheguei a um lugar que parecia um oásis em meio àquele inferno que descansava atrás de mim. Um imenso lago, com uma imensa cadeia montanhosa ao fundo, adormecia tranquilamente à minha frente. Misteriosamente não chovia ali, embora o céu estivesse totalmente nublado, com o sol fazendo um esforço imenso para sair, mas impedido pela densa massa de nuvens. Senti aqui o mesmo tom azulado que eu sentira na estrada, o que me causou um certo enjoo ao relembrar a cena que eu vira naquela ocasião.

Cheguei a esquecer por completo das coisas que me seguiam quando vi, um pouco à minha frente, um banco de madeira, onde uma mulher permanecia calmamente sentada, aparentemente apreciando a estranha visão que nos era oferecida. Aproximei-me devagar e sentei ao seu lado. Antes que eu pudesse vê-la ou falar alguma coisa, a mulher virou-se para mim, e nesse momento, meus olhos encheram-se de lágrimas novamente e um frio congelante percorreu minha espinha quando minha amada olhou em meus olhos e me perguntou:

– Por quê?

Eu estava em prantos quando perguntei o que ela fazia ali.

– Estou fazendo a mesma coisa que faço desde o dia que você me matou; estou aqui, sentada, aguardando.

– Aguardando o quê? – perguntei.

– Você – ela respondeu, com o sorriso mais lindo que eu já vira até então.

– E estas criaturas, o que são? – perguntei, olhando para trás e descobrindo que as coisas haviam sumido.

– Estão aqui para ter certeza de que não iremos embora. Devemos ficar aqui, até que chegue a nossa hora de partir.

Antes que eu pudesse fazer mais perguntas, ela segurou minha mão e fez sinal para que eu ficasse calado. Embora confuso, eu estava extremamente feliz por poder vê-la novamente, embora eu não tivesse certeza se ela estava morta ou viva. Na verdade, isso não fazia muita diferença: a sensação de estar ao lado dela, mesmo que calados, e sem poder tocá-la, era indescritível.

Ficamos por muitas horas sentados naquele banco, ouvindo o badalar incessante dos sinos e apreciando aquela paisagem sinistra, mas cativante. Anoiteceu, e o céu começou a adquirir uma coloração estranha, vermelha, lilás, ou algo parecido com isso. O lago à nossa frente começou a se agitar, quando o fogo começou a brotar de sua superfície; em alguns pontos, via-se que o fogo crescia, criando uma chama que ia direto ao céu sangrento, um espetáculo funesto.

Quando virei o rosto para perguntar o que acontecia, vi minha amada me olhando de forma estranha. Eu podia ver a fúria em seus olhos, e seu corpo estava em avançado estado de decomposição. O sangue escorria de sua boca e a faca que eu acidentalmente cravara em seu coração ainda estava ali. Ela gritava, chorava, e me segurava com uma força incrível; eu não podia me soltar. Eu já estava no chão quando vi as criaturas vindo para cima de mim e, embora sem rosto, começaram a devorar, lentamente, cada pedaço de meu corpo, assim como minha amada. Os sinos agora badalavam de forma histérica, e mais e mais chamas saíam do lago em direção ao céu. Eu já sentia o sangue escorrendo de minha boca e a dor de ser comido vivo era dilacerante. Alguns de meus dedos eram delicadamente saboreados, enquanto outros eram arrancados de forma violenta. Não consigo, em palavras, descrever toda a dor que senti.

De repente, tudo ficou escuro.


Quando acordei, o lago estava absolutamente normal, assim como o céu, embora ainda tivessem o tom azulado de outrora. No banco ao meu lado, minha amada continuava sentada, mas seu corpo estava em perfeito estado e ela tinha um pequeno sorriso de felicidade. Uma dor aguda tomou conta de mim quando tentei me levantar, e então percebi que o estrago feito na noite anterior ainda estava em mim. Alguns dedos faltando, sangue por todo o lado e uma dor horrível vinha de dentro de mim.


Com um esforço imenso, levantei-me e sentei-me no banco, ao lado dela. Por maior que fosse a dor, a sensação de estar ao lado dela era maior do que tudo. Mas, assim que me sentei, ela levantou-se e foi embora, sem dizer uma palavra. Permaneci sentado, chorando, pois eu sabia, naquele momento, que a hora de ela ir embora havia chegado, e que, toda a noite, eu teria que viver o castigo de ser devorado por criaturas sem face. Aquele era o meu inferno pessoal, era o meu castigo por ter matado a mulher que mais amei. E o que mais doía não eram as mordidas ou a sensação de ter meus órgãos arrancados, mas era a visão dela indo embora. Então eu sentei no banco, e contemplei as montanhas, pois eu sabia que, por mais que eu corresse,  jamais conseguiria sair daquela cidade. E fiquei ali sentado, aguardando o meu apocalipse pessoal chegar junto com a noite, trazido pelas criaturas sem face.

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