A MAL-DEGOLADA - Conto Clássico Terror - Lenda - Conde de Bertiandos





A MAL-DEGOLADA
Conde de Bertiandos

(Gonçalo Pereira da Silva de Sousa e Menezes, 3º conde de Bertiandos )
(1851 - 1929)

O carro era de prata e daqueles em que se pintam as deusas da velha Grécia.
Puxavam-no seis cavalos brancos despidos de jaezes. Semelhavam cordões de seda as rédeas finíssimas.
O luar, batendo em cheio, deu-me ocasião a contemplar por instantes a condutora da singular equipagem, que seguia a estrada de Ponte do Lima a Viana. Mulher bela, mas de beleza estranha, pálida, extremamente pálida, franzina e alta. Envolvia-a manto negro, e os cabelos da cor do ouro levava-os mal encobertos por um crepe.
Fantástica miragem!
 Seria.
 Fui andando. A poucos passos enturvou-se a noite; meti por um atalho, e, ao aproximar-me desta aldeia, caía chuva tão forte que me obrigou a buscar guarida. Bati à porta de uma choupana e entrei.
Acercando-me da lareira, fui conversando com os donos da casa. Daí a pouco entrava um rapazito; vinha atemorizado, sem fala. Interroguei-o e ele após algum tempo foi dizer um segredo ao ouvido da mãe.
 — Coitado — explicou esta. — Encontrou a Mal-Degolada, e deu uma grande volta com receio de a tornar a ver.
 — Mas quem é essa Mal-Degolada? — perguntei, curioso.
Todos se calaram, e só depois de instancias é que uma velha muito velha me contou a lenda, que sinto não saber trasladar com o estilo da narradora e o mesmo tom de convencimento.

* *

Ali defronte na freguesia da Facha viveu em tempos remotos o senhor mais poderoso desta Ribeira Lima. Chamava-se dom Rui Mendes.
Bom e esforçado fidalgo, se o rei precisava do auxílio de seus vassalos, era o primeiro a aparecer no combate, seguido de seus muitos homens-de-armas, e o último na retirada, após a vitória. 
Não contava mais de vinte e cinco anos, e já havia perdido a conta dos mouros que mandara de presente a Satanás com o seu pesado montante[1], que um homem de hoje mal poderia levantar do chão.
Na cabeça das raparigas destas povoações anda o retrato do mancebo tão finamente composto que parece, ao ouvi-las, ser o mesmo o ideal de todas. E asseveram elas que tinha o moço castelão assim atraente o gesto; como era cortante o fio de sua espada: nem havendo corpo de infiel que esta não dividisse de um só golpe, nem coração de mulher que seus olhos não cativassem.
Depois de correria que fizera contra sarracenos, deixou de repente de aparecer em montarias de ursos e javalis; e nos saraus dos castelos vizinhos as ricas-donas viam com enfado que faltava ao lado de suas filhas o mais apetecido galanteador.
E, todavia, o cavaleiro, quando furtivamente passava a galope no seu companheiro de proezas, mostrava no semblante enorme contentamento.
Quem, ao cair da noite, se avizinhasse desta freguesia de Bertiandos havia de perceber o mistério.
Perto da fonte que tem hoje o nome da lenda — A fonte da Mal-Degolada — estava uma torre circundada por árvores majestosas. Fora ali que Rui Mendes escondera a olhos ávidos a mais formosa donzela de quantas se têm criado em terras do Alcorão. E era de tais primores esse ninho de sonhos que não haveria princesa que não pudesse invejá-lo, se no céu d’estrelas da sua felicidade não houvesse um negrume — a diferença da fé.
Diz-se que a linda moura, nas suas horas de solidão, cantava da janela rendilhada tão suaves harmonias que os pássaros vinham escutá-la e aprender-lhe o canto.
— E por isso, é — afirmava a camponesa — que ainda hoje os pintassilgos de Bertiandos têm uns trinados que em nenhures se ouvem. Hão de ser cantigas dos eirados da Mourama[2]...
A lua, que neste momento se espelha nas aguas do sereno rio, alumiou por algum tempo os passeios dos dois enamorados. Ela assiste desde muitos séculos a iguais cenas, e talvez seja um sorriso seu de zombaria o luar, com certeza mais encantador que nessas ocasiões manda aos que protestam que amor tamanho nunca houve peito que o sentisse.
Mas o cristão e a moura que tal diziam é porque deveras o acreditavam, e não se passou uma só vez que, ao separarem-se, um juramento por Deus e outro por Alá deixassem de firmar suas promessas de lealdade eterna.
Uma noite… — ai que horrível noite aquela! — D. Rui aportou à margem na sua barquinha azul, e não encontrou a bela Tagilda, que sempre ali o esperava ansiosa. Foi caminhando para a torre e, quando chegou perto, diferençou vozes que percebeu serem dela e de um homem.
Dando um grito abafado e rouco, de salto apareceu junto da moura; puxou de uma faca de mato, e deu-lhe golpe tão fundo no pescoço que a deixou por morta. Depois arremeteu contra um vulto negro, mas... quedou espantado, reconhecendo o eremita da serra de Arga.
Este não se atemorizou e, voltando-se para o corpo ensanguentado, da sarracena, disse-lhe:
— Querias ser cristã, vais sê-lo.
Enche de agua o côncavo da mão e, aproximando-se da infiel, esparge-lhe o rosto, dizendo solenemente: “Maria, eu te batizo em nome do Padre, do Filho e...” Mas neste próprio instante exalou a moribunda o suspiro derradeiro.
 D. Ruy, com os cabelos hirtos e os olhos esbugalhados, estava ainda tão pegado à terra como um penedo do monte!

*

— E viu alguma vez a Mal-Degolada — perguntei, certíssimo de que eu próprio a vira meia hora antes.
— Nunca; mas é como se a estivesse vendo. Contava meu avô que bastas vezes a descortinou sobre a fonte, alisando com pente de prata os seus cabelos de ouro, e outras seguindo por esses caminhos fora num carrinho puxado a seis cavalos. Faltaram-lhe palavra no batismo, por isso anda aí a penar há muitos centos de anos. É o que pôde suceder a todos nós, se tal nos houver acontecido.
Agora percebo certa canção de um rouxinol que em noites de lua cheia vai gorjear para o freixo da margem do rio. Bem pensava eu que os seus queixumes, doloridas endeixas,[3] eram talvez de algum romance de amores.





[1] Antiga espada, de grandes dimensões, que se brandia com as duas mãos.
[2] Terra dos mulçumanos.
[3] Canção fúnebre. 

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